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Capítulo XXI

O empréstimo


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Rosalino Perneta alcançara os círculos da morte, em falência integral. Extrema bancarrota. Perdera todas as ricas possibilidades que o Senhor lhe colocara nas mãos.

Estava sozinho, sob o látego do remorso e do sofrimento. Por anos longos viveu assim o desventurado, chorando os dias perdidos e implorando a concessão de oportunidades novas.

Os lustros sucediam-se uns aos outros, quando Sizínio, velho amigo espiritual, veio ao encontro dele, fazendo-se-lhe visível.

Rosalino caiu-lhe aos pés, em soluços.

— Meu abençoado amigo — clamou em lágrimas —, por que tamanha desdita? vivo num inferno de sombras e padecimentos incríveis. Onde está Deus que se não compadece de minha miserabilidade?

Sizínio contemplou-o, paternalmente, e observou:

— Não, Perneta. Não te lastimes de semelhante modo. Antes de tudo, recorda os próprios erros e lava o coração nas águas do arrependimento. Não atendeste aos deveres humanos, não cultivaste o campo da espiritualidade enobrecida, mergulhaste a alma em verdadeiro banho de lodo. Que fazer, agora, senão suportar a reparação com paciência? Tem confiança e solidifica os bons propósitos.

O infeliz tentou enxugar o pranto copioso e, depois de outras considerações, alusivas ao passado, interrompidas pelas advertências e frases consoladoras do amigo espiritual, Rosalino terminou:

— Ah! se eu pudesse voltar!… se eu pudesse renascer!…

E, fixando no benfeitor o olhar dorido, acentuava:

— Sizínio, meu grande irmão, não poderias obter-me a oportunidade nova? Auxilia-me, por piedade…

Intensamente comovido, o interlocutor prometeu ajudá-lo no que estivesse ao seu alcance.

E, com efeito, em breve Sizínio regressou à sombria furna, trazendo esperanças novas.

Rosalino recebeu-o, radiante.

— Perneta — disse o amigo generoso —, sabes que o aval é ato grave para quem lhe assume a responsabilidade.

— Sei, sim — respondeu o mísero.

E o benfeitor prosseguiu:

— Não ignoras também que, por enquanto, não tens direito a reclamação alguma.

— Reconheço.

— Desconsideraste as oportunidades divinas, menosprezaste a família, o trabalho, o corpo físico…

— Tudo é verdade — gemeu o infeliz.

— Pois bem — continuou a entidade amiga —, não encontrei nenhuma expressão valiosa em tua existência última, na qual me pudesse basear, a fim de pedir alguma coisa em teu nome. Em razão disso, não somente reforcei tuas súplicas, como também solicitei um empréstimo para a tua experiência nova. Há na Terra grande movimento de restauração do Evangelho, renovando esperanças e redimindo corações. Terás nele humilde e valiosa posição de trabalhador e ensinarás, no plano dos encarnados, o caminho justo aos necessitados da Esfera visível e invisível. Entretanto, meu caro, o serviço não será fácil, porque não se resumirá a questão de palavras. Serás constrangido a viver o ensinamento em ti mesmo, não atenderás aos caprichos próprios, não procurarás o contentamento da ilusão, mas, sim, atenderás a tudo o que represente interesse de Jesus, no círculo das criaturas. Deves muito aos homens e encontrarás no empréstimo a que me refiro os recursos indispensáveis ao pagamento.

Rosalino ouvia, feliz.

— Recomendo, com insistência — acentuou Sizínio, criterioso —, não esqueças a tua condição de devedor. O lar, o carinho dos teus, a bênção materna, a saúde física, o ambiente de trabalho, o pão cotidiano, o campo de testemunho cristão e todas as demais possibilidades constituirão o precioso depósito do Senhor confiado em caráter experimental às tuas mãos, porque não dispões ainda do justo merecimento. Recorda que vais movimentar um patrimônio que te não pertence por direito e que receberás, por bondade de Jesus, semelhante concessão a título precário. Vê como te comportas!…

Prometeu Rosalino fiel observância ao compromisso.

Fez cálculos, expôs o que pensava do futuro e até marcou o tempo de materializar no mundo as promessas que formulava, entusiasta, com o grande otimismo do devedor, junto à fonte de recursos novos.

Sizínio mobilizou as medidas necessárias e o amigo teve a felicidade de renascer junto de pais cristãos que, desde o berço, lhe forneceram sublimes notícias do Cristo.

Perneta, no entanto, nas primeiras recapitulações, demonstrou a maior teimosia e a antiga má-vontade.

