Missionários da Luz
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Certa noite, finda a dissertação que Alexandre consagrava aos companheiros terrenos, meu orientador foi procurado por duas senhoras, que foram conduzidas, em condições especialíssimas, àquele curso adiantado de esclarecimentos, porquanto eram criaturas que ainda se encontravam presas aos veículos de carne e que procuravam o instrutor, temporariamente desligadas do corpo, por influência do sono.
A mais velha, evidentemente Espírito mais elevado, pelas expressões de luz de que se via rodeado, parecia muito conhecida e estimada de Alexandre, que a recebeu com indisfarçáveis demonstrações de carinho. A outra, porém, envolvida num círculo escuro, trazia o semblante lacrimoso e angustiado.
— Ó meu amigo! — Exclamou a entidade mais simpática, dirigindo-se ao benévolo orientador, depois das primeiras saudações, — trago-lhe minha prima Ester, que perdeu o esposo em dolorosas circunstâncias.
E enquanto a senhora indicada enxugava os olhos, em silêncio, acabrunhadíssima, a outra continuava:
— Alexandre, conheço a elevação e a urgência de seus serviços; entretanto, ouso pedir sua ajuda para os nossos pesares terrestres! Se houver absurdo em nossa rogativa, desculpe-nos com o seu coração clarividente e bondoso! Somos mulheres humanas! Perdoe-nos, pois, se batemos à sua porta de benfeitor, para atender a problemas tristes!…
— Etelvina, minha amiga, — falou o instrutor, com entonação de ternura, — em toda parte, a dor sincera é digna de amparo. Se há sofrimentos na carne, existem eles também aqui, onde nos encontramos sem os despojos grosseiros e, em todos os lugares, devemos estar prontos à cooperação legítima. Diga, portanto, o que desejam e ponham-se à vontade!
Ambas as senhoras demonstraram-se aliviadas e passaram a conversar calmamente.
Etelvina, satisfeita, apresentou então a companheira que começou a relatar seu doloroso romance. Casara-se, fazia doze anos, com o segundo noivo que o destino lhe reservara, esclarecendo que o primeiro, ao qual amara muito, suicidara-se em circunstâncias misteriosas. A princípio, preocupara-se intensamente com a atitude de Noé, o noivo primeiro, bem-amado de seu coração; todavia, o devotamento de Raul, o esposo que o Céu lhe enviara, conseguira desfazer-lhe as mágoas do passado, edificando-lhe a ventura conjugal, com amoroso entendimento. Haviam recebido três filhinhos da Providência Divina e viviam em harmonia completa. Raul, conquanto melancólico, era dedicado e fiel. Quantas vezes desejara ela balsamizar-lhe, em vão, as chagas recônditas! O companheiro, todavia, nunca se lhe revelara plenamente! Apesar disso, a existência corria-lhe venturosa e calma, no santuário da mútua compreensão. Não obstante, porém, viverem para o desempenho das sagradas obrigações domésticas, apareceram inimigos ocultos que lhes haviam subtraído a felicidade. Raul fora assassinado inexplicavelmente. Amigos anônimos recolheram-lhe o cadáver na via pública, trazendo-lhe à casa a terrível surpresa. Tinha ele o coração varado por um tiro de revólver, que, embora encontrado junto do corpo exangue, não lhe pertencia. Que mistério envolveria o hediondo crime? Diversos populares e policiais acreditavam tratar-se de suicídio, tanto assim que todas as diligências da justiça criminal se encontravam interrompidas; entanto, em sua convicção de mulher, admitia o assassínio. Que motivos conduziriam um homem bom e trabalhador ao suicídio sem causa? porque se mataria Raul, quando tudo lhes era favorável, relativamente ao futuro? Inegavelmente, seus recursos financeiros não eram extensos, mas sabiam equilibrar, com decência, a despesa doméstica e a receita comum. Não, não. O companheiro, a seu parecer, teria partido da Crosta por imposição de tenebroso crime. Mas, em sua generosidade feminina, Ester, em lágrimas, não desejava positivar a culpabilidade de ninguém, não desejava vingar-se e, sim, acalmar o coração em desalento. Seria possível, por intermédio de Alexandre, sonhar com o companheiro, no sentido de obter-lhe as notícias diretas e fazer-lhe sentir o carinhoso interesse do lar? Em vista dos filhos pequenos e de dois velhos tios que estavam dependentes de seus préstimos, a angustiada viúva encontrava-se em péssimas condições financeiras, na viuvez inesperada; todavia, acrescentava em pranto, estava disposta a trabalhar e consagrar-se aos filhinhos, recomeçando a vida, mas, antes disso, desejava algum conforto para o coração, anelava inteirar-se do ocorrido e conhecer a situação do esposo, para conformar-se. E, no fim da longa e sentida exposição, rematava, lacrimosa, dirigindo-se ao meu orientador:
— Por piedade, generoso amigo! Nada me poderia dizer? que terá sido feito de Raul? quem o teria assassinado? e porquê?
A viúva sofredora parecia alucinada de dor e internava-se através das mais descabidas indagações; Alexandre, porém, longe de se desgostar com as perguntas intempestivas, assumira atitude paternal e, carinhosamente, tomou as mãos da interlocutora, respondendo-lhe:
— Tenha calma e coragem, minha amiga! Neste momento, não é fácil esclarecê-la. É imperioso sindicar, com cuidado, a fim de solucionar o problema com o critério devido. Volte, pois, ao lar e descanse a mente oprimida… Ansiedades existem que não se curam à força de raciocínios do mundo. É indispensável conhecer o refúgio da oração, confiando-as ao Supremo Pai. Ampare-se à fé sincera, confie na Providência e veremos o que é possível fazer no setor da informação e do socorro fraterno. Examinaremos o assunto com atenção!
Ambas as senhoras teceram ainda alguns comentários dolorosos, em torno do acontecimento, e despediram-se, mais tarde, com palavras de gratidão e conforto.
A sós comigo e sentindo, talvez, a minha necessidade de preparação e conhecimento, o orientador explicou:
— Nossos amigos encarnados muitas vezes acreditam que somos meros adivinhos e, pelo simples fato de nos conservarmos fora da carne, admitem que já somos senhores de sublimes dons divinatórios, esquecidos de que o esforço próprio, com o trabalho legítimo, é uma lei para todos os Planos evolutivos.
Mas, sorrindo paternalmente, acrescentou:
— Entretanto, é forçoso considerar que nós outros, quando na Crosta, em face das mesmas circunstâncias, não procederíamos de outra forma.
No dia imediato, porque podia eu dispor de mais tempo, convidou-me Alexandre a acompanhá-lo até à residência de Ester. Tomaria o lar da interessada como ponto de partida para as averiguações que desejava levar a efeito.
— Como? — Ponderei, — não seria mais prático invocar diretamente o esposo desencarnado, através de nossos poderes mentais? Raul poderia, desse modo, ser ouvido sem dificuldade, observando-se posteriormente o que se poderia fazer em favor da viúva.
