Cinquenta Anos Depois
Versão para cópiaNas Festas de Adriano
Cneio Lucius notou que a visita da neta aos condenados produzira efeitos grandemente benéficos. Apesar do abatimento, Célia mostrava-se corajosa na fé, mais calma e bem disposta. Contudo, o velho avô, considerando a sensibilidade do seu afetuoso coração de menina, providenciou junto dos filhos para que ela ficasse em sua companhia até a passagem das festas do casamento de Helvídia.
Neste ínterim, não podemos esquecer que a esposa de Lólio Úrbico, novamente em Roma, ia freqüentes vezes à Suburra, onde mantinha os mais íntimos colóquios com a vendedora de sortilégios, já conhecida.
Horas a fio, Cláudia e Plotina trocavam idéias à surdina, assentando providências criminosas ou arquitetando planos sinistros, salientando-se que Hatéria, havendo conquistado o máximo da estima dos patrões, trazia a antiga plebéia informada de todos os fatos atinentes à vida íntima do casal.
Nas vésperas do enlace de Helvídia, vamos encontrar a Capital do Império na agitação característica das épocas festivas.
Preparando-se para a sua derradeira romagem a um dos centros mais antigos do mundo, Adriano desejava brindar o povo romano com espetáculos inesquecíveis.
Em tais ocasiões, as autoridades políticas aproximavam-se do sentimento popular, alimentando-lhe as vibrações de extravagância e de alegria. A inauguração de novos edifícios, os preparativos da viagem e a adesão do povo ao programa oficial justificavam os mais altos caprichos da magnanimidade imperial. Por toda parte verificava-se o frêmito dos trabalhos extraordinários, enchendo a cidade de improvisações transformadoras. Construções de novas arcadas, pontes ou aquedutos provisórios, distribuições de trigo e vinho, organização de préstitos religiosos, homenagens a templos especializados, loterias populares e, por fim, o circo com as suas novidades inexcedíveis.
O povo esperava sempre tais manifestações, com júbilo incontido.
Instalado no Palatino, Élio Adriano cogitava de distrair as massas romanas, organizando comemorações dessa natureza, movimentando as autoridades e induzindo a guardar, porém, intimamente, o objetivo principal de todas as atividades, que era o de sua viagem à Grécia, cujas graças já lhe haviam conquistado a mais ampla simpatia. O grande Imperador, classificado na História como o maior benfeitor das cidades antigas, onde se havia erguido o berço da cultura e da civilização, projetava as melhores construções para Atenas, bem
como o estudo especializado das ruínas de toda a Hélade, de modo a beneficiar o patrimônio grego na medida de todos os seus recursos.
No limiar dos acontecimentos, vamos encontrar o soberano na intimidade de Cláudia Sabina e de Flegon, seu secretário de confiança, analisando os pormenores do cruzeiro que as galeras imperiais haveriam de fazer pelas águas mediterrâneas.
A certa altura, Adriano interpela o secretário:
– Senécio, já cumpriste minhas ordens concernentes à expedição dos convites?
– Por Júpiter! – exclamou Flegon satisfeito – nunca me esqueceria de cumprir, a preceito, uma determinação de Augusto.
– Como vê – disse o Imperador, dirigindo-se a Cláudia –, tudo está pronto e em ordem de marcha. Entretanto, necessito de alguém que me acompanhe, não tanto com o senso de arte ou de crítica, mas com o propósito de trabalho, atento ao meu desejo de transportar para Tibur algumas colunas célebres e outras soberbas relíquias das ruínas de Fócida e Corinto. Tenciono ornar os nossos edifícios com os tesouros do mundo antigo. Não poderei dispensar, no meu retiro de Tibur, as visões do jardim dos deuses, com as suas sugestões preciosas ao meu espírito.
A mulher do prefeito ouviu-o com particular atenção e, aproveitando a oportunidade para realizar seus projetos, aventou, fingindo o maior desinteresse:
– Divino, o filho de Cneio figura na lista dos vossos convidados?
– Não. Helvídio Lucius seria um excelente companheiro, mas, abstive-me de incomodá-lo, atento as suas condições especialíssimas de homem casado e chefe de família.
