Lázaro Redivivo

Versão para cópia
Capítulo XXIX

Espírito desencarnado

O Espírito de Garcia Maciel aproximava-se do “outro mundo”, tomado de infinito receio. ()

Afinal, não era a morte outro monstro lendário a desafiar a pobreza humana. Fizera-se Hércules, mentalmente, para sentir-se desafrontado, ante a serpe desconhecida, mas, agora, desejava fazer-se verme. Ao longe, acenava-lhe outra paisagem. Desdobravam-se, perante os seus olhos extasiados, maravilhas de natureza divina, que jamais pudera conceber na jaula dos ossos. E sentia bem que a sua antiga organização fisiológica não passava de jaula, embora de essência divina, porque, observando a amplitude dos novos céus e a beleza dos caminhos novos, chegava à conclusão de haver atravessado a existência humana na condição de uma fera. Lembrava os tempos de revolta íntima, os desequilíbrios emocionais de que era vítima constante, e sentia vergonha. No fundo, acreditava não ter vivido à luz dos valores espirituais e sim à maneira de leão, provisoriamente guindado à forma humana. Os gritos de vaidade ferida, os ataques de orgulho humilhado, com os quais tantas vezes escandalizara os amigos e inimigos, não constituíam característicos do grande animal do deserto?

Foi por isso que Garcia Maciel, homem sofredor, que desempenhara atribuições de escriba moderno entre as criaturas, chorou copiosamente, envergonhado e abatido.

Rabiscara muitas páginas e gastara imensa quantidade de fosfato e papel, informando o público. Entretanto, como não se lembrara de escrever exaltando a vida vitoriosa? Preferira a consulta incessante aos arquivos e a descida ao passado remoto. Entusiasmara-se com as histórias de deuses e ninfas, perdera-se nas divagações dos filósofos e mergulhara a mente nos documentos antigos, como o rato de livros velhos, para enfileirar, em seguida, as referências preciosas, mas… e a realidade eterna? Em verdade, não lhe merecera maior atenção. Fixara o momento, pincelara o quadro da hora, absorvera-se no imediatismo, mas olvidara o espírito imortal e a grandeza do Universo Divino. Admitira, nos seus tempos de pão difícil, que a decifração dos mistérios da alma era função do sacerdote, mas a revelação defrontava-o ali, depois do sepulcro, a ele que não fora ministro religioso de qualquer confissão e que se filiara, sempre, à congregação dos desiludidos e descrentes.

Banhavam-no os raios da luz misericordiosa e sublime das bênçãos de Deus.

Demorou-se Garcia algum tempo, em jornada ativa, antes de alcançar as primeiras portas. Ao seu lado, outros seguiam, receosos e angustiados. Ninguém poderia varar a fronteira sem limpar os pés e mudar as sandálias.

Depois do inesperado esforço e da longa expectativa, entrou, humilde. Contudo, a autoridade espiritual que presidia no pórtico, recebeu-o com carinho e bondade. Não o tratava como se fora um leão, de quem se sentia ele parente próximo. Acolhia-o como a um menino necessitado de socorro, desses que se perdem na rua, não por falta de assistência, mas pelo congênito apego à vagabundagem.

Saudações e agradecimentos.

— Agora, meu amigo — falou o porteiro, amável —, te encontras no limiar de maravilhosa e divino santuário. É preciso, entretanto, esperar, muito tempo, a entrada definitiva. Todavia, podes penetrar o átrio, descansar e refazer-te.

Semelhante concessão significava uma bênção. As perspectivas eram magníficas. Estradas brilhantes desenhavam-se-lhe aos pés, recordando o paraíso bíblico, iluminado por leques de luz e atapetado de flores resplandecentes. Para o recém-chegado, o átrio, em si mesmo, já significava o Céu. Entretanto, Garcia recuou. E os amados? Deixara no purgatório terrestre as afeições mais doces.

O encarregado da recepção compreendeu-lhe a angústia e perguntou:

— Que sentes?

— Meu benfeitor — disse o novato, hesitante —, e os bens de minhalma que ficaram na Terra?

— De ti mesmo, constam aqui somente os bens que trouxeste. Quanto aos que deixaste na Esfera carnal, constituíam um empréstimo a longo prazo.

Desapontado, Garcia tornou:

— E a esposa, os filhos, os amigos?

— Todo amor que entesouraste — esclareceu o interlocutor — servirá a ti mesmo. Bem-aventurado aquele que ama sem aguardar retribuição! Quando o matrimônio é de almas, a união continua independentemente da distância e do corpo físico; quando os filhos compreendem os pais e os amam, a morte não extingue os laços que os identificam, e quando os amigos estimam as qualidades espirituais, a separação temporária não anula a confiança fraternal. No entanto, se esses fundamentos não preponderavam em suas ligações, todos os títulos do sangue e da convenção representam, de fato, o passado morto, extinguindo-se com a derradeira pá de terra que te cobriram os despojos.

Garcia experimentou o frio terrível de quem pela primeira vez se encontra com a verdade.

— Oh! como desejava esquecer tudo! — exclamou.

— Ainda não mereces, porém, a bênção do olvido construtivo — aduziu o porteiro, afavelmente —, antes, é necessário voltes ao mundo, a fim de apagar certas garatujas de tua pena. Prestaste aos homens muitas informações descabidas e torna-se indispensável substituí-las por esclarecimentos legítimos. De quando em quando, voltarás aqui, refazendo as forças; todavia, somente depois de completares a obra penetrarás o templo sublime, onde os redimidos esquecem todo o mal.

Garcia agradeceu e recolheu-se ao repouso.

Volvido algum tempo, apresentou-se em forma ao orientador e solicitou o programa de serviço.

— Regressarás em espírito ao campo antigo — explicou o benfeitor — e ensinarás o bem e a verdade, lutando contra o terror da morte e glorificando a alegria da vida. Mas, ouve: abstém-te de todas as preocupações pessoais, inclusive do nome que te serviu entre as criaturas. Lembra-te de que o santuário te fará conhecer mais tarde o nome que te guarda o Senhor, no livro da vida eterna.

Garcia, contudo, que tanto se envaidecia, noutro tempo, ante as próprias páginas, perguntou, desconcertado:

— Como me identificarei entre os homens?

O porteiro fez um gesto expressivo e informou:

— Não te preocupes. Para eles, por mais que te esforces, serás sempre “alma do outro mundo” ou “Espírito desencarnado”.

O antigo escrevinhador voltou à Terra, mas não se conformou. Queria fazer-se visto, ouvido, conhecido, identificado e usou o seu nome, largamente, como o industrial que usa a marca de sua fábrica.

Dentro em pouco, porém, era tamanha a perturbação em torno de sua memória, que o pobre amigo se quedou, confundido e desanimado, em profundo silêncio.

O trabalho, contudo, esperava-lhe a boa vontade e Garcia regressou à oficina bendita do esclarecimento e da fé, de alma novamente voltada para a Misericórdia divina.

Entretanto, ao fazer-se sentir entre os velhos companheiros de luta, se alguém indagava de sua identidade, respondia invariavelmente:

— Não, meus amigos, eu não sou Garcia Maciel. Eu sou “alma do outro mundo”, “Espírito desencarnado”…


(.Humberto de Campos)


Irmão X
Francisco Cândido Xavier


Acima, está sendo listado apenas o item do capítulo 29.
Para visualizar o capítulo 29 completo, clique no botão abaixo:

Ver 29 Capítulo Completo
Este texto está incorreto?