Capítulo V

Despedidas


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Em muitas ocasiões colaborei nos serviços de socorro aos recém-desencarnados, mormente nas preces memorativas, mas estava longe de calcular as lutas de um “morto”.

Amargurado e aflito qual me achava, ponderei os sofrimentos dos que abandonam a experiência física sem qualquer preparação. Se eu, que consagrara longos anos aos estudos espiritualistas, encontrava óbices tão grandes, que não ocorreria aos homens comuns, que não cogitam dos problemas relativos à alma? Ali, à frente de meus próprios amigos, sentia-me num torvelinho de contraditórias sensações. Para quem apelar?



Marta afagou-me a cabeça exausta e pediu-me calma. Esclareceu que as dificuldades eram justas. Muita gente se despede do mundo carnal sem obstáculos e sem desagradáveis incidentes. Inúmeras almas dormem longuíssimos sonos, outras nada percebem, na inconsciência infantil em que vazam as impressões. Comigo, porém, a situação se modificava. Adestrara a mente para enfrentar a grande transição, no campo de serviço ativo a que me dedicara. Convivera com os problemas do espírito durante muito tempo, em esforço diário. Fizera relações extensas entre encarnados e desencarnados. E não poderia evitar que perante o corpo inerte se concentrassem manifestações mentais heterogêneas. Nem todos os pensamentos ali congregados traduziam amor e auxílio fraternais. As opiniões a meu respeito divergiam entre si, formavão correntes de força menos simpáticas. Alguns conhecidos me atiravam flores que eu não merecia, ao passo que outros me crivavam de espinhos dilacerantes. Situava-me, pois, num quadro de impressões complexas.

As informações procediam da filha querida, em suaves esclarecimentos.

Acrescentou que não devia preocupar-me em excesso. A perturbação era passageira. Quando se dispersassem as atenções centralizadas no funeral respiraria contente.

Contrafeito, registrei as explicações, meditando no ensinamento que recebia.

A vida real para mim, agora, era a do Espírito, a que recomeçava com a extinção da carcaça física.

Que desejo experimentei de materializar-me diante de todos, rogando a esmola da oração sincera! Como suspirei pela concessão de uma oportunidade de solicitar desculpas pelas minhas fraquezas! Se os amigos presentes me esquecessem os erros humanos e me auxiliassem com a prece, naturalmente o equilíbrio me beneficiaria imediatamente. Vigorosos recursos me sustentariam o coração. Mas, era tarde para ensinar atitudes íntimas de caridade e perdão.

Pensei nos que haviam partido antes de mim, experimentando as aflições que me assaltavam, e consolei-me. E não me esqueci de que os encarnados a ajuizarem com tanta facilidade relativamente à minha situação, também seriam chamados, depois, à verdade espiritual, tanto quanto ocorria a mim mesmo.

Não me cabia reagir inutilmente por intermédio da angústia. O tempo é o nosso abençoado renovador.



Mais alguns instantes escoaram difíceis, quando inopinado abalo me revolveu o ser. Supus haver sido projetado a enorme distância. O Irmão Andrade e Marta, naturalmente prevenidos, ampararam-me com mais força.

Confesso que o choque me assaltou com tão grande violência que julguei chegado o momento de “outra morte”.

Dentro em pouco, no entanto, o coração se refez, equilibrou-se a respiração e Bezerra surgiu, sorridente, a indagar se o desligamento ocorrera normal.

Abraçaram-me os três, satisfeitos.

Explicou-me o respeitável benfeitor que até ali meu corpo espiritual fora como que um “balão cativo”, mas doravante disporia de real liberdade interior. Pensaria com clareza, movimentar-me-ia sem obstáculos e deteria faculdades mais precisas.

Com efeito, não obstante sentir-me enfraquecido e sonolento, guardava mais segurança. Meus olhos e ouvidos, principalmente, registravam imagens e sons com relativa exatidão. As perturbações da hora não me afetavam com a intensidade de minutos antes.