– Ora – replicou displicentemente a antiga plebéia –, haveis de permitir discorde um tanto do vosso pensar, a respeito. Acaso não tenho também um lar a exigir dedicação e cuidados? Não vou separar-me do esposo, que aqui ficará retido pelos deveres do seu cargo? No entanto, considero-me honrada em vos acompanhar, obedecendo à circunstância de representardes, para nós outros, o soberano e o chefe magnânimo. Acredito que o genro de Fábio pensará comigo, sem discrepância. Daqui a dois dias, realizam-se os esponsais da sua filha mais velha, sob as vossas vistas magnânimas. Ele que recebeu tantos favores de vossas mãos generosas, poderia desdenhar o ensejo de vos ser útil em alguma coisa?
Depois de uma pausa em que seus olhos fixaram profundamente o Imperador, de modo a recolher o íntimo efeito de suas palavras, continuou:
– Conhecendo pessoalmente as obras de Tibur, que tanto seduzem o gosto artístico, penso que só um esteta como Helvídio poderia operar o milagre de
escolher o precioso material e superintender o seu transporte para Tibur. Além do mais, Divino, creio que essa viagem, ausentando-nos de Roma por mais de um ano, seria sobremaneira agradável ao seu ânimo de patrício!... Novas possibilidades, novas realizações e novas perspectivas, penso, lhe granjeariam vantagens para a própria família, visto que o Império, representado em vossa magnanimidade, saberia recompensar-lhe todos os méritos.
Élio Adriano meditou um instante, enquanto o secretário tomava alguns apontamentos.
A seguir, levando em conta as observações de Cláudia, que o fixava ansiosa, respondeu solícito:
– Tens razão. Helvídio Lucius é o homem que procuro. Sabina fez um gesto expressivo de satisfação, enquanto o Imperador incumbia Flegon de levar em seu nome o respectivo convite.
Colhido pelo mensageiro no meio das atividades festivas do lar, o tribuno surpreendeu-se grandemente. Não esperava um ato daquela natureza. Outrem poderia honrar-se com a gentileza; ele, porém, sentimental por índole, preferia a paz doméstica, longe do turbilhão de bagatelas frívolas da Corte. A viagem à Grécia, em tais condições, afigurava-se-lhe aborrecida e inoportuna. Além disso, deveria partir dentro de uma semana. E quem poderia pensar no regresso? O soberano estava habituado a fazer excursões longas e freqüentes, através do mundo antigo. Na viagem de 124, estivera ausente de Roma por mais de três anos consecutivos, e tanto se apaixonara por Atenas que chegara ao extremo de se iniciar, pessoalmente, nos mistérios de Elêusis.
Todavia, antes que as reflexões penosas lhe anulassem de todo o ânimo, chamou a esposa ao tablino, onde examinaram atentamente o assunto.
– Por mim – exclamou o tribuno com o seu espírito resoluto –, procurarei esquivar-me, desistir do convite. Essas ausências de Roma, com a separação da família, transtornam-me o pensamento. Sinto-me deslocado, aborrecido, insatisfeito.
Alba Lucínia ouvia-lhe as afirmativas com o coração alarmado. Para o seu espírito sensível, semelhantes perspectivas eram assaz amargas e perturbadoras. Certo, Cláudia Sabina iria também à Hélade distante, e por tempo que ninguém poderia precisar. Anuir à viagem do esposo era entregá-lo às seduções inferiores daquela mulher, cujos sentimentos inconfessáveis a sua intuição feminina pressentia. Mas não só isso a preocupava. A sua situação em Roma tornar-se-ia novamente penosa durante a ausência do companheiro. Lólio, sem dúvida, voltaria a assediá-la com mais veemência e teimosia.
Pensou em falar a Helvídio, cientificá-lo de todos os fatos ocorridos na sua ausência, expor-lhe com sinceridade os seus escrúpulos, mas, logo, à mente lhe veio a figura paterna. Fábio Cornélio dependia, absolutamente, do prestígio e do apoio do prefeito, e do seu velho genitor dependiam sua mãe e seus irmãozinhos inexperientes.
