Capítulo III

Em pleno transe


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Amparado à Marta, intentei proclamar o júbilo que me dominava, fazendo-me ouvido em alta voz. Todavia, os membros jaziam inteiriçados e os órgãos da fala em descontrole.

Não tinha perfeito conhecimento da posição em que os familiares se moviam. Meus olhos demoravam-se perturbados. Sensação de esmagamento percorria-me todo; no entanto, que pedir além daquela infinita ventura que o devotamento filial me proporcionava?

Tentei alinhar ideias a fim de agradecer a intervenção da filha querida; contudo, não consegui. Percebendo-me as dificuldades, Marta afagou-me a fronte e falou, meiga:

— “Os nossos benfeitores desatam os últimos elos. Enquanto isto, façamos nossa oração.”



Não me seria possível, naqueles minutos, enfileirar pensamentos e muito menos enunciar qualquer frase. Tinha a respiração opressa, como nos derradeiros dias de luta no corpo físico. Com alegria, no entanto, vi a filha elevar-se ao Alto, repetindo em voz pausada e comovedora as expressões do Sl 23:1, ampliando-lhes o sentido:

— “O Senhor é nosso Pastor; nada nos faltará. Deitar-nos faz em refúgios de esperança, guia-nos suavemente às águas do repouso.

“Refrigera-nos a alma, conduz-nos pelas veredas da justiça, na qual confiamos por amor ao seu nome.

“Ainda que andemos pelo vale da sombra e da morte, não temeremos mal algum, porque Ele está conosco; a sua vontade e a sua vigilância nos consolam.

“Prepara-nos mesa farta de bênçãos, ainda mesmo na presença dos inimigos que trazemos dentro de nós, unge-nos a cabeça de bom ânimo e o nosso coração transborda de júbilo.

“Certamente que a bondade e a compaixão do Senhor nos seguirão em todos os dias da vida e habitaremos na sua Casa Divina, por longo tempo. Assim seja.”

À medida que sua voz pronunciava o texto antigo, multiplicando-me as lágrimas abundantes e espontâneas, dores cruéis me assaltavam a região torácica.

Vim saber, mais tarde, que aqueles sofrimentos provinham da extração de resíduos fluídicos que ainda me enlaçavam à zona do coração.



Finda a prece, que ouvi sob indizível angústia, percebendo a manifesta intenção da filha que assim procedia buscando isolar-me o pensamento da intervenção a que me achava submetido, notei que as dores se faziam menos rudes. Ela permaneceu amorosamente inclinada para mim, por mais de uma hora, em silêncio.

Temia falar, provocando fenômenos desagradáveis e, ao que me pareceu, Marta me partilhava os receios.

Um momento chegou, entretanto, no qual a respiração se fez equilibrada e verifiquei que o coração me batia uniforme e regular no peito.

Através do olhar supliquei à filha, sem palavras, reforçasse o socorro que minha situação estava exigindo.

Vi-a movimentar cuidadosamente o braço direito e em seguida passar a destra repetidamente sobre a minha cabeça exausta. Reparei que me aplicava forças espirituais que eu ainda não podia compreender.

Mais alguns minutos decorridos e percebi que o poder de orar me felicitava de novo. Encadeava os pensamentos sem maiores dificuldades e, na convicção de que poderia tentar a prece com êxito, improvisei sincera súplica.

O trabalho foi bem sucedido. A harmonia geral começou a refazer-me, embora a fraqueza extrema que me possuía.

Notei que de Marta para mim vinham fagulhas minúsculas de luz em porção imensa, a envolverem-me todo, ao passo que me via agora cercado de atmosfera fracamente iluminada em tom de laranja.

A respiração processava-se normalmente. A carência de ar desaparecera. Meus pulmões revelavam-se robustecidos como por encanto, e tanto bem me faziam as inalações prolongadas de oxigênio que tive a impressão de haurir alimento invisível do ar leve e puro.

Restabelecendo-se-me a força orgânica, fortificava-se a potência visual.

A claridade alaranjada que me revestia casava-se à luz comum.

A melhora experimentada, porém, não ia ao ponto de restaurar-me a disposição de falar. O abatimento era ainda insuperável.

Assombrado, vi-me em duplicata.

Eu, que tanta vez exortara os desencarnados a contemplarem os despojos de que já se haviam desvencilhado, fixei meu corpo a enrijecer-se, num misto de espanto e amargura.

Fitei minha filha, com suplicante humildade, imitando o gesto da criança medrosa. Encontrava-me prostrado, vencido. Não me assistia qualquer razão de revolta; contudo, se possível, desejaria afastar-me. A contemplação do corpo imóvel, não obstante aguçar-me o propósito de observar e aprender, era-me aflitiva. O cadáver perturbava-me com as sugestões da morte, impunha reflexões desagradáveis e amargas. A distância dele, provavelmente a ideia de vida e eternidade prevaleceria dentro de mim.

Marta entendeu o que eu não podia dizer. Fez-se mais terna e explicou-me:

— “Tenha calma, papai. Os laços não se desfizeram totalmente. Precisamos paciência por mais algumas horas.”



Alongando o raio de meu olhar, verifiquei a existência de prateado fio, ligando-me o novo organismo à cabeça imobilizada.

Torturante emoção apossou-se de mim.

Eu seria o cadáver ou o cadáver seria eu? Por intermédio de que boca pretendia falar? Da que se fechara no corpo ou da que me serviria agora? Através de que ouvidos assinalava as palavras de Marta?

Intentando ver pelos olhos mortos, senti-me atirado novamente a espesso nevoeiro.