O instrutor, todavia, sem desprezar minha ideia, considerou:
— Sem dúvida, esse é o método mais fácil e, em muitos casos, devemos mobilizar semelhantes recursos; entretanto, André, o serviço intercessório, para ser completo, exige alguma coisa de nós mesmos. Concedendo à nossa irmã Ester algo de nosso tempo e de nossas possibilidades, seremos credores de mais justos conhecimentos, respeito à situação geral, enriquecendo, simultaneamente, os nossos valores de cooperação. Quem dá o bem é o primeiro beneficiado, quem acende uma luz é o que se ilumina em primeiro lugar.
Como quem não desejava dilatar a conversação, Alexandre silenciou, pondo-nos ambos a caminho, compreendendo eu, mais uma vez, que, como na Terra, o serviço de colaboração fraternal no Plano dos Espíritos reclama esforço, tolerância e diligência.
A casa da pobre viúva localizava-se em rua modesta e, embora relativamente confortável, parecia habitada por muitas entidades de condição inferior, o que observei sem dificuldade, pelo movimento de entradas e saídas, antes mesmo de nossa penetração no ambiente doméstico. Entramos sem que os desencarnados infelizes nos identificassem a presença, em virtude do baixo padrão vibratório que lhes caracterizava as percepções. O quadro, porém, era doloroso de ver-se. A família, constituída da viúva, três filhos e um casal de velhos, permanecia à mesa de refeições, no almoço muito simples. Entretanto, um fato, até então inédito para mim, feriu-me a observação: seis entidades envolvidas em círculos escuros acompanhavam-nos ao repasto, como se estivessem tomando alimentos por absorção.
— Ó meu Deus! — Exclamei, aturdido, dirigindo-me ao instrutor, — será crível? Desencarnados à mesa?
Alexandre replicou, tranquilo:
— Meu amigo, os quadros de viciação mental, ignorância e sofrimento nos lares sem equilíbrio religioso, são muito grandes. Onde não existe organização espiritual, não há defesas da paz de espírito. Isto é intuitivo para todos os que estimem o reto pensamento.
Após ligeira pausa em que fixava, compadecido, a paisagem interior, prosseguiu:
— Os que desencarnam em condições de excessivo apego aos que deixaram na Crosta, neles encontrando as mesmas algemas, quase sempre se mantêm ligados à casa, às situações domésticas e aos fluidos vitais da família. Alimentam-se com a parentela e dormem nos mesmos aposentos onde se desligaram do corpo físico.
— Mas chegam a se alimentar, de fato, utilizando os mesmos acepipes de outro tempo? — Indaguei, espantado, ao ver a satisfação das entidades congregadas ali, absorvendo gostosamente as emanações dos pratos fumegantes.
Alexandre sorriu e acrescentou:
— Tanta admiração, somente por vê-los tomando alimentos pelas narinas? E nós outros? Desconhece você, porventura, que o próprio homem encarnado recebe mais de setenta per cento da alimentação comum através de princípios atmosféricos, captados pelos condutos respiratórios? Você não ignora também que as substâncias cozidas ao fogo sofrem profunda desintegração. Ora, os nossos irmãos, viciados nas sensações fisiológicas, encontram nos elementos desintegrados o mesmo sabor que experimentavam quando em uso do envoltório carnal.
— No entanto, — ponderei, — parece desagradável tomar refeições, obrigando-nos à companhia inevitável de desconhecidos e mormente desconhecidos da espécie que temos sob os olhos.
— Mas você não pode esquecer, — aduziu o orientador, — que não se trata de gente anônima. Estamos vendo familiares diversos, que os próprios encarnados retêm com as suas pesadas vibrações de apego doentio.
Alexandre pensou um momento e continuou:
— Admitamos, contudo, a sua hipótese. Ainda que a mesa doméstica estivesse rodeada de entidades indignas, estranhas aos laços consanguíneos, resta a certeza de que as almas se reúnem obedecendo às tendências que lhes são características e à circunstância de que cada Espírito tem as companhias que prefere.
E, desejoso de fornecer bases sólidas ao meu aprendizado, considerou:
— A mesa familiar é sempre um receptáculo de influenciações de natureza invisível. Valendo-se dela, medite o homem no bem, e os trabalhadores espirituais, nas vizinhanças do pensador, virão partilhar-lhe o serviço no campo abençoado dos bons pensamentos; conserve-se a família em Plano superior, rendendo culto às experiências elevadas da vida, e os orientadores da iluminação espiritual aproximar-se-ão, lançando no terreno da palestra construtiva as sementes das ideias novas, que então se movimentam com a beleza sublime da espontaneidade. Entretanto, pelos mesmos dispositivos da lei de afinidade, a maledicência atrairá os caluniadores invisíveis e a ironia buscará, sem dúvida, as entidades galhofeiras e sarcásticas, que inspirarão o anedotário menos digno, deixando margem vastíssima à leviandade e à perturbação.
Indicando o grupo à mesa, Alexandre acentuou:
— Aqui, os tristes inveterados atraem os familiares desencarnados de análoga condição. É o vampirismo recíproco. Ouça você o que falam.
Agucei meus ouvidos e, com efeito, observei que a conversação era das mais lastimáveis:
— Nunca pensei que viria a sofrer tanto neste mundo! — Exclamava a velha tia de Ester, queixando-se amargamente. — Agostinho e eu trabalhamos tanto na mocidade!… Agora, chegados à velhice, sem recursos para enfrentar a vida, somos obrigados a sobrecarregar uma pobre sobrinha viúva! Ó que doloroso destino!…
E enquanto as lágrimas lhe corriam nas faces de cera, o ancião fazia coro:
— É verdade! Para uma vida laboriosa e difícil, tão amargosa compensação! Jamais esperei uma velhice tão escura!…
As entidades vestidas em túnicas de sombra, ao ouvirem semelhantes declarações, pareciam também mais comovidas, abraçando-se aos velhos com fervor.
A viúva, todavia, embora tristonha, acrescentou, resignada:
— De fato, nossas provações têm sido cruéis; entretanto, devemos confiar na Bondade de Deus.
Alexandre fixou nela toda a sua atenção e notei que na alma da viúva se fazia disposição singular. De olhos brilhantes, como se percebesse, de muito longe, a nossa influenciação espiritual, recordou o sonho da noite, de modo vago, acentuando:
— Graças à Providência, amanheci hoje muito mais confortada. Sonhei que a prima Etelvina me conduziu à presença de um mensageiro celestial que me abençoou o coração, aliviando-me as pesadas dores destes últimos dias! Ó como me rejubilaria se pudesse reconstituir esse sonho de luz!
— Ora, mamãe, conte-nos! — Exclamou a filhinha de sete anos presumíveis, que até ali se mantivera em silêncio.
