Pontos e Contos
Versão para cópiaO testemunho
Um santo homem repousava, junto a velho poço, em Cesareia, quando se aproximaram dele alguns jovens aprendizes do Evangelho, rogando-lhe esclarecimentos sobre o testemunho a que se referem todos os orientadores da virtude cristã, na preparação espiritual.
O ancião fez um gesto de bênção e falou sem preâmbulos:
— Um devotado judeu convertido à Boa Nova resolveu transportar a palavra do Senhor para certa comunidade rural da antiga Fenícia, onde residia, no intuito de guiar corações amigos, das trevas para a luz.
Inflamado de entusiasmo, saiu de Jerusalém para a nova pátria que adotara, após recolher os ensinamentos do Messias, através dos apóstolos, em ambiente familiar.
Mente modificada e coração refeito, passou a ensinar as verdades novas, sem perder o calor da fé, ante a gelada indiferença, de velhos companheiros de luta.
Ninguém queria saber de perdoar inimigos ou auxiliá-los e muito menos de lançar mão dos próprios haveres, em favor da fraternidade e, por isto, o pobre doutrinador foi insultado e apedrejado em praça pública.
Decorrido longo tempo de esforço inútil, deliberou transferir-se para aldeia próspera, situada às margens do Eufrates, onde contava com diversos amigos, e pôs-se a caminho, sem vacilar.
Seguia estrada fora, de pensamento voltado para o céu todo azul e ouro, agradecendo ao Mestre a bênção das flores e das brisas que lhe adocicava a marcha, quando, a certa altura de zona pantanosa, surpreendeu ardiloso crocodilo que, sorrateiro e voraz, rastejava ao seu encontro.
Compreendeu a extensão do perigo e tentou evitá-lo. Recuou, instintivamente; todavia, dois temíveis animais da mesma espécie buscavam atacá-lo pela retaguarda.
Sabia que, não longe, existia pequena cabana a que poderia abrigar-se e deu-se pressa em alcançá-la; atingindo-a, porém, reparou, surpreendido, que a choça fora incendiada por anônimo delinquente.
Procurou a margem de grande canal próximo, onde pequena ponte lhe proporcionaria passagem para outro lado da região; entretanto, a ponte rústica fora arrebatada por inundações recentes.
A esse tempo, outros crocodilos se haviam agregado aos três primeiros e o viajor, apavorado, no intuito de preservar-se, encaminhou-se para uma cova antiga não muito distante; contudo, ao abordá-la, notou que enorme serpente lhe ocupava o fundo, apresentando-lhe agressiva cabeça.
Atordoado, dirigiu-se para duas árvores aparentemente vigorosas e tentou escapar, através de uma delas, mas, em poucos segundos, o vegetal tombou fragorosamente, restituindo-o ao chão; escalou a segunda e repetiu-se a experiência. As raízes haviam sido destruídas por vermes invasores.
Lembrou-se o convertido de certo montículo de pedras e, concluindo que algo devia possuir para defender-se convenientemente, correu a buscá-lo; no entanto, somente encontrou sinais de trabalhadores que, sem dúvida, as teriam transportado para alguma construção das adjacências.
Ávido, buscou algum elemento para a defensiva natural; todavia, o terreno fora lavado por chuvas copiosas e não viu sequer a mais leve acha de lenha.
Desacoroçoado, subiu pequena eminência, com a intenção de despejar-se em algum vale, mas, alcançando o topo, descortinou simplesmente o abismo e compreendeu que o abismo significava a morte.
Então, aquele homem que tanto se torturara, fitou o céu, ajoelhou-se e, ante as feras que se aproximavam, clamou, confiante:
— Mestre, cumpram-se no escravo os desígnios do Senhor!
Nesse ponto da experiência, o discípulo, espantado, lobrigou tênue neblina, da qual, numa reduzida fração de minuto, emergiu o próprio Jesus, radiante e belo, que lhe disse, bondoso:
— Não temas! Estou aqui. A minha graça te basta.
Forte ventania soprou, célere, e os ferozes sáurios recuaram assombrados.
O narrador fez demorada pausa e concluiu:
— Todos os seguidores do Senhor encontrarão adversários na senda de purificação… Quanto mais adiantado o curso em que se encontram, maior é o número de testemunhos e de lições, porque as dificuldades, obstáculos, perseguições e incompreensões são sempre feras simbólicas. Há discípulos que encontram um crocodilo por ano, outros recebem um crocodilo mensal ou semanal e muitos existem que são defrontados por uma romaria de crocodilos de hora em hora, dependendo as experiências do avanço levado a efeito… Nesses momentos preciosos e importantes, contudo, não vale qualquer recurso à proteção das forças exteriores, porque, na escola divina da ascensão, cada aprendiz deverá encontrar o socorro, a resposta ou a solução, dentro de si mesmo.
E antes que os jovens formulassem as novas indagações que lhes assomavam à boca, o velhinho ergueu-se, arrimou-se a humilde bordão, despediu-se e seguiu para a frente…
(.Humberto de Campos)
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