Assustado, soergui-me mentalmente.

Aquele grilhão tênue a unir-me com os despojos era bem um fio de forças vivas, jungindo-me à matéria densa, semelhando-se ao cordão umbilical que liga o nascituro ao seio feminino. Fitando, então, o corpo repousado e inerte, simbolizando templo materno ao meu ser que ressurgia na espiritualidade, recordei, certamente inspirado pelos amigos que ali me socorriam, a enormidade dos meus débitos para com a carcaça que me retivera no Planeta por extensos e abençoados anos. Devia-lhe à cooperação precioso amontoado de conhecimentos, cujo valor inestimável naquela hora reconhecia. Cabia-me vencer o mal-estar e a repugnância.

Tranquilizei-me. Comecei a considerar o corpo, mirrado e frio, como valioso companheiro do qual me afastaria em definitivo. Enquanto perdurou a nossa entrosagem, beneficiara-me ao contato da luta humana. Junto dele, recolhera bênçãos inextinguíveis. Sem ele, por que processos continuaria o aprendizado? Fixei-o, enternecido, mas, aumentando o meu interesse pela organização de carne, imóvel, incapaz de separar emoções e selecioná-las, afundei-me nas impressões de angústia. Minhas energias pareciam retransferir-se, aceleradamente, ao envoltório abandonado. Insuportável constrangimento martirizava-me. Percebi os conflitos da carne desgovernada. A diferença apresentada pelos órgãos impunha-me terrível desagrado.

Registrando-me as dificuldades, Marta informou bondosamente:

— “Lembre-se, paizinho, da necessidade de concentração na prece. Não divague. Esqueça a experiência que terminou, sustentando a mente em oração.”

A custo, retornei a mim mesmo e me mantive no recolhimento necessário.

Meu objetivo, agora, era não pensar.

Se avançava no futuro, estranhas vertigens me assediavam; se me demorava analisando o veículo físico, vigoroso e inesperado impulso me reconduzia para ele.

Que fazer de mim, reduzido a minúsculo ponto sensível entre duas Esferas?

Aquietei-me e orei.



Rogando a Jesus me auxiliasse a encontrar o melhor caminho, observei que minha capacidade visual se dilatava. Curiosos fenômenos de óptica afetavam-me a retina hesitante. Alterara-se-me a noção de perspectiva. A imagem do ambiente parecia penetrar-me. Objetos e luzes permaneciam dentro de mim ou jaziam em derredor?

Dentro de semelhante indecisão, divisei duas figuras ladeando a filha dedicada.

Centralizei quanto possível o propósito de ver mais exatamente, e tive o esforço compensado.

Ambos os presentes se destacaram nítidos.

Que alegria me banhou o ser!

Num deles identifiquei, sem obstáculos, o venerável Bezerra de Menezes e no outro adivinhei o benemérito Irmão Andrade. Pelo sorriso de compreensão que me endereçaram reconheci que os dois me haviam notado a surpresa indescritível.

Todavia, meu júbilo do primeiro instante foi substituído pela timidez. Enquanto nos debatemos na lida material, quase nunca nos recordamos de que somos seguidos pelo testemunho do Plano espiritual nos mínimos atos da existência. Falamos, com referência aos Espíritos, com a desenvoltura das crianças que se reportam aos pais a propósito de insignificantes brinquedos. Senti-me repentinamente envergonhado.

Quantos sacrifícios exigira daqueles abnegados amigos?

Apesar do natural acanhamento que a presença deles me infligia, tudo fiz por levantar-me, de modo a recebê-los com a veneração que mereciam. Tentei, porém, debalde erguer-me.

Percebendo-me a intenção, abeiraram-se de mim. Cumprimentaram-me com palavras confortadoras de boas-vindas.

Com gentileza, explicou-me Bezerra que o processo liberatório corria normal, que me não preocupasse com as delongas, porque a existência que eu desfrutara fora dilatada e ativa. Não era possível — disse, bondoso — efetuar a separação do organismo espiritual com maior rapidez. Esclareceu também que o ambiente doméstico estava impregnado de certa substância que classificou por “fluidos gravitantes”, desfavorecendo-me a libertação.

Mais tarde vim a perceber que os objetos de nosso uso pessoal emitem radiações que se casam às nossas ondas magnéticas, criando elementos de ligação entre eles e nós, reclamando-se muito desapego de nossa parte a fim de que não nos prendam ou perturbem.

Após instruir-me, benévolo, recomendou-me Bezerra esquecesse o retraimento em que me refugiara, confiando-me a pensamentos mais elevados, de maneira a colaborar com ele para que me subtraísse ao decúbito dorsal.

Pus-me a refletir na infinita bondade de Jesus, enquanto o dedicado amigo me aplicava passes, projetando sobre mim, com as mãos dadivosas, abundantes jatos de luz.

Ao término da operação, acentuara-se-me a resistência.

A rigor, não pude levantar-me, nem falar. Ambos os benfeitores, porém, seguidos de Marta, que nos observava com visíveis mostras de contentamento, retiraram-me do leito, determinando que me amparasse a eles para uma jornada de repouso.

— “É necessário sair de algum modo — acentuou Bezerra, em tom grave, — conduzi-lo-emos à praia. As virações marítimas serão portadoras de grande bem ao reajustamento geral.”

Abracei-me aos devotados obreiros da caridade, com esforço, e não obstante verificar que o derradeiro laço ainda me atava às vísceras em descontrole, afastei-me da zona doméstica, reparando que eu era por eles rapidamente conduzido à beira-mar.




Irmão Jacob
Francisco Cândido Xavier


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