A senhora, de bom grado, comentou:
— Minha filha, não se pode descrever as grandes sensações. Não me lembro precisamente de tudo, mas recordo-me de que o emissário de Jesus me ouviu com paciência e, em seguida, disse-me palavras de encorajamento e amor. Longe de me repreender, acolheu-me, bondoso, e, revelando divina tolerância, escutou minhas queixas até ao fim, qual médico abnegado. Inegavelmente, levantei-me hoje com outro ânimo. Estejamos conformados, pois Deus nos auxiliará. Logo que me refaça completamente, ganharei nosso pão com o trabalho honesto. Tenhamos esperança e fé.
Em face das afirmativas encorajadoras de Ester, os meninos entreolharam-se, sorridentes, enquanto os velhinhos calavam a amargura que lhes era própria.
Desejei fazer-me visível aos companheiros desencarnados, sem luz, que se movimentavam no recinto, de maneira a palestrar com eles, sondando-lhes as experiências, mas Alexandre dissuadiu-me:
— Seria perder tempo, — disse, — e se você deseja beneficiá-los, venha até aqui noutra oportunidade, porque as cristalizações mentais de muitos anos não se desfazem com esclarecimentos verbais dum dia. No momento, nosso objetivo é diverso. Precisamos obter informações sobre Raul. Além disso, se nos valêssemos da hora, a fim de ouvir nossos irmãos desencarnados, presentes, verificaríamos de pronto que eles poderiam apenas relacionar dolorosas lamentações, sem proveito construtivo.
E revelando reduzido interesse pela conversação dos encarnados, em vista do objetivo essencial do momento, considerou:
— Procuremos algum de nossos irmãos visitadores. Temos necessidade de informes iniciais para dar uma feição imediata ao nosso trabalho intercessório.
Porque Alexandre demandasse outros aposentos, deixei igualmente a modesta sala de refeições, embora desejasse continuar observando. O instrutor, porém, não tinha muito tempo para gastar.
Depois de rápidos minutos, fomos defrontados por uma entidade de aspecto humilde, mas muito digno, a quem Alexandre se dirigiu afavelmente:
— Meu amigo é visitador em função ativa?
— Sim, para servi-lo, — respondeu, atencioso, o interpelado.
O orientador expôs-lhe, com franqueza e em poucas palavras, o que desejávamos.
Então, o irmão visitador explicou-se razoavelmente: conhecera Raul, de perto, auxiliara-o muitas vezes, prestando-lhe continuada assistência espiritual; todavia, não pudera, nem ele e nem outros amigos, evitar-lhe o suicídio friamente deliberado.
— Suicídio? — Interrogou Alexandre, procurando informar-se de maneira completa. — A viúva acredita em assassínio.
— Entretanto, — ponderou o novo amigo, — ele soubera dissimular com cuidado. Meditara por muito tempo o ato infeliz e, no último dia, fizera a aquisição de um revólver para o fim desejado. Alvejando a região do coração, atirou a arma a pequena distância, depois de utilizá-la, cautelosamente, para evitar as impressões digitais e, desse modo, conseguira burlar a confiança dos familiares, fazendo-os supor tivesse havido doloroso crime.
— E chegou a vê-lo nos derradeiros minutos da tragédia? — Indagou Alexandre, paternal.
— Sim, — esclareceu o interlocutor, — alguns amigos e eu tentamos socorrê-lo, mas, em vista das condições da morte voluntária, friamente deliberada, não nos foi possível retirá-lo da poça de sangue em que se mergulhou, retido por vibrações pesadíssimas e angustiosas. Permanecíamos em serviço com o fim de ampará-lo, quando se aproximou um “bando” de algumas dezenas, que abusou do infeliz e deslocou-o, facilmente, em virtude da harmonia de forças perversas. Como pode compreender, não nos foi possível arrebatá-lo das mãos dos salteadores da sombra, que o carregaram por aí…
O instrutor parecia satisfeito com as elucidações, e, quando vi que se dispunha a terminar a palestra, ousei perguntar:
— Mas… e a causa do suicídio? não será interessante ouvir o visitador?
— Não, — explicou Alexandre, tranquilamente, — Indagaremos do próprio interessado.
Despedimo-nos. Determinada indagação, todavia, atormentava-me o cérebro. Não a contive por muitos instantes, dirigindo-me ao generoso orientador:
— Um “bando”? mas o que significa? — Interroguei.
Alexandre, que me parecia agora mais preocupado, esclareceu:
— O “bando” a que se refere o informante é a multidão de entidades delinquentes, dedicadas à prática do mal. Embora tenham influenciação limitada, em virtude das defesas numerosas que rodeiam os núcleos de nossos irmãos encarnados e as nossas próprias Esferas de ação, levam a efeito muitas perturbações, concentrando os impulsos de suas forças coletivas.
Porque fosse muito grande a minha estranheza, o instrutor aduziu:
— Não se surpreenda, meu amigo. A morte física não é banho milagroso, que converta maus em bons e ignorantes em sábios, dum instante para outro. Há desencarnados que se apegam aos ambientes domésticos, à maneira da hera às paredes. Outros, contudo, e em vultoso número, revoltam-se nos círculos da ignorância que lhes é própria e constituem as chamadas legiões das trevas, que afrontaram o próprio Jesus, (Mc
— Mas o visitador regional, como guarda destes sítios, — inquiri, espantado, — não poderia defender o suicida infeliz?
— Se ele fosse vítima de assassínio, sim, — respondeu o instrutor, — porque, na condição real de vítima, o homem segrega determinadas correntes de força magnética suscetíveis de pô-lo em contato com os missionários do auxílio; mas no suicídio previamente deliberado, sem a intromissão de inimigos ocultos, como este sob nossa observação, o desequilíbrio da alma é inexprimível e acarreta absoluta incapacidade de sintonia mental com os elementos superiores.
— Mas, — indaguei, assombrado, — as sentinelas espirituais não poderiam socorrer independentemente?
Esboçou Alexandre um gesto de tolerância fraterna e acentuou:
— Sendo a liberdade interior apanágio de todos os filhos da Criação, não seria possível organizar precipitados serviços de socorro para todos os que caem nos precipícios dos sofrimentos, por ação propositada, com plena consciência de suas atitudes. Em tais casos, a dor funciona como medida de auxílio nas corrigendas indispensáveis. Mas… e os maus que parecem felizes na própria maldade? perguntará você, naturalmente. Esses são aqueles sofredores perversos e endurecidos de todos os tempos, que, apesar de reconhecerem a decadência espiritual de si mesmos, criam perigosa crosta de insensibilidade em torno do coração. Desesperados e desiludidos, abrigando venenosa revolta, atiram-se à onda torva do crime, até que um novo raio de luz lhes desabroche no céu da consciência.
O assunto oferecia ensejo a valiosos esclarecimentos, mas Alexandre esboçou um gesto de quem não podia gastar muito tempo com palavras e, depois de ligeiro intervalo, acrescentou:
— André, mantenha-se em oração, ajudando-me por alguns momentos. Agora, que tenho informações positivas do visitador, preciso mobilizar minhas possibilidades de visão, sindicando quanto ao paradeiro do irmão infeliz.
