Voltei
Versão para cópiaNo Templo
Além da morte situam-se as Esferas da continuidade.
Se o homem comum conseguisse deter o curso dos pensamentos de segunda ordem, durante alguns minutos por dia, de modo a refletir na grandeza da vida, sondando as realidades da morte, certo evitaria as algemas do mal que o agrilhoam às recapitulações expiatórias.
Aqui, permanecemos articulados em nossas próprias criações, tanto quanto as peças de determinada máquina a ela se ajustam para o necessário funcionamento.
Quem se aflija na escassez de possibilidades materiais ou na angústia de tempo, faça o bem mesmo assim. Quem se lamenta no cativeiro do crime, esforce-se por fugir-lhe às garras, dedicando-se ao socorro dos semelhantes. Quem se demora no sono do vício, louve a mão áspera que o desperta e levante-se para a caridade regenerativa.
Cada dia que passa para o homem encarnado parece gritar-lhe aos ouvidos: — Ainda é tempo! Ainda é tempo!
Dirige-nos a morte para os objetivos que procuramos.
Os ditadores da crueldade têm sob o próprio mando não somente os servidores que se corporificam na Terra, mas também os assalariados invisíveis que lhes estimam os propósitos inferiores. O homem que se transforma em instrumento da bondade e da salvação, ainda que o não saiba, recebe o concurso de muitos irmãos interessados nos serviços de elevação própria.
Depois de prolongadas meditações, alcançáramos o dia em que eu seria recebido no grande templo.
Marta e os amigos providenciaram todas as medidas suscetíveis de me intensificarem a felicidade.
Crianças do parque transportaram enormes braçadas de flores, alvas como neve, e em nossa ditosa casa música elevada se fez ouvir por várias horas, advertindo-me a filha querida no sentido de manter a mente distanciada de todas as preocupações alusivas à experiência física.
Seria abraçado por muitos amigos, traçaria novas diretrizes para a luta e a preparação adequada constituía-me dever, — informou a filha bondosa.
Antes da hora prevista, Andrade veio até nós, avisando-me que à noite, efetivamente, solucionaria meu problema de trabalho. Reencontraria muitos companheiros, mas eu longe estava de imaginar que reveria a maior parte dos próprios Espíritos com os quais havia convivido pessoalmente nas sessões e serviços realizados na Terra.
À noite, quando as constelações se derramavam no céu muito azul, todos nós, em alva roupagem, tomamos o caminho do santuário.
No átrio fulgurante, esperavam-me muitos amigos do Espiritismo brasileiro. Estenderam-me os braços e, não obstante envergonhado por não possuir um halo brilhante, enquanto eles todos se mostravam envolvidos em auréolas luminescentes, penetrei o interior.
Subimos, subimos, até que, num salão adornado e amplo, vários irmãos que eu não conhecia me receberam generosamente.
Talvez inspirado por Marta, admirável grupo orquestral executou a ouverture de “La Gazza Ladra”. de Rossini.
Com que emoção acompanhei a peça vazada em suave encantamento! Que saudades do meu antigo lar terrestre! A esposa e as filhinhas, educadas na elevada compreensão da arte divina, estavam vivas, dentro de mim… Que imenso o desejo de reuni-las de encontro ao peito e demorar-nos, assim, unidos em espírito, eternamente!
Não contive as lágrimas copiosas.
Cessada a melodia, extenso grupo coral de meninos-orientadores entoou formoso hino intitulado: “O Irmão que volta de longe”.
Apesar da palavra amorosa de Bezerra, de Guillon, de Cirne e de Marta, eu nada podia responder. Alguma coisa me entravava a garganta. Sentia-me criança, de novo. Na tela da memória, revia minha abnegada e valorosa mãe, como se estivéssemos na Europa distante. Sentia-lhe o abraço carinhoso e ouvia-lhe a voz, às despedidas:
— Vai, meu filho! Trabalha dignamente, sê bom para Deus e para os homens! Um dia, ver-nos-emos, de novo, no lar…
Fitava as crianças a me sorrirem cantando, escutava os companheiros estimulando-me ao bom ânimo, reparava o ambiente doce e festivo, emoldurado em filigrana radiosa, e perguntava a mim mesmo se aquele não era o lar divino a que minha mãe se referia em meus dias de infância…
Centenas de entidades congregavam-se em torno, respeitosas, e ao fundo uma centena de Espíritos singularmente iluminados se mantinham em profunda concentração. Andrade mostrou-mos e esclareceu:
— Aqueles são vanguardeiros da pureza e da sabedoria, que fornecem fluidos para materializações de ordem sublime.
Não consegui enunciar a impressão que me causavam, em vista do pranto a embargar-me a voz. Entretanto, notei que ao lado deles vasta câmara lirial se prolongava, além, na parte da torre que ocupávamos.
Das janelas próximas, dominava grande parte da cidade com o olhar, maravilhando-me a contemplação da noite pacífica e formosa, repleta de harmonia e de luz.
Possivelmente com o objetivo de arrebatar-me à extrema emotividade em que me envolvera, o Irmão Andrade conduziu-me a largo recanto do recinto, apresentou-me algumas dezenas de companheiros tão obscuros quanto eu mesmo e explicou:
— Aqui, Jacob, se alinham os cooperadores do seu trabalho edificante, que prosseguirá mais ativo.