Num relance, a nobre senhora compreendeu a impossibilidade de manifestar suas queixas diretas, em tais circunstâncias da vida, e, recordando-se ainda da gentileza do Imperador para com a filha, assegurando-lhe generosamente o futuro, sentiu que a voz da gratidão deveria falar mais alto que as conveniências pessoais.
– Helvídio – murmurou ela depois de viver intensamente as suas lutas íntimas –, ninguém mais que eu poderá sentir a tua ausência. Sabes que a tua presença no lar constitui a minha proteção e a de nossa família, mas o dever, querido, onde fica o dever nas atuais circunstâncias de nossa vida? O convite do Imperador não deverá representar para nós uma prova de confiança? E a generosidade de Adriano para conosco? A dádiva de Cápua não se verificou de modo a cativar-nos para sempre?
– Tudo isso é verdade – confirmou o tribuno calmamente –, mas eu odeio esse totalitarismo do Império, que nos rouba a autonomia individual e nos anula a própria vontade.
– Contudo, precisamos refletir para nos adaptarmos às circunstâncias – obtemperou a esposa, de maneira a confortar o espírito abatido do companheiro.
– Não é somente a política que me impressiona desagradavelmente – disse Helvídio desabafando –, é também a perspectiva da nossa separação por tempo indefinido! Longe do teu coração ponderado e carinhoso, sinto-me passível de esmorecimento ante o assédio das tentações de toda espécie, que me dificultam as iniciativas necessárias. Além do mais, terei de partir em companhia de pessoas que me não são simpáticas, e cujas relações sociais detesto sem restrições.
Alba Lucínia compreendeu as alusões indiretas do companheiro exacerbado e, tomando-lhe as mãos afetuosamente, exclamou com meiguice:
– Helvídio, muita vez quem odeia é que não soube amar convenientemente. Façamos por manter a harmonia e a paz na esfera de nossas relações. Como a concepção do dever fala mais alto nas tradições do nosso nome, acredito que partirás sem te deixares perder nos sentimentos inferiores!... Sê calmo e justo, certo de que ficarei orando por ti, amando-te e esperando-te. Essa doce perspectiva não te será um consolo de todas as horas?
Depois de uma pausa meditativa das ponderações da companheira, o tribuno atraiu-a ao coração, beijando-a agradecido.
– Sim, querida, os deuses hão de ouvir-te as preces pela nossa ventura. Também sinto que o dote de Helvídia exige mais este sacrifício; contudo, ao regressar, tomaremos as providências indispensáveis à modificação de nossa vida.
Alba Lucínia experimentou um brando alívio ao reconhecer que suas palavras haviam tranqüilizado o companheiro, mas, voltando ao seu pequeno mundo doméstico, passou a refletir na sua amargurada situação pessoal, considerando as penosas provações que o destino lhe reservava no curso da vida. Debalde insulava-se no santuário do lar, nos intervalos de suas atividades intensas, implorando a proteção das divindades que lhe haviam presidido ao matrimônio. Apesar do fervor com que o fazia, os deuses de marfim pareciam-lhe frios, implacáveis, e, no torvelinho das alegrias domésticas, o sorriso ocultava muitas lágrimas silenciosas, que não lhe borbulhavam dos olhos, mas escaldavam o coração.
Entre as clarinadas do júbilo geral, surgiram as festas adrianinas e, com elas, a data auspiciosa dos esponsais da filha de Helvídio Lucius.
As cerimônias nupciais constituíram um dos acontecimentos mais notáveis para a sociedade de então, a elas concorrendo o que Roma possuía de mais distinto nas camadas do patriciado.
Fábio Cornélio, desejando comemorar a ventura da neta de sua predileção, fora fértil em inventar os mais belos jogos de iluminação, no parque da residência de seus filhos.
Por toda parte, aroma de flores maravilhosas, em todos os recantos cantigas e trovas apaixonadas a confundirem-se com os sons das cítaras e atabales, tangidos por mãos de mestres exímios... Enquanto os escravos se cruzavam apressados em satisfazer o capricho dos convivas, dançavam bailarinos famosos ao estribilho melodioso dos alaúdes. Pequenos lagos, improvisados à guisa de aquários naturais, ostentavam plantas soberbas do Oriente e peixes exóticos provocavam a admiração de quantos se deliciavam com as alegrias da noite.