Não obstante conservar-me em prece, observei que o orientador entrava em profundo silêncio. Daí a alguns minutos, Alexandre tomou a palavra e exclamou como quem estivesse voltando de surpreendente excursão:
— Podemos seguir adiante. O pobre irmão, semi-inconsciente, permanece imantado a um grupo perigoso de vampiros, em lugarejo próximo.
O instrutor pôs-se a caminho; segui-o, passo a passo, em silêncio, apesar de minha intensa curiosidade.
Em pouco tempo, distanciando-nos dos núcleos suburbanos, encontramo-nos nas vizinhanças de grande matadouro.
Minha surpresa não tinha limites, porque observei a atitude de vigilância assumida pelo meu orientador, que penetrou firmemente a larga porta de entrada. Pelas vibrações ambientes, reconheci que o lugar era dos mais desagradáveis que conhecera, até então, em minha nova fase de esforço espiritual. Seguindo Alexandre de muito perto, via numerosos grupos de entidades francamente inferiores que se alojavam aqui e ali. Diante do local em que se processava a matança dos bovinos, percebi um quadro estarrecedor. Grande número de desencarnados, em lastimáveis condições, atiravam-se aos borbotões de sangue vivo, como se procurassem beber o líquido em sede devoradora…
Alexandre percebera o assombro doloroso que se apossara de mim e esclareceu-me com serenidade:
— Está observando, André? Estes infelizes irmãos que nos não podem ver, pela deplorável situação de embrutecimento e inferioridade, estão sugando as forças do plasma sanguíneo dos animais. São famintos que causam piedade.
Poucas vezes, em toda a vida, eu experimentara tamanha repugnância. As cenas mais tristes das zonas inferiores que, até ali, pudera observar, não me haviam impressionado com tamanho amargor. Desencarnados à procura de alimentos daquela espécie? Matadouro cheio de entidades perversas? que significava tudo aquilo? Lembrei meus reduzidos estudos de História, remontando-me à época em que as gerações primitivas ofereciam aos supostos deuses o sangue de touros e cabritos. Estaria ali, naquele quadro horripilante, a representação antiga dos sacrifícios em altares de pedra? Deixei que as primeiras impressões me incandescessem o cérebro, a ponto de sentir, como noutro tempo, que minhas ideias vagueavam em turbilhão.
Alexandre, contudo, solícito como sempre, acercou-se mais carinhosamente de mim e explicou:
— Porque tamanha sensação de pavor, meu amigo? Saia de si mesmo, quebre a concha da interpretação pessoal e venha para o campo largo da justificação. Não visitamos, nós ambos, na Esfera da Crosta, os açougues mais diversos? Lembro-me de que em meu antigo lar terrestre havia sempre grande contentamento familiar pela matança dos porcos. A carcaça de carne e gordura significava abundância da cozinha e conforto do estômago. Com o mesmo direito, acercam-se os desencarnados, tão inferiores quanto já o fomos, dos animais mortos, cujo sangue fumegante lhes oferece vigorosos elementos vitais. Sem dúvida, o quadro é lastimável; não nos compete, porém, lavrar as condenações. Cada coisa, cada ser, cada alma, permanece no processo evolutivo que lhe é próprio. E se já passamos pelas estações inferiores, compreendendo como é difícil a melhoria no plano de elevação, devemos guardar a disposição legítima de auxiliar sempre, mobilizando as melhores possibilidades ao nosso alcance, a serviço do próximo.
A advertência fora utilíssima. As palavras do instrutor caíram-me nalma a preceito, retificando-me a atitude mental. Encarei sereno o quadro sob meus olhos e, notando que me reequilibrara, Alexandre mostrou-me uma entidade de aspecto lamentável, semelhante a um autômato, a vaguear em torno dos demais. Depois de fixar-lhe os olhos quase sem expressão, reparei que a sua vestimenta permanecia ensanguentada.
— É o suicida que procuramos, — exclamou o instrutor, claramente.
— Quê? — Perguntei, espantado, — porque precisariam dele os vampiros?
— Semelhantes infelizes, — elucidou Alexandre, — abusam de recém-desencarnados sem qualquer defesa, como este pobre Raul, nos primeiros dias que se sucedem à morte física, subtraindo-lhes as forças vitais, depois de lhes explorarem o corpo grosseiro…
Estava atônito, lembrando as antigas informações religiosas sobre as tentações diabólicas, mas o orientador, firme na missão sagrada de auxílio, obtemperou:
— André, não se impressione em sentido negativo. Todo homem, encarnado ou desencarnado, que se desvie da estrada reta do bem, pode vir a ser perigoso gênio do mal. Não temos tempo a perder. Vamos agir, socorrendo o desventurado.
Seguindo o prestimoso mentor, aproximei-me também do infeliz. Alexandre alçou a destra sobre a fronte de Raul e envolveu-o em vigoroso influxo magnético. Dentro de poucos instantes, Raul permanecia cercado de luz, que foi vista imediatamente pelos seres da sombra, observando eu que a maioria se afastou, lançando gritos de horror. Vendo a claridade que rodeara a vítima, estavam lívidos, espantados. Um dos algozes mais corajosos replicou em voz alta:
— Deixemos este homem entregue à sua sorte. Os “Espíritos poderosos” estão interessados nele. Larguemo-lo!
Enquanto se retiravam os verdugos, apressadamente, como se temessem algo que eu não podia compreender ainda, em face da aproximação bendita daquela luz que vinha de Mais Alto, perdia-me em dolorosas interrogações íntimas. O quadro era típico das velhas lendas de demônios abandonando as almas prisioneiras de seus propósitos infernais. As palavras “Espíritos poderosos” haviam sido pronunciadas com indisfarçável ironia. Pela claridade que envolvera o suicida, sabiam eles que estávamos presentes e, embora fugissem, medrosos, alvejavam-nos com zombarias.
Aos poucos, o matadouro de grandes proporções estava deserto de vampiros vorazes. Alexandre, dando por finda a operação magnética, tomou a mão do amigo sofredor, que parecia imbecilizado pela influenciação maligna, e, conduzindo-o para fora, a caminho do campo, falou-me, bondoso:
— Não guarde no coração as palavras irônicas que ouvimos. Esses irmãos desventurados merecem a nossa maior compaixão. Vamos ao que nos possa interessar.
Recomendou-me amparar o novo amigo, que parecia inconsciente de nossa colaboração, e, depois de alguns minutos de marcha, estacionávamos sob árvore frondosa, depondo o irmão enfraquecido e cambaleante sobre a relva fresca.
Impressionado com o seu olhar inexpressivo, solicitei os esclarecimentos do orientador, cuja palavra amiga não se fez esperar:
— O pobrezinho permanece temporariamente desmemoriado. O estado dele, depois de tão prolongada sucção de energias vitais, é de lamentável inconsciência.
Em face da minha estranheza, Alexandre acrescentou:
— Que deseja você? Esperaria por aqui o processo de menor esforço? O magnetismo do mal está igualmente cheio de poder, mormente para aqueles que caem voluntariamente sob os seus tentáculos.
