Capítulo XXVII

Tudo relativo


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Quando o Espírito comunicante, cheio de boa vontade, se referiu ao domicílio na vida extrafísica, Rafael, um irmão que se caracterizava pelos primores da inteligência, objetou, mordaz:

— Casas no Além? que contrassenso!…

O mensageiro, não obstante desapontado, registrou impressões da vida social no “outro mundo”. Então, o mesmo cavalheiro ironizou sem pestanejar:

— Ora esta! sociólogos além-túmulo? era o que nos faltava.

O emissário não desanimou. Aludiu aos jardins que lhe cercavam a residência.

— Que é isso? — indagou o investigador que apreciava os sarcasmos sem-fim — serão os jardins suspensos de Semíramis? qual! Tudo mera ilusão!… Depois de nossas roseiras espinhosas e de nossos adubos desagradáveis, não há canteiros de fluidos.

A entidade perseverante reportou-se aos institutos de ensino que frequentava. No entanto, o mau obreiro deu-se pressa em considerar:

— Se os “mortos” estiverem sujeitos à luta estudantil, estamos francamente perdidos.

O comunicante não desistiu. Passou a dizer da expectativa sublime que alimentava, aguardando a esposa querida, além do sepulcro. O companheiro irreverente, entretanto, fez-se ouvir na mesma inflexão de zombaria:

— Deliciosa mentira! onde já se viu casamento na esfera das almas?

O portador da mensagem não desfaleceu. Comentou os problemas do corpo sutil que lhe servia, agora, à consciência. Enumerou as facilidades e os obstáculos que o defrontavam, mas o fraternal inquisidor observou, céptico:

— Espírito não tem corpo. Simples fantasia. Presenciamos fenômenos de puras impressões alucinatórias.

O prestimoso estafeta das boas novas, que vinha do reino espiritual, despediu-se finalmente.

Ante os colegas curiosos e inquietos, o renitente analista esclarecia enfaticamente:

— Mais objetividade! Nada de ilusões! Sou um homem que sabe julgar.

Após o incidente, afastou-se do grupo de trabalhadores do bem. Afirmava-se demasiadamente realista para aceitar, sem maior exame, as descrições dos desencarnados. Situava a concepção doutrinária num campo de absoluta transcendência.

Devotados amigos, bastas vezes, rogaram-lhe a volta aos estudos. Parentes interpunham recursos afetivos, a fim de que retomasse o salutar esforço da crença religiosa. Todavia, foi Rafael impermeável a todas as ponderações. Ouvia os apelos, esboçava gesto brejeiro e arremedava um texto evangélico:

— Deem à matéria o que é da matéria e ao espírito o que é do espírito. Fora disso, não compreendo a atitude de vocês.

E rematava, orgulhoso de si:

— Não se esqueçam de que sou um homem que sabe julgar.

Veio, porém, o minuto em que foi arrebatado da vida carnal. Desalentado, aflito, estabelecia a própria identidade. Afinal — monologava para dentro — a mudança não fora tão grande. Mentalmente, sentia-se o mesmo homem. E, no íntimo, não conseguia eliminar o desejo louco de regressar aos negócios, atividades e afetos que o imantavam ao campo humano. Meditava na justiça divina e buscava tranquilizar-se. Não se lembrava de haver praticado o mal com o propósito deliberado de ferir alguém. Não cometera crime algum. No fundo dalma, contudo, mantinha certa inquietude. Concluía que prejudicara a si mesmo. Não se dera à observação da verdade, tanto quanto devia. Não seria razoável o retorno à zona terrestre, para intensificar indagações? quem sabe? talvez pudesse prover-se de melhores recursos, em benefício da paz interna.

A aproximação de iluminado mensageiro espiritual sustou-lhe a marcha dos pensamentos. Contemplou-o, esperançoso, e pediu, com respeito:

— Benfeitor divino, acudi-me!… Dizei-me onde está a minha propriedade terrestre?

O interpelado respondeu com benevolência:

— Propriedade sua? que enorme equívoco!…

— E meu corpo físico? — interrogou Rafael, choroso.

— Seu veículo de carne, agora, meu amigo, é simples fantasia.

— Meus bens?

O emissário sorriu e ajuntou:

— Se seu tesouro não está guardado no espírito imperecível, suas vantagens de outro tempo não passavam de ilusão…

— Minhas apólices, meus títulos? Registravam-me o nome!…

— Para impressão de alguns anos — esclareceu o preposto da realidade divina.

— Meus filhos?

— Eram de Deus, primeiramente, antes de serem encaminhados à sua paternidade provisória.

— Minha mulher? onde está ela? Sempre me obedeceu cegamente. Dar-se-á o caso de haver-me abandonado também?!…

— Sua companheira associava-se com renúncia e bondade ao seu destino, mas nunca foi uma escrava de seus caprichos. Conserva um título de filiação celeste, tanto quanto você mesmo.

— Meu gabinete na cidade, meu sítio no campo, meus documentos, meus interesses…

— Sim, tudo para você, presentemente, é serviço feito, resíduo do passado, que persiste em deter na mente enfermiça, antes de verificar o proveito das lições que viveu no mundo…

— Oh! que horror! — gritou Rafael, apavorado — como entender tudo isto? quem estará sob o domínio de simples impressões? os que partem da Terra ou os que por lá se demoram? os que “morrem” ou os que “vivem”?

O benfeitor sorriu, de novo, e concluiu:

— Consulte a própria consciência. Como sempre, você é um homem que sabe julgar…


(.Humberto de Campos)


Irmão X
Francisco Cândido Xavier


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