Todo o cenário festivo fora preparado a caráter, com previsão e requintes de bom gosto, salientando-se a piscina, onde barcos graciosos e leves se pejavam de ninfas e trovadores, e a arena na qual, de remate à festa, dois escravos jovens e atléticos perderam a vida sob os gládios poderosos de lutadores mais fortes.
Nenhuma lacuna se observava, exceto a ausência de Cneio Lucius, que, segundo informavam os anfitriões, permanecia no Aventino, ao lado da outra neta enferma.
No dia seguinte, enquanto Helvídia e Caio partiam para Cápua sob uma chuva de flores e se bem estivessem no zênite as festividades do povo, Alba Lucínia não conseguia dissipar a onda de receios que lhe assaltara o coração. Sua
consciência sentia-se tranqüila em relação ao que alvitrara ao marido, considerando que a gratidão de ambos, ao Imperador, não admitia tergiversações quanto à viagem à Grécia. Mas Helvídio Lucius lhe falara dos próprios temores, com respeito às tentações... Suas mãos inda sentiam o calor das dele, ao terminar as confidências amargurosas. Estaria certa, incitando-o a aceitar os novos encargos impostos pelo Império? Não deveria, igualmente, defender o esposo de todas as situações difíceis, determinadas pela política com as suas inquietações perversoras?...
Nasceu-lhe, então, a idéia de procurar Cláudia Sabina e pedir, com humildade, a sua interferência. Semelhante atitude não se compadecia com as tradições de orgulho da sua estirpe, mas o desejo do bem, aliado à vibração da sinceridade pura, poderia, a seu ver, modificar as intenções bastardas que, porventura, vivessem no coração daquela criatura fatal.
Desde que percebera a indecisão de Helvídio, sentiu a necessidade de cooperar ativamente para a sua tranqüilidade moral, desviando dele todos os perigos, com a mobilização das forças poderosas do seu afeto, que chegava a vencer os imperativos do orgulho inato.
Assim foi que, depois de muito meditar, no dia imediato ao casamento de Helvídia deliberou procurar Cláudia Sabina, pela primeira vez, no seu palácio do Capitólio.
Sua liteira foi recebida no átrio com geral alegria, mas a mulher do prefeito, não obstante o esforço sobre-humano para dissimular a contrariedade que lhe causava a visita inesperada, recebeu-a com enfado e altivez.
A mulher de Helvídio, contudo, apesar do orgulho que a hierarquia do nascimento lhe avivara no coração, mantinha-se serena e digna na sua atitude de sincera humildade.
– Senhora – explicou a filha de Júlia Spinter após as saudações usuais –, venho até aqui solicitar seus bons ofícios para nossa tranqüilidade doméstica.
– Às suas ordens! – retrucou a antiga plebéia assumindo ares de superioridade e cortando a palavra da interlocutora. – Terei o máximo prazer em lhe ser útil.
Não lhe sendo possível devassar os sentimentos mais íntimos da esposa de Lólio Úrbico, a seu respeito, a nobre senhora prosseguiu com simplicidade:
– Acontece que o Imperador, com o cavalheirismo e a magnanimidade que lhe marcam as atitudes, convidou meu marido para acompanhá-lo à Grécia, onde talvez se demore mais de um ano. Helvídio, porém, tem numerosos trabalhos em perspectiva e que dizem com a nossa tranqüilidade futura. A referida excursão, com a honrosa incumbência que lhe foi confiada, representa para nós um motivo
de honra e alegria, e, contudo, resolvi apelar para o seu prestígio generoso junto do César, a fim de que dispense meu marido dessa comissão.
– Oh! Mas isso iria transtornar completamente os planos de Augusto – disse Cláudia Sabina com visível ironia. – Então a esposa de Helvídio não se alegrará de compartilhar com ele a sagrada confiança do Império? Não me consta que uma patrícia de nascimento fugisse, algum dia, de comungar com o marido nos esforços preciosos que elevam o homem às culminâncias do serviço oficial.
Alba Lucínia escutava-a, surpreendida, entendendo integralmente aqueles conceitos irônicos e atrevidos.
