Histórias e Anotações [FEB]

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Capítulo VIII

Entre dois mundos


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A fim de colaborar no socorro à Senhora M…, internada numa instituição de saúde mental, fomos compulsar-lhe o diário íntimo, em cujas páginas respigávamos tão somente algumas de sua observações mais específicas, em torno de suas próprias atitudes quanto à maternidade.


1955 — 6 de maio — E, afinal, casei-me. Estou feliz, muito feliz…


8 de junho — Alfredo me falou hoje da possibilidade de termos filhos. Não concordo. Filhos para destruir-me? Que ideia!…


4 de novembro — Tia Emerenciana afirmou que os meus sintomas são de gravidez. Estou amendrontada. Alfredo não pode saber. Darei um jeito para livrar-me.


1956 — 4 de janeiro — Excelente plano de repousar por alguns dias, fora de casa, nas festas do Ano Novo. Enquanto meu marido voltou ao trabalho, pude, enfim, submeter-me ao aborto. Limpeza sem importância. Não quero desfigurar-me.


1957 — 27 de março — Tia Emerenciana disse que não me convém ficar sem filhos, que o casamento envolve obrigações muito sérias, perante o destino, e — coitada de minha santa velhinha! — tentou explicar-me que existem Espíritos de eras passadas, comprometidos conosco, aos quais somos chamados a dar novo corpo, através do lar (!?), e que somente assim resgataremos nossos débitos de outras existências. Não entendi patavina.


8 de setembro — Tive um sonho terrível de ontem para hoje. Vi-me à frente de dois jovens, nos quais acendera devastadora paixão. Tudo isso eu sentia, compreendia e via no sonho… Eles se rebaixavam, mutuamente, diante de mim, até que um deles sacou da arma, alvejando o outro e suicidando-se em seguida. Depois da cena triste, pareceu-me estar numa grande nuvem a fugir dos dois, ao mesmo tempo que escutava a gritaria de ambos, vociferando contra mim: “Assassina! Assassina!…” Acordei assustada e estou doente. Contei o caso à Tia Emerenciana, e ela declarou acreditar que me tenham voltado à memória minhas vidas passadas, que eu teria provavelmente provocado a morte desses moços, e que o sonho será talvez uma advertência do Plano Espiritual para que eu me decida a recebê-los agora, como filhos, em meu coração e em minha casa… Não aceito essas superstições.


1958 — 7 de maio — Sonhei outra vez com os dois rapazes, exterminando-se por minha causa. A conversa sobre filhos foi retomada por Tia Emerenciana e por mim, junto de Alfredo. Meu marido admite a chamada reencarnação e quer filhos. Eu não tolero nem uma coisa, nem outra.


7 de novembro — Não suporto tanta gente a me falar sobre filhos. Detesto!


1960 — 5 de janeiro — Consegui hoje outro aborto. Dona Antônia me confessou que, se eu esperasse, teria gêmeos. Deus me livre!…


1961 — 6 de dezembro — Tenho a ideia de que fiquei muito fraca depois do segundo aborto. Ando triste, acabrunhada… E o terrível sonho voltando sempre…


1963 — 10 de setembro — Meu marido e Tia Emerenciana me levaram a um grupo espírita para ouvir preleções sobre assuntos de reencarnação. Querem que eu refaça minha saúde com sermões. Uma senhora simpática me garantiu que ficarei boa se me decidir a ser mãe, acrescentando que os tais homens que ando vendo em sonho, quase que constantemente, são entidades com quem me comprometi em existências pretéritas e que necessitam de mim para renascerem na Terra… Nada sei disso e nem quero saber.


1965 — 9 de junho — Sinto-me nervosa, muito cansada, enfastiada de remédios. E os sonhos agora parecem alucinações permanentes. Às vezes, chego quase a crer que os dois acusadores estão abeirando-se de mim, até mesmo durante o dia… Dizem por aí que me fiz obsidiada e que preciso ser mãe. Conversas!…


1966 — 8 de julho — Tia Emerenciana me comunicou haver recebido mensagem do Espírito de minha vovozinha Candoca, que me teria enviado um recado assim: “Se você, minha filha, receber os adversários desencarnados nos braços de mãe, abrigando-os por filhos, sua saúde voltará…” Como gostaria de acreditar numa história como esta!


1967 — 8 de maio — Pratiquei outro aborto, mas estou pior, muito perturbada e deprimida…


10 de setembro — Comecei novo tratamento para nervos. Só vejo os homens do sonho na imaginação e escuto vozes por dentro de mim, condenando-me, ameaçando-me…


1968 — 2 de março — Tomarei qualquer espécie de anticoncepcionais. Não quero filhos, decididamente não quero!


1969 — 4 de abril — Estou arrasada. Minha cabeça é um turbilhão. Observo que até os médicos mais amigos não me aguentam mais…


18 de julho — As figuras infelizes e grotescas de meus sonhos não mais me largam. Parecem demônios que se combatem e, depois de lutas tremendas um contra o outro, se voltam contra mim. Coitado do Alfredo!… É um homem aniquilado. Desde que Tia Emerenciana morreu, no ano passado, já não tenho ninguém que me reconforte. Emagreci. Sou hoje uma sombra do que fui… Mas, o pior de tudo é a cabeça… Oh! Meu Deus, quem me auxiliará a tolerar a bola de angústia e de fogo que carrego nos ombros?…




Nesse ponto terminaram as observações que nos interessavam, no curioso caderno. Entretanto, já sabíamos o suficiente para socorrer, de algum modo, a Senhora M…, em dolorosas crises no hospício, arruinada nas forças orgânicas e mentalmente subjugada por dois implacáveis obsessores — os amados de outro tempo e filhos desditosos que não chegaram a nascer.


(.Humberto de Campos)


Irmão X
Francisco Cândido Xavier


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