Em seguida, inclinou-se paternalmente sobre o desventurado suicida e indagou:
— Irmão Raul, como passa?
— Eu… eu… — murmurou o infeliz, como se estivesse mergulhado em profundo sono, — não sei… nada sei…
— Lembra-se da esposa?
— Não… — respondeu o suicida, de modo vago.
O instrutor levantou-se e disse-me:
— A inconsciência dele é total. Precisamos despertá-lo.
Em seguida, determinou que eu permanecesse ali, em vigilância, enquanto buscaria recursos necessários.
— Não poderemos acordá-lo por nós mesmos? — Interroguei, admirado.
O orientador sorriu e considerou:
— Bem se reconhece que você não é veterano em serviços “intercessórios”. Esquece-se de que vamos despertá-lo não só para a consciência própria, senão também para a dor? Romperemos a crosta de magnetismo inferior que o envolve e Raul regressará ao conhecimento da situação que lhe é própria; entretanto, sentirá o martírio do peito varado pelo projétil, rugirá de angústia ao contato da sobrevivência dolorosa, criada, aliás, por ele mesmo. Ora, em tais casos, as primeiras impressões são francamente terríveis e escoam-se algumas horas antes de seguro alívio. E como outras obrigações esperam por nós, será conveniente entregá-lo aos cuidados de outros amigos.
As observações calaram-me fundamente.
Decorridos vinte minutos, aproximadamente, Alexandre voltou acompanhado de dois irmãos que se prontificaram a conduzir o infeliz e, daí a algum tempo, encontrávamo-nos numa casa espiritual de socorro urgente, localizada na própria Esfera da Crosta. Via-se que a organização atendia a trabalhos de emergência, porquanto o material de assistência era francamente rudimentar.
Adivinhando-me o pensamento, Alexandre explicou:
— No Círculo de vibrações antagônicas dos habitantes da Crosta, não se pode localizar uma instituição completa de auxílio. O trabalho de socorro, desse modo, há de sofrer incontestável deficiência. Esta casa, porém, é um hospital. Deposto Raul num leito alvo, o devotado instrutor começou a aplicar-lhe passes magnéticos sobre a região cerebral. Não se passou muito tempo e o infeliz lançou um grito estertoroso e vibrante, dilacerando-me o coração.
— Eu morro! Eu morro!… — Gritava Raul, em suprema aflição, tentando, agora, escalar as paredes. — Acudam-me por caridade.
E comprimindo o peito com as mãos, exclamava, em tom lancinante:
— Meu coração está partido! Ajudem-me!… Não quero morrer!…
Enfermeiros solícitos amparavam-no com atenção, mas o paciente parecia tomado de horror. Olhos esgazeados em máscara de sofrimento indefinível, continuava gritando estentoricamente, como se houvesse acordado de pesadelo angustioso.
— Ester! Ester!… — Chamou o infeliz, recordando a esposa devotada, — venha em meu auxílio pelo amor de Deus! Socorra-me! Meus filhos!… Meus filhos!…
Alexandre acercou-se dele paternalmente e obtemperou:
— Raul, tenha paciência e fé no Divino Poder! Procure enfrentar corajosamente a situação difícil que você mesmo criou e não invoque o nome da companheira dedicada, nem chame pelos filhos amados que deixou na sua antiga paisagem do mundo, porque a porta material de sua casa se fechou com os seus olhos. Se você tivesse cultivado o amor cristão, prezando as oportunidades que o Senhor lhe confiou, fácil seria, num momento destes, regressar ao ninho afetuoso para rever os entes amados, ainda que eles não conseguissem identificar a sua presença. Mas… agora, meu amigo, é muito tarde… é necessário aguardar outro ensejo de trabalho e purificação, porque a sua oportunidade, com o nome terrestre de Raul, está finda…
Imenso pavor a estampar-se-lhe no semblante, o interpelado revidou:
— Estarei morto, porventura? não sinto o coração varado de dor? não tenho as vestes ensanguentadas? será isto morrer? Absurdo!…
Muito sereno, o bondoso instrutor voltou a falar:
— Não empunhou sua arma contra o próprio peito? não localizou o coração para exterminar a própria vida? Ó meu amigo, podem os homens enganar uns aos outros, mas nenhum de nós poderá iludir a Justiça Divina.
Revelando extrema vergonha, ao sentir-se a descoberto, o suicida prorrompeu em soluços, murmurando:
— Ah! Desventurado que sou! Mil vezes infeliz!…
Alexandre, contudo, não tornou a falar-lhe naquela circunstância. Depois de recomendá-lo carinhosamente aos cuidados dos irmãos responsáveis pelos serviços de assistência, dirigiu-se a mim, explicando:
— Vamos, André! Nosso novo amigo está em crise cuja culminância não cederá antes de setenta horas, aproximadamente. Voltaremos mais tarde a vê-lo.
De regresso aos meus trabalhos, esperei, ansioso, o instante de reatar as observações educativas. Impressionava-me a complexidade do serviço “intercessório”. As simples orações de uma esposa saudosa e dedicada haviam provocado atividades numerosas para o meu orientador e valiosos esclarecimentos para mim. Como agiria Alexandre na fase final? que revelações teria Raul para os nossos ouvidos de companheiros interessados no seu bem-estar? conseguiria a esposa consolar-se nos círculos da viuvez?
Abrigando interrogações numerosas, aguardei o momento azado. Decorridos quatro dias, o instrutor convidou-me a tornar ao assunto, o que me fez exultar de contentamento pela possibilidade de prosseguir, aprendendo para a minha própria evolução.
Encontramos Raul cheio de dores; todavia, mais calmo para sustentar a conversação esclarecedora. Queixava-se da ferida aberta, do coração descontrolado, dos sofrimentos agudos, do grande abatimento. Sabia, porém, que não se encontrava mais no Círculo da carne, embora semelhante verdade lhe custasse angustioso pranto.
— Tranquilize-se, — disse-lhe o meu orientador, com inexprimível bondade, — sua situação é difícil, mas poderia ser muito pior. Há suicidas que permanecem agarrados aos despojos cadavéricos por tempo indeterminado, assistindo à decomposição orgânica e sentindo o ataque dos vermes vorazes.
— Ai de mim! — Suspirou o mísero, — porque, além de suicida, sou igualmente criminoso.
E demonstrando infinita confiança em nós, Raul contou a sua história triste, procurando justificar o ato extremo.