– Atender a um pedido dessa natureza é humanamente impossível – prosseguiu com expressões fisionômicas quase brutais. – Helvídio Lucius não poderá esquivar-se ao programa administrativo, julgando, desse modo, que o seu coração de mulher venha a conformar-se com as circunstâncias.
A filha de Fábio Cornélio ouvia-lhe as palavras mordentes, recordando as confidências de Túlia relativamente ao passado do esposo. Atentava para os gestos da antiga plebéia, elevada pelo destino às melhores posições nos círculos da nobreza, e sentia, no todo de suas expressões contrafeitas e estranhas, um vasto complexo de odiosos sentimentos recalcados. Somente o ciúme poderia transformá-la de tal modo, a ponto de modificar os traços mais graciosos da fisionomia.
Não contavam elas a mesma idade, mas possuíam ambas os mesmos atrativos físicos da mulher formosa que ainda não chegou ao outono da vida e guarda as melhores prendas da primavera. Ao passo que Alba Lucínia atingira os trinta e oito anos, Cláudia chegara aos quarenta e dois, apresentando as duas as mesmas disposições de mocidade refletida.
Notando que Alba Lucínia lhe reparava todos os gestos, analisando-lhe as mínimas expressões com a sua observação inteligente e guardando toda a sua superioridade em face dos seus conceitos apressados, a esposa de Úrbico irritou- se profundamente.
– Afinal – exclamou quase ríspida, para a patrícia que a escutava em silêncio –, a senhora pede-me o inexequível. Pois fique sabendo que atravessamos uma época difícil em que as mulheres são obrigadas a abandonar os companheiros ao sabor da sorte. Eu mesma, possuindo o prestígio para o qual vem apelar, não consigo ladear semelhantes contingências. Casada com o prefeito dos pretorianos, já lhe ouvi dos próprios lábios a dolorosa afirmativa de que não poderá querer-me nunca.
Assim falando, fixou na interlocutora os olhos chamejantes de cólera, enquanto Alba Lucínia sentia o coração pulsar, precípite.
– E sabe a senhora quem é a mulher que detém as preferências de meu marido? – perguntou a antiga plebéia com expressão odienta, indefinível.
A nobre patrícia recebeu-lhe a alusão atrevida, de olhos úmidos, nos quais transparecia a dignidade dalma.
– O seu silêncio – murmurou Sabina arrogante – dispensa maiores explicações.
Alba Lucínia levantou-se de faces purpureadas, exclamando com dignidade:
– Enganei-me lamentavelmente, supondo que a sinceridade de uma esposa honesta e mãe dedicada lhe comovesse o coração. Em troca de meus sentimentos leais, recolho insultos de uma ironia mordaz e injustificável. Não a condeno. A educação não é a mesma para todas as pessoas de uma comunidade social e temos de subordiná-la ao senso da relatividade. Além do mais, cada qual dá o que tem.
E, sem mesmo despedir-se, caminhou desassombradamente até o átrio, onde a liteira a esperava, cercada de servos atenciosos, enquanto Cláudia Sabina como que petrificada no seu ódio, ante a lição de superioridade e desprezo recebida, esboçava um riso nervoso que explodiria logo após em saraivada de impropérios contra as escravas. Na intimidade do lar, Alba Lucínia orou, suplicando aos deuses fortaleza e proteção. A viagem do marido se efetuaria sem delongas e ela não julgava oportuna qualquer revelação a Helvídio, acerca das suas contrariedades íntimas. Conformada com os fatos, ficaria em Roma, crente de que mais tarde poderiam florir as suas esperanças de paz e felicidade no ambiente doméstico. Urgia conservar a harmonia e a coragem moral do companheiro, de modo que o seu coração pudesse suportar todas as dificuldades e vencer galhardamente as situações mais penosas. Ocultando as lágrimas íntimas, a pobre senhora lhe preparou todos os petrechos de viagem com o máximo carinho. Helvídio partiria com o seu amor e com a sua confiança e isso lhe devia bastar ao coração sensível e generoso.
Entretanto, o último dia das festividades adrianinas alvorecera e os protocolos da Corte obrigavam Alba Lucínia a acompanhar o esposo, nas derradeiras exibições do circo, onde Nestório e o filho deveriam ser sacrificados.