Esclareceu Bezerra que na maioria dos casos não seria possível libertar os desencarnados tão apressadamente, que a rápida solução do problema liberatório dependia, em grande parte, da vida mental e dos ideais a que se liga o homem na experiência terrestre. Recomendou-me observar por mim mesmo as transformações de que era objeto.

Examinei-me, com atenção, e reparei efetivamente que no íntimo me achava fortalecido e remoçado, sem a carga de mazelas fisiológicas.

Conseguia locomover-me sem auxílio, embora imperfeitamente. Inalava o ar com alegria e Marta notou que meu júbilo seria maior e minha sensação de leveza mais fascinante quando eu pudesse respirar o oxigênio de cima, qual nadador que bebe a água cristalina da corrente purificada, distante do tisnado líquido das margens.

Francamente, a morte do corpo fora milagroso banho de rejuvenescimento. Sentia-me alegre, robusto e feliz.

Readquirindo minhas possibilidades de analisar com exatidão, passei a refletir nos problemas de ordem material.

Como se fixaria o futuro doméstico? Que providências mobilizar a benefício de todos? Tais indagações como que me requisitavam a mente a plano diverso.

Faleciam-me as forças de novo.

Bezerra percebeu o que se passava, bateu-me nos ombros amigavelmente, e aconselhou:

— Você conhece agora, mais que nunca, o poder do pensamento. Procure o Alto.

Compreendi a referência e modifiquei-me interiormente.



Reajustado, notei que podia enfrentar os conflitos da hora sem embaraços de vulto.

O Irmão Andrade acentuou que livre dos últimos remanescentes do corpo carnal eu conseguiria aproximar-me dos amigos sem choques de maior importância, aconselhando, porém, a não me avizinhar em demasia das vísceras cadavéricas, em cuja contemplação talvez fosse acometido por impressões desequilibrantes.

As novidades sucediam-se umas às outras.

Aquinhoado por visão mais segura, reparei, estupefato, que desencarnados em grande número se apinhavam ao redor.

Entidade menos simpática, quase rente a nós, dizia para outra que lhe era semelhante:

— O enterro é do velho Jacob, aquele mesmo que nos doutrinou, há tempos. Não se recorda?

— Perfeitamente — respondeu o interlocutor, gargalhando —, daria tudo para ver-lhe a “cara”.

Riram-se gostosamente.

Memória funcionando sem empecilhos, registrando-lhes os apontamentos sarcásticos, localizei-os na lembrança.

Eram perseguidores de uma jovem internada numa casa de nervosos. Evoquei as particularidades da reunião em que me havia entendido com eles. Achava-me sumamente enfraquecido. Mesmo assim, gostaria de responder-lhes. Rememorei o interesse com que eu recebera a descrição da médium vidente em relação a ambos, e confirmava, admirado, por mim mesmo, os informes com que fora presenteado. Sacrificaria muita coisa para interpelá-los, fazendo-lhes sentir o erro em que laboravam, e dispunha-me a interferir quando o Irmão Andrade me controlou os impulsos, acrescentando:

— Não faça isso! Provocaria contenda desagradável e inútil. Além do mais, eles não nos veem. Respiram noutra faixa vibratória.

Realmente, procediam como se nos não vissem. Permaneciam junto de nós, sem perceber-nos, tanto quanto noutro tempo me movimentava, por minha vez, ao pé das entidades desencarnadas, sem notar-lhes a presença.

— Haverá tempo — frisou o amigo, bondoso e calmo.

Observando-me o encorajamento, conduziram-me os três à vizinhança imediata do corpo hirto.

Não obstante as melhoras de que me sentia possuído, não consegui atravessar a onda de força que se improvisara ao longo dos veículos.

Desejava ardentemente penetrar o recinto doméstico e, sobretudo, espargir, sobre os entes amados que ficariam distantes, os meus pensamentos de amor, reconhecimento e esperança. Bezerra, porém, avisou prudentemente:

— Não insistamos. É desaconselhável, por agora, a perda de reservas.

Contentei-me, buscando avistar amigos nos automóveis.