Na mocidade, viera do interior para a cidade grande, atendendo ao convite de Noé, seu camarada de infância. Companheiro devotado e sincero, esse amigo apresentara-o, certa vez, à noiva querida, com quem esperava tecer, no futuro, o ninho de ventura doméstica. Ai! Desde o dia, porém, que vira Ester pela primeira vez, nunca mais pôde esquecê-la. Personificava a jovem o que ele, Raul, reputava como seu mais alto ideal para o matrimônio feliz. Em sua presença, sentia-se o mais ditoso dos homens. Seu olhar alimentava-lhe o coração, suas ideias constituíam a continuidade dos seus próprios pensamentos. Como, porém, fazer-lhe sentir o afeto imenso? Noé, o bom companheiro do passado, tornara-se-lhe o empecilho que precisava remover. Ester seria incapaz de traição ao compromisso assumido. Noé mostrava-se infinitamente bondoso e estimável para provocar um rompimento. Foi então que lhe nasceu no cérebro a tenebrosa ideia de um crime. Eliminaria o rival. Não cederia sua felicidade a ninguém. O colega deveria morrer. Mas como efetuar o plano sem complicações com a Justiça? Enceguecido pela paixão violenta, passou a estudar minuciosamente a realização de seus criminosos propósitos. E encontrou uma fórmula sutil para a eliminação do companheiro dedicado e fiel. Ele, Raul, passou a usar conhecido e terrível veneno em pequeninas doses, aumentando-as vagarosamente até habituar o organismo com quantidades que para outrem seriam fulminantes. Atingido o padrão de resistência, convidou o companheiro para um jantar e propinou-lhe o veneno odioso em vinho agradável que ele próprio bebeu, sem perigo algum. Noé, porém, desaparecera em poucas horas, passando por suicida, à apreciação geral. Guardou ele, para sempre, o segredo terrível, e, depois de cortejar gentilmente a noiva chorosa, conseguiu impor-lhe simpatia, que culminou em casamento. Atingira a realização do que mais desejava: Ester pertencia-lhe na qualidade de mulher; vieram os filhinhos enfeitar-lhe o viver, mas… a sua consciência fora ferida sem remissão. Nas mais íntimas cenas do lar, via Noé, através da tela mental, exprobrando-lhe o procedimento. Os beijos da esposa e as carícias dos filhos não conseguiam afastar a visão implacável. Ao invés de decrescerem, seus remorsos aumentavam sempre. No trabalho, na leitura, na mesa de refeições, na alcova conjugal, permanecia a vítima a contemplá-lo em silêncio. A certa altura do destino, quis entregar-se à justiça do mundo confessando o crime hediondo; entretanto, não se sentia com o direito de perturbar o coração da companheira, nem deveria encher de lodo o futuro dos filhinhos. A sociedade respeitava-o, acatando-lhe o ambiente doméstico. Companheiros distintos de trabalho prezavam-lhe a companhia. Como esclarecer a verdade em semelhantes contingências? Não obstante amar ternamente a esposa e os filhos, achava-se esgotado, ao fim de prolongada resistência espiritual. Receava a perturbação, o hospício, o aniquilamento, fugindo à confissão do crime que, cada dia, se tornava mais iminente. A essa altura, a ideia do suicídio tomou vulto em seu cérebro atormentado. Não resistiu por mais tempo. Esconderia o último ato do seu drama silencioso, como ocultara a tragédia primeira. Comprou um revólver e esperou. Certo dia, após o trabalho diário, absteve-se do caminho de volta ao lar e empunhou a arma contra o próprio coração, agindo cautelosamente para evitar as marcas digitais. Atingido o alvo, num supremo esforço desfizera-se do revólver homicida e não teve a atenção voltada senão para o intraduzível padecimento do tórax estrangulado… Dificilmente, como se os seus olhos permanecessem anuviados, sentiu que algumas pessoas tentavam socorrê-lo e, em seguida, verdadeira multidão de criaturas, que ele não pôde ver, arrebatava-o do local de dor… Desde então, um enfraquecimento geral tomara-o por completo. Sentia-se presa de um sono pesado e angustioso, cheio de pesadelos cruéis. E, por fim, somente recuperara a consciência de si mesmo, ali naquele quarto modesto, depois de Alexandre restaurar-lhe as energias em prostração…
Terminando a confissão longa e amargurosa, Raul tinha o peito opresso e lágrimas pesadas a lhe lavarem o rosto.
Comovidíssimo, não sabia, por minha vez, o que externar. Aquele drama oculto daria para impressionar corações de pedra. Alexandre, contudo, demonstrando a grandeza de suas elevadas experiências, mantinha respeitável serenidade, e falou:
— Nos maiores abismos, Raul, há sempre lugar para a esperança. Não se deixe dominar pela ideia de impossibilidade. Pense na renovação de sua oportunidade, medite na grandeza de Deus. Transforme o remorso em propósito de regeneração.
E após ligeira pausa, enquanto o infeliz se debulhava em pranto, o mentor prosseguiu:
— Em verdade, seus males de agora não podem desaparecer milagrosamente. Todos faremos a colheita compatível com a semeadura, mas também nós, que hoje aprendemos alguma coisa, já passamos, vezes inúmeras, pela lição de recomeçar. Tenha calma e coragem.
Em seguida, Alexandre passou a notificá-lo, relativamente à causa de nosso interesse, explicando-lhe que o trabalho de auxílio fraterno fora iniciado através de orações da esposa carinhosa e desolada. Deu-lhe notícias dela, dos filhinhos e dos velhos tios; falou-lhe das saudades de Ester e de sua ansiedade para vê-lo, ainda que fosse em ligeiro minuto, em ocasião de sono do veículo físico.
Em ouvindo as derradeiras informações, o suicida pareceu reanimar-se vivamente e observou:
— Ai! Não sou digno! Minha miséria acentuar-lhe-ia as dores!…
O orientador, porém, afagando-lhe paternalmente a fronte, prometeu intervir e solucionar o problema.
Retiramo-nos, de novo, e, percebendo-me a profunda admiração, Alexandre ponderou:
— No pequeno drama em observação, meu amigo, você pode calcular a extensão e complexidade de nossas tarefas nos serviços “intercessórios”. Os nossos companheiros encarnados pedem-nos, por vezes, determinados trabalhos, muito distantes do conhecimento das verdadeiras situações. Para a sociedade humana, Raul é uma vítima de sicários ocultos, quando é apenas vítima de si mesmo. Para a companheira é o marido ideal, quando foi criminoso e suicida.
Compreendi as dificuldades morais em que nos achávamos para atender a petição que nos conduzira a semelhante serviço. As palavras do instrutor não evidenciavam outra coisa. Entendendo assim, ousei perguntar:
— Acredita esteja a irmã Ester preparada para o realismo de nossas conclusões?
Alexandre abanou a cabeça, negativamente, e redarguiu:
— Somente são dignos da verdade plena os que se encontrem plenamente libertados das paixões. Ester é profundamente bondosa, mas ainda não alcançou o próprio domínio. Não possui as emoções, antes é possuída por elas. Em vista disso, de modo algum lhe poderíamos dar o conhecimento completo do assunto. Está preparada para a consolação, não para a verdade.
As afirmativas do instrutor chocaram-me de certo modo. De que maneira omitir os pormenores da tragédia? Não seria faltar à realidade? Por que processo confortar a esposa saudosa, ocultando-lhe o sentido verdadeiro dos acontecimentos?
