Vozes do Grande Além

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Capítulo XXXIX

Calúnia


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Na noite de 8 de março de 1956, tivemos nossa atenção voltada para o triste relato do Espírito A. Ferreira que, ocupando os recursos psicofônicos do médium, nos ofertou significativa lição com respeito à calúnia, conforme as suas amargas experiências.


De todas as potências do corpo humano, a língua será talvez aquela que mais nos reclama vigilância.

Por ela, começa a glória da cultura nos cinco continentes, mas, através dela, igualmente principiam todas as guerras que atormentam o mundo.

Por ela, irradia-se o mel de nossa ternura, mas também, através dela, derrama-se-nos, o fel da cólera.

Muitas vezes, é fonte que refresca e muitas outras é fogo que consome.

Em muitas ocasiões, é ferramenta que educa e, em muitas circunstâncias, é lâmina portadora da destruição ou da morte.

Sou uma das vítimas da língua, não conforme acontece na existência humana, em que os caluniados caem na Terra para se erguerem no Céu, em sublime triunfo, mas, segundo os padrões da vida real, em que os caluniadores que triunfaram entre os homens experimentam, além do sepulcro, a extrema derrota do espírito.

Determinam nossos amigos espirituais vos ofereça minha história. Contá-la-ei, sintetizando tanto quanto possível, para não fatigar-vos a atenção.

Há quase trinta anos, nossa família, chefiada por pequeno comerciante, no varejo do Rio, era serena e feliz.

Em casa, éramos quatro pessoas. Nossos pais, Afrânio e o servidor que vos fala.

Entre meu irmão e eu, contudo, surgiam antagonismos irreconciliáveis.

Afrânio era a bondade. Eu era a maldade oculta.

Meu irmão era a brandura, eu era a crueldade…

Nele aparecia a luz da franqueza aberta. Escondia-se em mim a mentira torpe.

Afrânio era a virtude, eu era o vício contumaz.

Na época em que figuro o princípio de meu relato, meu irmão desposara Celina, uma jovem reta e generosa que lhe aguardava o primeiro filhinho.

Quanto a mim, entregue às libações da irresponsabilidade, encontrara na jovem Marcela, tão leviana quanto eu mesmo, uma companheira ideal para o meu clima de aventura.

Entretanto, tão logo a vi, aguardando uma criança, sob minha responsabilidade direta, abandonei-a, desapiedado, embora lhe vigiasse os menores movimentos.

Foi assim que, em nublada manhã de junho, observei um automóvel a procurar-lhe o refúgio.

Coloquei-me de atalaia, reparando o homem de fronte descoberta que lhe buscava a moradia e reconheci meu próprio mano.

Surpreso e estarrecido, dei curso aos maus sentimentos que geraram, em minhas ideias, a infâmia que passou a dominar-me a cabeça.

Encontrara, enfim — concluí malicioso —, a brecha por onde solapar-lhe a reputação, e afastei-me apressado.

Joguei e beberiquei, voltando à noite para o santuário doméstico, onde encontrei aflitiva ocorrência.

Afrânio, em se ausentando de nossa pequena loja para depositar num banco a expressiva importância de cinquenta contos de réis — fruto de nossas economias de dois anos, para a realização do nosso velho plano de casa própria —, perdera a soma aludida, sem conseguir justificar-se.

Ouvi-lhe as alegações inquietantes, simulando preocupação, mas, dando largas aos meus projetos delituosos, arquitetei a mentira que deveria arruiná-lo.

Chamei meu pai a íntimo entendimento e envenenei-o pelos ouvidos.

Com a minha palavra fácil, teci a calúnia que serviu para impor ao meu irmão irremediável infortúnio, contando a meu pai que o vira, em companhia de mulher menos respeitável, perdendo toda a nossa fortuna numa casa de jogo, e acrescentei que observara o quadro lamentável com os meus próprios olhos.

Minha mãe e Celina, a reduzida distância, sem que eu lhes reparasse a presença, anotaram-me a punhalada verbal, e todos os nossos, dando crédito ao meu verbo delinquente, passaram da confiança ao menosprezo, dispensando ao acusado o tratamento cruel que lhe desmantelou a existência.

Por seis dias Afrânio, desesperado, procurou debalde o dinheiro. E, ao fim desse tempo, incapaz de resistir ao escárnio de que era vítima, preferiu o suicídio à vergonha, ingerindo o veneno que lhe roubou a vida física.

A desgraça penetrou-nos a luta diária. Todos, menos eu, que me regozijava com a escura vingança, renderam-se à tensão e ao desespero.

Inquirida Marcela por meu pai, viemos, porém, a saber que Afrânio lhe visitara o abrigo por solicitação dela mesma, que se achava em extrema penúria.

Nosso espanto, contudo, não ficou aí, porque, findos três dias após os funerais, um chofer humilde procurou-nos, discreto, para entregar uma bolsa que trazia os documentos de Afrânio, acompanhados pelos cinquenta contos, bolsa essa que meu irmão perdera inadvertidamente no carro que o servira.

Minha cunhada, num parto prematuro, faleceu em nossa casa.

Minha mãe, prostrada no leito, não mais se levantou e, findos três meses, após a morte dela, ralado por infinito desgosto, meu pai acompanhava-lhe os passos ao cemitério do Caju.

Achava-me, então, sozinho. Tinha dinheiro e busquei a vida fácil, mas o remorso passara a residir em minha consciência, atormentando-me o coração.

Alcoolizava-me para esquecer, mas, entontecida a cabeça, passava a ver, junto de mim, a sombra de meus pais e a sombra de Celina, perguntando-me, agoniados:

— Caim, que fizeste de teu irmão?

A loucura que me espreitava dominou-me por fim…

Conduzido ao casarão da Praia Vermelha, ali gastei quanto possuía para, depois de um ano de suplício moral e de irremediável tormento físico, abandonar os meus ossos exaustos na terra, em cujo seio, debalde, imploro consolação, porque o sofrimento e a vergonha sitiaram-me a vida, destruindo-me a paz.

Tenho amargado, através de todos os processos imagináveis, as consequências do meu crime.

Tenho sido um fantasma, desprezado em toda a parte, sorvendo o fel e o fogo do arrependimento tardio. Somente agora, ouvindo as lições do Evangelho, consegui acender em minhalma leves fagulhas de esperança…

E à maneira do mendigo que bate à porta do reconforto e do alívio, encontro presentemente um novo caminho para a reencarnação, que, muito breve, me oferecerá a bênção sagrada do esquecimento.

Entretanto, não sei quando poderei encontrar, de novo, meu pai e minha mãe, meu irmão e minha cunhada, credores em meu destino, para resgatar, diante deles, o débito imenso que contraí.

Por enquanto, serei apenas internado na carne para considerar os problemas que eu mesmo criei, em prejuízo de minha alma…

Brevemente, voltarei ao campo dos homens, mas reaparecerei, entre eles, sem a graça da família, a fim de valorizar o santuário doméstico, e renascerei mudo para aprender a falar.

Que Deus nos abençoe.




A. FERREIRA — Amigo espiritual não identificado.



A. Ferreira
Francisco Cândido Xavier


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