Grupinho de conhecidos atraiu-me a atenção. Avancei para eles, mas fui constrangido a afastar-me, decepcionado. Comentavam a política, em agressiva atitude. Mergulhavam a mente em disputas desnecessárias.

Pela primeira vez verifiquei que os Espíritos inferiores não se comunicam somente nas sessões doutrinárias. A palestra, apesar de desenvolver-se discreta, apresentava notas de intercâmbio com o Plano invisível, em cujos domínios ingressava eu, receoso e encantado. Um amigo expressava-se quanto aos problemas da vereança municipal, perfeitamente entrosado com uma entidade menos digna que, ali, ante meus olhos espantados, o subjugava quase que por completo, obrigando-o a proferir sentenças desrespeitosas e cruéis.

Retrocedi, instintivamente.

— Você, Jacob — falou Bezerra, em tom grave, — por enquanto ainda não pode suportar estes dardos mentais.

Encaminhamo-nos, então, para outro ângulo da rua.

Descobri nova agremiação de pessoas às quais me afeiçoara profundamente. Busquei-lhes a companhia, ansioso, seguido de perto pelos benfeitores; contudo, outra desilusão me aguardava. Falava-se, em voz baixa, sobre as despesas prováveis com o enterramento dos meus despojos. Emitia-se julgamento apressado, envolvendo-se-me o nome em impressões desarmoniosas e rudes.

Recuei, como já o fizera.

Bezerra abraçou-me, compreensivo, e receitou paciência.

Abeirava-me de profundo desalento, quando, não longe, em certo veículo, observei a formação de lindos círculos de luz.

O Irmão Andrade, atendendo-me à indagação silenciosa, esclareceu:

— Naquele carro, temos a claridade da oração sincera.

Pedi aos protetores me auxiliassem a procurar semelhante abrigo mais depressa.

Alcancei-o e rejubilei-me. Alguns companheiros ofertavam-me os recursos da prece santificante. Tamanho foi o meu contentamento que quase me ajoelhei feliz.

Aquela rogativa que formulavam a Jesus, em benefício de minha paz, constituía dádiva celeste. Do pequeno conjunto emanavam energias confortadoras que me penetravam à maneira de chuva balsâmica.

A oração influenciara-me docemente.

Creio que os recém-desencarnados quase sempre necessitam do pensamento fraterno dos que se demoram no Círculo carnal. Explicou Bezerra que os recém-libertos comumente precisam do socorro espiritual dos entes queridos para se desembaraçarem sem delonga dos liames que ainda os prendem à experiência material.

Com o auxílio dos que ficam, aqueles que partem seguem mais livremente ao encontro do porvir.



Assistia, enfim, ao sepultamento de minhas vísceras cansadas. A solenidade, referentemente à qual tanta vez me reportara, descortinava-se-me ao olhar possuído de assombro.

De envolta com as relações afetivas do mundo, compacta assembleia de desencarnados se pôs em movimento.

Nosso grupo continuava reduzido, mas aumentara. Outros amigos se reuniram a nós, abraçando-me. Declaravam-se desejosos de me acompanhar na passagem para a Esfera próxima.

Intensa curiosidade dominava-me as emoções, quando o cortejo estacou. Era a entrada para a necrópole, afinal.

Todo o local se enchia de gente desencarnada.

Francamente, intentei seguir para dentro, mas Bezerra, num abraço fraternal, recomendou, compassivo:

— Meu amigo, não tente a lição agora. Recordemos a parábola e deixemos aos mortos o cuidado de enterrar os mortos. (Mt 8:22)

Em seguida, solicitou aos novos circunstantes nos deixassem a sós, até o instante da retirada definitiva.

Percebendo-me o desapontamento, observou-me, bem-humorado:

— Jacob, você não sabe o que está desejando. Por enquanto, os enterros muito concorridos impõem grandes perturbações à alma. Além disso, não desconhece que as vibrações daqueles que o amam procurá-lo-ão em qualquer parte.

Em virtude do parecer respeitável, afastei-me do corpo morto, no momento em que penetrava a nova moradia.




Irmão Jacob
Francisco Cândido Xavier


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