Alexandre, porém, compreendeu-me as indagações e observou:
— Com que direito perturbaríamos o coração de uma pobre viúva na Crosta, a pretexto de sermos verdadeiros? por que motivo tisnar a esperança tranquila de três crianças adoráveis, envenenando-lhes, talvez, o destino, tão só para nos exibirmos como campeões da realidade? Haverá mais alegria em mostrar a sombra do crime, que em descobrir a fonte do conforto? André, meu irmão, a vida pede muito discernimento! Cada palavra tem sua ocasião, como cada revelação o seu tempo! Não podemos compreender um serviço de socorro com o esmagamento do suplicante. A oração de Ester não lhe poderia ser portadora de desalento. Por isso mesmo, nem todos recebem, quando querem, a delegação de Mais Alto para os serviços de assistência.
Registrei a observação.
Nesse dia, Alexandre dirigiu-se em minha companhia às autoridades do Auxílio, pedindo a colaboração de uma das irmãs que funcionavam nas Turmas de Socorro, para concurso mais eficiente ao coração de Ester. Foi destacada Romualda, criatura dedicada e bondosa, que desceu para a Crosta, junto de nós, recebendo, atenciosamente, as recomendações do prestimoso amigo. Alexandre não se alongou em muitas instruções. Romualda deveria preparar a viúva, espiritualmente, para visitar, na noite próxima, o esposo desencarnado e, em seguida, demorar-se junto dela, duas semanas, colaborando no reerguimento de suas energias psíquicas e cooperando para que se lhe reorganizasse a vida econômica, através de colocação honesta e digna.
Era de ver-se o carinho que o delicado instrutor dedicou a todas as providências em curso.
Quase no momento aprazado para o reencontro dos cônjuges, comparecemos ao hospital volante de socorro espiritual, onde o instrutor cuidou pessoalmente de todas as medidas. Recomendou a Raul o melhor ânimo, insistindo para que não pronunciasse a menor expressão de queixa e para que se abstivesse de qualquer gesto que pudesse traduzir impaciência ou aflição. Em seguida, mandou velar a chaga aberta e sanguinolenta, muito visível na região dilacerada do organismo perispiritual, para que a esposa não recebesse qualquer impressão de sofrimento. O próprio Raul, admirado pela lição de boas maneiras, atendia, satisfeito e reanimado, a todas as instruções.
Daí a minutos, Romualda entrou em companhia de Ester, cujo olhar deixava entrever angústia e expectação. Alexandre tomou-a pelo braço e mostrou-lhe o companheiro estendido no leito alvo.
— Raul! Raul! — Gritou a viúva desolada, provisoriamente liberta do corpo carnal, dilacerando-me o coração pelo doloroso tom de voz.
A comoção dela era extrema. Quis prosseguir e não pôde. Dobraram-se-lhe os joelhos e encontrou-se, genuflexa, junto ao leito do esposo, soluçando. Reparei que os olhos dele permaneciam marejados de pranto que não chegava a cair. Alexandre fixava-o, com firmeza, dando-lhe a entender a necessidade de coragem para o angustioso testemunho. Como a criança interessada em conhecer as recomendações paternas, o suicida acompanhava os menores gestos do nosso generoso orientador. E porque Alexandre lhe fizera ligeiro sinal, Raul tomou a destra da companheira em lágrimas e falou:
— Não chores mais, Ester! Tem confiança em Deus! Vela pelos nossos filhinhos e ajuda-me com a tua fé! Vou indo muito bem… Não há razão para que nos lamentemos! Querida, a morte não é o fim. Aceita a vontade do Pai, como estou procurando aceitar… nossa separação é temporária… nunca te esquecerei! Estarás em meu coração, onde eu estiver! Também estou saudoso de tua companhia, de tua dedicação, mas o Altíssimo nos ensinará a transformar saudades em esperanças!
As palavras do suicida, bem como a doce inflexão de sua voz, surpreendiam-me a observação. Raul demonstrava um potencial de delicadeza e finura psicológica, que até aí não revelara a meus olhos. Foi então que, aguçando a percepção visual, notei que fios tenuíssimos de luz ligavam a fronte de Alexandre ao cérebro dele e compreendi que o instrutor lhe ministrava vigoroso influxo magnético, amparando-o na difícil situação.
Ouvindo-lhe as expressões consoladoras, a viúva pareceu reanimar-se, exclamando, lacrimosa:
— Ó Raul, eu sei que agora estamos separados pelos abismos da sepultura!… sei que devo esperar a decisão suprema para unir-me contigo para sempre… Ouve! Auxilia-me na Terra, na viuvez inesperada e dolorosa! Levanta-te e vem para a nossa casa, dar-me esperança ao espírito abatido! Defende-nos ainda contra os maus… não me deixes sozinha com os nossos filhinhos, que tanto precisam de ti… pede a Deus essa graça e vem ajudar-nos até ao fim!…
Embora continuasse estirado no leito, o interpelado afagou-lhe carinhosamente os cabelos e respondeu:
— Tem coragem e fé! Lembra-te, Ester, de que existem padecimentos maiores que os nossos e conforma-te… Vou fortalecer-me e trabalharei ainda por nós… Assim como me esperas a assistência, esperar-te-ei a confiança. O Senhor não nos confia problemas dos quais não sejamos dignos! Volta para nossa casa e alegra-te! Não tenhas medo da necessidade; nunca nos faltará a bênção do pão! Procura a alegria do trabalho honesto e semeia o bem através de todas as oportunidades que o mundo te ofereça! A prática do bem dá saúde ao corpo e alegria ao espírito! E Deus, que é bom e justo, abençoará nossos filhinhos para que eles sejam felizes ao teu lado… Não te demores mais! Volta confiante! Guarda a certeza de que eu estou vivo e de que a morte do corpo é somente a necessária transformação!…
Compreendendo que a oportunidade do reencontro estava a esgotar-se, revelou a ansiosa esposa extrema curiosidade e aflição, fitando o companheiro através das lágrimas, e perguntou:
— Raul, antes que me vá, dize-me francamente… que aconteceu? quem te roubou a vida? Notei que o interpelado mostrou no olhar terrível angústia, ante a indagação inesperada. Quis, talvez, confessar a verdade, fazer luz em torno de suas experiências extintas, mas o socorro magnético de Alexandre não se fez esperar. Jato de intensa luminosidade partiu da mão do orientador que, a essa altura da conversação, mantinha sobre a fronte do suicida a destra protetora. Transformou-se-lhe a expressão fisionômica, restabelecendo-se-lhe a serenidade e a coragem. Novamente calmo, Raul falou à companheira:
— Ester, os processos da Justiça Divina não se encontram ao dispor de nossa apreciação… guarda contigo a certeza de que estamos sendo instruídos todos os dias e em todos os acontecimentos… aprende a procurar, antes de tudo… a vontade de Deus..