Não valiam lições de Jesus no Evangelho, conselhos paternais e sugestões superiores e indiretas de Sizínio que o acompanhava, solícito, do plano espiritual. Apesar de advertido, assistido e guiado, Perneta não queria saber de problemas fundamentais do destino.

Apossara-se novamente da vida terrestre, como o fauno sequioso de prazer na floresta das emoções planetárias.

Convidado ao serviço de espiritualização, não respondeu à chamada, alegando que os pais cometiam a loucura de se devotarem ao bem dos outros. Dizia-se incompreendido, inadaptado e, se alguém o compelia a raciocínios mais lógicos, reportava-se à escassez de tempo e à falta de oportunidade.

Voltou vagarosamente aos mesmos erros criminosos de outra época. Casou-se, foi esposo e pai, mas nunca se rendeu, de fato, às obrigações do lar, junto da esposa e dos filhos.

Borboleteava, à procura de sensações que lhe saciassem a vaidade. Quando alguma voz amiga se referia à espiritualidade, esquivava-se ao assunto, apressado. Não pretendia cogitar de assuntos referentes à religião, à morte, ao “outro mundo” — dizia, enfático e orgulhoso.

Sizínio, vigilante, desvelara-se no sentido de chamá-lo aos compromissos assumidos; no entanto, tão grandes faltas perpetrara Rosalino, que, ao atingir ele os quarenta e cinco anos, outros amigos espirituais da família que o recebera, generosamente, começaram a reclamar providências ativas. Em vão se movimentou o avalista, no propósito de acordá-lo para as realidades essenciais. Perneta, porém, não respondia satisfatoriamente. Declarava-se muito bem, desenvolvendo embora a longa série de disparates.

A experiência, todavia, chegava ao fim. Em virtude da rebeldia e da ingratidão de Rosalino, os superiores espirituais intimaram Sizínio a retirar o empréstimo concedido. Não obstante a amargura, o velho amigo foi obrigado a obedecer.

O avalista iniciou o trabalho, alimentando, ainda, a esperança de que o companheiro despertasse.

Operou devagarinho, ansioso de observar-lhe alguma reação benéfica, mas o desventurado não sabia senão revoltar-se e ferir.

Primeiramente, a esposa de Perneta foi chamada à vida espiritual; em seguida, os filhinhos separaram-se de sua companhia. A casa em que se lhe situara o ninho doméstico foi a leilão para pagamento de vultosas dívidas. Perdeu, mais tarde, o emprego e a consideração dos amigos. Os bens emprestados foram sendo recolhidos por Sizínio, lentamente.

Rosalino, porém, não mostrava qualquer sinal de renovação. Foi irredutível na maldade, na ingratidão, na blasfêmia.

Por fim, o avalista retirou-lhe a última concessão, que era a saúde física.

No leito humilde de hospital, reconsiderou Perneta a situação, refletiu com mais clareza nas bênçãos de Deus e meditou na eternidade, desejando voltar no tempo, mas… era tarde.

Não valeram rogativas e prantos. Em manhã muito fria, absolutamente isolado de todos, apartou-se do corpo de carne, premido pelas exigências da morte.

Recomeçou para ele, então, o angustioso caminho.

Recordou o empréstimo, a dedicação do benfeitor, os compromissos anteriores, a bondade que o cercara em todos os instantes, no transcurso de sua experiência, na Terra. Implorou a presença da esposa, nas densas trevas de que se rodeava, mas o silêncio inalterável era a única resposta às suas súplicas. Não obstante envergonhado, rogou a visita de Sizínio, mas o benfeitor, agora, parecia inacessível.

Desdobraram-se muitos anos, quando, um dia, o amigo dedicado se fez visível, novamente.

— Sizínio! Sizínio! — gritou Perneta, em lágrimas dolorosas — ajuda-me! compadece-te de mim! Estende-me as tuas mãos, nobre amigo! Perdoa-me e atende-me!

E, antes que o velho companheiro respondesse, desfiou o rosário das justificativas, das reclamações, dos remorsos e desculpas.

Quando terminou, em soluços, o protetor fixou nele o olhar muito lúcido e asseverou:

— Por enquanto, Rosalino, ainda não paguei todas as consequências do empréstimo que te foi concedido e do qual fui espontaneamente avalista. Tuas lágrimas, agora, não me sensibilizam tão fortemente o coração.

Ofereci-te o suor que salva, mas preferiste o pranto que lamenta. Pede, pois, ao Senhor que te renove a esperança, porque, para voltar ao empréstimo contraído, é muito tarde!…


(.Humberto de Campos)


Irmão X
Francisco Cândido Xavier


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