Lázaro Redivivo

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Capítulo XL

O júri negativo

O Espírito de Rodrigo Oberon, antigo homem de letras na Terra, foi chamado a um júri familiar, constituído de afeiçoados e colegas que com ele haviam privado intimamente na luta material.

O desencarnado dera notícias de si mesmo, depois da morte, e o fato alvoroçara o antigo campo doméstico, provocando estranheza geral. Contudo, diante das consequências morais que a surpresa envolvia, os velhos camaradas do morto repeliram a boa-nova, energicamente. Oberon, todavia, não se intimidou e, porque habitasse agora o país da verdade, continuou escrevendo, dirigindo-se, não mais aos irmãos de outro tempo, mas aos companheiros de boa vontade que a nova tarefa lhe dera a conhecer, enriquecendo-lhe o coração. Ante a insistência dele, porém, os amigos reclamaram-lhe a presença, em reunião mais íntima, a que o médium, acusado de embusteiro e mistificador, compareceu constrangido, encarcerado em justas inibições. No entanto, tamanho era o bom deseja de Rodrigo, que os óbices naturais foram vencidos e ele conseguiu manifestar-se perante a assembleia de irmãos do pretérito, agora convertidos em simples investigadores.

Logo notou que ninguém, na sala, recebia a visita com a espontaneidade desejável. Todos os presentes timbravam em fixar atitudes de vigilância. Alguns arregalavam os olhos, outros apuravam a acuidade auditiva, para intensificar a severidade da crítica.

Oberon, todavia, enganado em seus melhores e mais belos propósitos, deu vazão à emotividade que lhe banhava a alma e, chorando de júbilo, dentro dos conhecimentos dilatados que a morte lhe outorgara, saudou, comovidamente:

— Meus amigos, que a paz de Deus esteja conosco!

Entreolharam-se admirados os assistentes. Um deles rompeu a estupefação e comentou em voz alta:

— Oh! que significa isto? Rodrigo Oberon era um ateu inteligente, não falaria agora com relação a Deus.

Antes que as opiniões contraditórias se fizessem ouvir com mais calor, evidenciando menosprezo à preciosa oportunidade, Rodrigo asseverou, paciente:

— Amigos, a morte modifica-nos. Impossível insistir na negação sistemática, diante das afirmações da vida vitoriosa.

E passou a relacionar consoladoras reminiscências, referindo-se a acontecimentos e datas inesquecíveis. Todavia, enquanto o desencarnado expandia sublimes emoções, os presentes acentuavam a frieza do primeiro instante de observação. Fizera Oberon ligeiro intervalo e um deles considerou atrevidamente:

— Isto não constitui prova. O médium conhece a biografia do morto.

E sorrindo, irônico, acrescentava:

— Quem a ignoraria, porventura?

Sentindo que não se fazia conhecer pelo passado que recordava, perante os indagadores intransigentes, Rodrigo passou a falar do novo plano de existência, descrevendo-lhe a beleza divina. A assembleia, porém, escutou impassível e um dos antigos companheiros exclamou, na primeira pausa do narrador:

— Tudo mentira! Onde não observamos o desvario dum cérebro dementado, vê-se a mistificação criminosa. A descrição é puramente fantástica!

Fixando os olhos miúdos nos colegas, tão rígidos de sentimento quanto ele, indagava, sarcástico:

— Não teremos bastante ficção no mundo?

O Espírito permanecia angustiado. Estudava apressadamente um meio de prosseguir na defensiva afetuosa da verdade, quando um amigo se aproximou e dirigiu-lhe certa pergunta indiscreta, alusiva à família consanguínea. Ele sabia que se a morte o conservava sem mudança espiritual, não se verificava o mesmo no ambiente doméstico. A separação, na esfera terrena, determinara modificações apreciáveis em sua casa. Ferido no mais íntimo dalma pela crueldade da solicitação, respondeu timidamente:

— Não me obriguem, por piedade, a opinar em situações que devo esquecer. Não me cabe o direito de interferir nas decisões respeitáveis dos que me foram amados no mundo! não posso, não posso!…

Contudo, insensível ao seu sofrimento, um dos investigadores considerou:

— Não veem? Estamos presenciando um caso de cadeia ou sanatório. Quando se procura a identificação do morto, o Espírito recua…

A estas palavras, seguiram-se gargalhadas sonoras…

Rodrigo não desanimou. Reunindo os recursos verbais, referiu-se, profundamente emocionado, aos laços sublimes da ternura e da compreensão nas velhas alegrias da camaradagem terrestre, mas, ao terminar, alguém gritou desrespeitosamente:

— Simples banalidades! Acabemos a farsa! o diabo não tem família!

Oberon tentou explicar-se, ainda, comentando com humildade a sua posição difícil, no momento, e relacionando as surpresas que aguardam o homem, além do sepulcro. Todavia, antes de concluir, um dos assistentes cortou-lhe a palavra, injuriando-lhe a presença:

— Vá, Satã imbecil! Um escritor medíocre não cometeria os erros de psicologia e linguagem que a sua audácia atribui ao nosso amigo morto. Saberemos vingar-lhe a memória, castigaremos os culpados desse ato burlesco, em que um demente, apelidando-se de médium, desempenha o papel do histrião criminoso, cabotino e inconsciente!

O Espírito calou-se e, depois de orar em silêncio, sufocado pelas lágrimas abundantes, despediu-se em voz pausada:

— Adeus, amigos! Nunca mais, enquanto permanecerem na carne, ouvirão Rodrigo Oberon em júris familiares. Entretanto, já que vocês não me recebem no céu do entendimento, eu irei encontrá-los no inferno da incompreensão na primeira oportunidade. Recusam agora o amigo que a vida lhes devolve, mas a morte esperará por vocês todos, encaminhando-os ao diabo que invocam. Até à vista!

E, sob forte impressão, dissolveu-se a pequena assembleia para que os velhos camaradas do morto continuassem marchando, por si mesmos, ao encontro da verdade, ferindo os próprios pés, no caminho vasto da experiência.


(.Humberto de Campos)


Irmão X
Francisco Cândido Xavier


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