A pobre viúva desejou prolongar a palestra; adivinhava-se-lhe, através dos olhos aflitos, o intenso propósito de continuar bebendo as sublimes consolações do momento, mas Alexandre tomou-lhe o braço e recomendou-lhe a necessidade de despedir-se. A esposa chorosa não relutou. Concentrando toda a sua capacidade afetiva nas palavras, disse adeus ao suicida e beijou-lhe as mãos com infinito carinho. Algo distante da organização hospitalar de emergência, confiou-a o instrutor aos cuidados de Romualda e regressou em minha companhia.
Não conseguia ocultar minha enorme admiração por semelhante serviço de assistência. Alexandre percebeu-me o estado dalma e falou comovidamente:
— Segundo observa, o trabalho de socorro pede muito esforço e devotamento fraterno. Não podemos esquecer que Raul e Ester são dois enfermos espirituais e, nessa condição, requerem muita compreensão de nossa parte. Felizmente, a viúva regressa cheia de novo ânimo e o nosso amigo, sentindo a extensão dos cuidados de que está sendo objeto, e notando por si mesmo quanto pode auxiliar a companheira encarnada, dar-se-á pressa em criar novas expressões de estímulo e energia no próprio coração.
Impressionado, contudo, em vista do dilaceramento havido em seu organismo espiritual, indaguei:
— E a região ferida? Raul experimentará semelhantes padecimentos até quando?
— Talvez por muitos anos, — respondeu o instrutor, em tom grave. — Isso, porém, não o impedirá de trabalhar intensamente no campo da consciência, esforçando-se pela reaproximação da bendita oportunidade regeneradora.
Outros problemas afloravam-me à ideia. No entanto, o instrutor precisava ausentar-se, em demanda de incumbências difíceis, nas quais não poderia eu acompanhá-lo.
Pedi-lhe permissão para seguir, de perto o trabalho de assistência levado a efeito por Romualda, recebendo-lhe a generosa aprovação. Desejava saber até que ponto se confortara a viúva aflita e observar-lhe o proveito daquele reencontro, que traduzia elevada concessão.
No dia seguinte, voltei ao lar modesto, justamente por ocasião do almoço familiar. Romualda andava ativa. O ambiente interno adquirira novo aspecto. As entidades viciadas não haviam desaparecido totalmente, mas o seu número fora consideravelmente reduzido. Amparando a sua protegida, a irmã auxiliadora recebeu-me com amabilidade. Notificou-me que a viúva amanhecera muito melhor e que ela, Romualda, fizera o possível por manter-lhe a recordação plena do sonho. Como era natural, a pobrezinha não poderia lembrar-se de todas as minúcias; entretanto, fixara as impressões culminantes, suscetíveis de acordar-lhe a divina esperança e restaurar-lhe o bom ânimo. Recomendou-me verificar, por mim mesmo, o efeito maravilhoso da providência.
De fato, o semblante da viúva ganhara nova expressão. De olhos límpidos e brilhantes, narrava aos tios e aos filhinhos o sublime sonho da noite. Todos a escutavam sob forte interesse, mormente as crianças, que pareciam participar de seu júbilo interior.
Ester terminara a narrativa, emocionada. Observei, então, que a velha tia esboçava um gesto de incredulidade, perguntando-lhe:
— E você acredita ter visitado Raul no outro mundo?
— Como não? — Redarguiu a viúva, sem pestanejar, — tenho ainda a impressão de suas mãos sobre as minhas e sei que Deus me concedeu semelhante graça para que eu readquira minhas forças para o trabalho. Despertei hoje profundamente reanimada e feliz! Enfrentarei o caminho com novas esperanças! Esforçar-me-ei e vencerei.
— Ó mamãe, como nos consolam as suas palavras! — Murmurou um dos pequenos, de olhos muito vivos, — como desejaria estar com a senhora para ouvir o papai nesse sonho maravilhoso!…
Nesse instante, o velhinho, que se alimentava em silêncio, ponderou, na qualidade de excelente representante da descrença humana:
— É interessante notar que tendo Raul consolado tanto o seu coração de mulher, nada tenha elucidado sobre o crime que o atirou no sepulcro.
Ester, que sentiu a ironia da observação, influenciada pela benfeitora que ali se mantinha, respondeu prontamente:
— Muitas vezes, meu tio, não sabemos ser gratos às bênçãos divinas. Recordo-me desta verdade, ao lhe ouvir semelhante raciocínio. Envergonho-me, quando me lembro haver feito interrogação desta natureza ao pobre Raul, abatido e pálido no leito. Basta-me a felicidade de tê-lo visto e ouvido num mundo que eu não posso compreender agora. Tenho a certeza de que o visitei em algum lugar. Que nos interessa descobrir criminosos, quando não podemos levantar-lhe o corpo físico? Em nossa preocupação de punir culpados, sem dar conta de nossas próprias culpas, iremos ao absurdo de desejar ser mais justos que o próprio Deus?
Calou-se o tio, pensativo, e observei que as crianças sentiam imensa alegria pela resposta maternal.
O coração de Ester penetrara a zona lúcida e sublime da fé viva, absorvendo paz, alegria e esperança, a caminho de uma vida nova.
Ao me despedir, felicitei Romualda pelo seu nobre trabalho. A generosa servidora pôs-me a par de seu projeto de serviço. Permaneceria mais estreitamente ao lado da viúva, insuflando-lhe coragem e bom ânimo e, na semana próxima, contava com a possibilidade de cooperar no sentido de organizar-lhe serviço bem remunerado.
Admirei-me, ouvindo o programa, principalmente no que tocava ao auxílio material; entretanto, Romualda aduziu muito calma:
— Quando os companheiros terrestres se fazem merecedores, podemos colaborar em benefício deles, com todos os recursos ao nosso alcance, desde que a nossa cooperação não lhes tolha a liberdade de consciência.
Roguei-lhe, então, o obséquio de admitir-me o concurso, no dia aprazado para os serviços finais.
Romualda aquiesceu bondosamente, e, passada uma semana, fui por ela avisado, quanto à medida de conclusão dos trabalhos de assistência.
Voltei ao lar da viúva, em companhia da digna servidora espiritual, que me recomendou:
— Faça o favor de assistir nossa amiga, enquanto vou buscar a pessoa indicada para auxiliá-la. Já movimentei todas as providências cabíveis na situação e não temos tempo a perder.
Mantive-me ali, em profunda curiosidade, e decorridas três horas, aproximadamente, alguém bateu à porta, chamando-me a atenção. Seguida de Romualda, uma dama distinta vinha ao encontro de Ester, oferecendo-lhe trabalho honesto em sua oficina de costura. A viúva chorou de emoção e de alegria, e, enquanto combinavam determinadas medidas de serviço, num quadro confortador de júbilo geral, a irmã auxiliadora falou-me, contente:
— Agora, irmão André, podemos voltar tranquilamente. O serviço que nos foi confiado está concluído, graças ao Senhor.
[Referência ao Ministério do Auxílio, nome de uma das organizações administrativas de Nosso Lar.]
[Vide exemplo de um hospital volante no capítulo 4 do livro Obreiros da Vida Eterna: “”]
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Marcos 5:9
E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? E lhe respondeu, dizendo: Legião é o meu nome, porque somos muitos.
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