A perspectiva de semelhante espetáculo gelava-lhe o sangue, antevendo o horror das cenas brutais do anfiteatro, organizadas por espíritos insensíveis.
Recordou-se de que, na antevéspera, acompanhara Helvídia e Caio Fabricius ao Aventino para as despedidas do avô e de Célia, notando que a pobrezinha estava profundamente desfigurada pelas amarguras do seu grande e infortunado amor. O coração materno experimentava, ainda, o calor do abraço afetuoso da filha, que lhe dissera ao ouvido, em voz quase imperceptível: no último espetáculo, Ciro morrerá. Revia-lhe os olhos úmidos ao dar-lhe, resignada,
semelhante notícia, lembrando, ao mesmo tempo, a generosidade com que Célia acolhera a ventura da irmã, que, sorridente, feliz, partia para as delícias de Cápua, com os seus votos fraternos de felicidade e de paz.
Alba Lucínia meditou longamente os dolorosos problemas que lhe atormentavam o espírito, ponderando a necessidade de ocultá-los, dia-a-dia, sob o véu das alegrias disfarçadas e mentirosas, e demorando-se amargurada nos porquês do sofrimento e nos contrastes da sorte.
Era, porém, imprescindível que buscasse modificar as suas disposições espirituais.
Com efeito, daí a poucas horas Helvídio lhe recordava as obrigações protocolares e não foi sem emoções penosas que ajustou a túnica de gala, entregando-se às escravas para as bizarrias expressões do penteado em voga.
À tarde, observada à risca a tradição dos cortejos, as alegrias populares desbordavam no circo, entre ditérios e gargalhadas.
A caravana do César já havia chegado sob uma chuva de aplausos ensurdecedores.
Num palanque dourado, Élio Adriano cercava-se dos patrícios e dos augustinos de maior nomeada, entre os quais as personagens aristocráticas desta narrativa. Em torno da tribuna de honra estavam as vestais, formando um quadro magnífico, e as fileiras hierárquicas dos mais altos representantes da Corte. Senadores de mantos purpurinos, chefes militares com as suas armaduras prateadas e brilhantes, dignitários imperiais, confundiam-se em linhas ordenadas simetricamente, sobre verdadeiro oceano de cabeças humanas – a plebe, que dava expansão à sua alegria.
Na tribuna imperial sucediam-se as libações, quando o soberano se dirigiu a Lólio Úrbico nestes termos:
– Decretei o suplício e a execução dos conspiradores para a tarde de hoje, em atenção aos belos serviços com que a prefeitura dos pretorianos vem ilustrando os feitos do Império.
– Aliás, Divino – retrucou o prefeito com um sorriso –, devemos esse grande esforço a Fábio Cornélio, cuja dedicação extrema aos serviços do Estado se vem tornando cada vez mais notória nos círculos administrativos.
O velho censor agradeceu com um aceno a referência direta ao seu nome, enquanto Adriano obtemperava:
– Tive o cuidado de excluir da sentença todos os elementos reconhecidamente romanos, que figuravam entre os agitadores entregues à justiça. Mandei libertar a maioria no período das primeiras providências processuais,
exilando definitivamente para as Províncias os treze elementos mais exaltados, restando apenas vinte e dois estrangeiros, ou sejam, judeus, efésios e colossenses.
– Divino, vossas deliberações são sempre justas – exclamou o censor Fábio Cornélio, ansioso por desviar o assunto, de modo a não recordar o caso de Nestório que, garantido por seu genro, trabalhara nos próprios serviços de pergaminhos da Prefeitura.
Aproveitando a pausa natural, o orgulhoso patrício acentuou:
– Mas, a grandeza do espetáculo de hoje é verdadeiramente digna do César! Ainda não havia terminado a frase quando todos os presentes alongaram o
olhar para o centro da arena, onde, após os coleios exóticos dos dançarinos, iam iniciar-se as caçadas fabulosas. Atletas jovens começaram a lutar com tigres ferozes, apresentando-se igualmente elefantes e antílopes, cães selvagens e auroques de chifres pontiagudos.
De quando em quando, um caçador caía ensanguentado, sob aplausos delirantes, seguindo-se todos os números da tarde ao som de hinos que exacerbavam o instinto sanguinário da multidão.