Choveram abraços de alegria e camaradagem.
Reconheci muitos deles, que haviam partido anos antes de mim.
Surgiu a conversação jubilosa e discreta. Alguns indagavam de meus derradeiros serviços doutrinários. Muitos se reportavam aos nossos encontros e reuniões em variados pontos do Rio. Diversos médiuns de meu conhecimento aí apareciam.
A nota predominante na palestra era a esperança no futuro.
Lastimavam todos, qual ocorria a mim mesmo, não haverem aproveitado as horas no corpo físico, dentro da eficiência desejável. Poderíamos ter concretizado muito mais o nosso idealismo cristão na causa que abraçáramos, se tivéssemos usado a aplicação com o mesmo ímpeto com que procurávamos conforto no campo do ensinamento.
Enfermos em cujo tratamento cooperara, através de passes, enalteciam a fé com que se haviam separado da carne e exprimiam o júbilo com que aguardavam a possibilidade de auxiliarem os entes queridos, ainda presos aos Círculos terrestres.
Dentro de meu ser vibravam incentivos novos.
Não merecia semelhantes demonstrações de confiança e apreço, mas reaprenderia as lições e, se as autoridades superiores nos permitissem a congregação para o serviço útil, poderiam contar com as minhas energias apagadas e humildes.
Certo velhinho, que se afirmava assistente de meus trabalhos em Botafogo, informou-me de que muitos dos presentes eram elementos evangelizados em nossas próprias reuniões e preces. A maioria fora trazida de múltiplos lugares, depois de longas tarefas e provas de reajustamento, a fim de juntos recomeçarmos o trabalho.
Elucidou Andrade que eu poderia continuar repousando ao lado de Marta por mais tempo, e que no instante oportuno mobilizaria o grupo na assistência fraterna a que me dedicara nos últimos anos da experiência carnal, para que a desencarnação não me impusesse intervalo ruinoso às atividades.
Abracei os companheiros, um a um, extremamente comovido, e expliquei que não iriam trabalhar comigo e, sim, eu próprio é que seria colaborador deles. Seríamos um conjunto de servos do bem, procuradores da luz no serviço digno. Constituiríamos uma só família, em nome do Eterno Amigo e Nosso Senhor Jesus.
Voltando à presença de Guillon e de outros amigos, reparei que o silêncio se fez profundo e indefinível.
Bezerra, nimbado de intensa luz, tomou lugar entre a grande assembleia e o conjunto de irmãos que oravam extáticos, e alçou ao Mestre Divino sentida prece.
As palavras dele caíam-me na concha do coração quais fagulhas dum fogo celeste a sacudir-me as fibras mais íntimas, sem destruí-las.
Rogava, magnânimo, a Jesus me fortalecesse e me inspirasse, dentro do novo ministério.
Tão excelsas eram as expressões da súplica que estranho fenômeno se produziu ante meus olhos assombrados.
Ao toque da oração, os amigos iluminados se fizeram mais radiantes e mais belos e as flores do recinto, como que nimbadas de oculto esplendor, passaram a irradiar maior brilho.
As lâmpadas, ali, eram as almas inflamadas de amor e a claridade a derramar-se, intensificada e divina, não alarmava o coração.
Pétalas de fluidificada substância azul começaram a cair sobre nós, portadoras de delicado aroma, e se desfaziam, de leve, em nossa fronte, como se obedecessem ao amoroso apelo formulado pelo sublime irmão.
Marta amparava-me, porque as lágrimas de ventura, embora tranquilas, me faziam vergar, abatido e trêmulo…
Quando Bezerra terminou, oh! intraduzível maravilha!
Na câmara alva surgiu, de repente, uma estrela cujos raios tocavam o chão. Tão comovedoras vibrações se espalharam no recinto que não suportei a companhia dos iluminados.
Afastei-me instintivamente para a faixa a que se recolhiam os companheiros de organização opaca.
Marta seguiu-me, simbolizando um anjo guardião pressuroso e terno, e, lembrando a hora em que a vi, carinhosa e linda, nos serviços de materialização do Pará, em 1921, enquanto eu ainda vestia a carne física, ajoelhei-me, humilde, no que fui por ela acompanhado.
Guillon e os outros me fitavam com lágrimas, e contemplando a estrela que começava quase imperceptivelmente a tomar forma humana, gritei, em pranto, que eu não era digno daquelas manifestações de apreço e nem merecia a visita divina que principiava a revelar-se. Fortalecido por sobre-humana coragem, confessei minhas faltas e salientei meus defeitos, em alta voz, abertamente, sem omitir erro algum.
Declarei que, por mim, falava a sombra em que me envolvia e afirmei que não devia ser examinado por amigo e, sim, julgado na qualidade de réu, passível de justa condenação.
Comovidos talvez pela exaltação a que me entregara, Guillon, Sayão, Cirne e Schutel deixaram a posição que ocupavam, vieram ter conosco e, reerguendo a mim e Marta, emocionados, sustentaram-nos, de pé, nos braços desvelados e amigos.
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