Por vezes, os gritos de “cristãos às feras” e “morte aos conspiradores”, explodiam sinistramente da turba enfurecida.
Ao fim da tarde, quando os últimos raios do Sol caíam sobre as colinas do Célio e do Aventino, entre as quais se ostentava o circo famoso, os vinte e dois condenados foram conduzidos ao centro da arena. Negros postes ali se erguiam, aos quais os prisioneiros foram atados com grossas cordas presas por elos de bronze.
Nestório e Ciro confundiam-se naquele pequeno grupo de seres desfigurados pelos mais duros castigos corporais. Ambos estavam esqueléticos e quase irreconhecíveis. Apenas Helvídio e sua mulher, extremamente compungidos em face do suplício infamante, notaram a presença dos seus antigos libertos entre os mártires, fazendo o possível por esconder o mal-estar que a cena cruel lhes causava.
Os condenados, com exceção de sete mulheres que se trajavam de “indusium”, estavam quase nus, munidos somente de uma tanga que lhes cobria a cintura, até os rins. Cada qual foi colocado a um poste diferente, enquanto trinta atletas negros da Numídia e da Mauritânia compareciam na arena ao som das harpas que se casavam estranhamente com os gritos da plebe.
Havia muito que Roma não presenciava aquelas cenas, dado o caráter morigerado e tolerante de Adriano, que sempre fizera o possível por evitar os atritos religiosos, vendo-se, então, um espetáculo espantoso.
Enquanto os gigantes africanos preparavam os arcos, ajustando-lhes flechas envenenadas, os mártires do Cristianismo começaram a entoar um cântico dulçoroso. Ninguém poderia definir aquelas notas saturadas de angústia e de esperança.
Debalde, as autoridades do anfiteatro mandaram intensificar o ruído dos atabales e os sons estrídulos das flautas e alaúdes, a fim de abafar as vozes intraduzíveis do hino cristão. A harmonia daqueles versos resignados e tristes elevava-se sempre, destacando-se de todos os ruídos, na sua majestosa melancolia.
Nestório e Ciro também cantavam, dirigindo os olhos para o céu, onde o Sol dourava as derradeiras nuvens crepusculares.
As primeiras setas foram atiradas ao peito dos mártires com singular mestria, abrindo-lhes rosas de sangue que se transformavam, imediatamente, em grossos filetes de sofrimento e morte, mas o cântico prosseguia como um harpejo angustiado, que se estendia pela Terra obscura e dolorosa... Na sua melodia misturavam-se, indistintamente, a saudade e a esperança, as alegrias do céu e os desenganos do mundo, como se aquele punhado de seres desamparados fosse um bando de cotovias apunhaladas, librando-se nas atmosferas da Terra, a caminho do Paraíso:
Cordeiro Santo de Deus, Senhor de toda a Verdade, Salvador da Humanidade, Sagrado Verbo de Luz!... Pastor da Paz, da Esperança, De Tua mansão divina, Senhor Jesus, ilumina
As dores de nossa cruz!... Também tiveste o Calvário
De dor, de angústia, de apodo, Ofertando ao mundo todo
As luzes da redenção;
Tiveste a sede, o tormento, Mas, sob o fel, sob as dores, Redimiste os pecadores
Da mais triste escravidão!
Se também sorveste o cálix
De amargor e de ironia,
Nós queremos a alegria
De padecer e chorar...
Pois, ovelhas tresmalhadas,
Nós somos filhos do erro,
Que no mundo do desterro
Vivemos a Te esperar.
Dá, Senhor, que nós possamos
Viver a felicidade
Nas bênçãos da Eternidade
Que não se encontram aqui;
O júbilo de reencontrar-Te
Nos últimos padeceres,
Acende em nós os prazeres
De bem morrermos por Ti!...
Senhor, perdoa os verdugos
De tua doutrina santa!
Protege, ampara, levanta
Quem no mal vive a morrer...
A caminho do Teu reino,
Toda a dor se transfigura,
Toda a lágrima é ventura,
O bem consiste em sofrer!...
Consola, Jesus amado,
Aqueles que nós queremos,
Que ficarão nos extremos
Da saudade e do amargor;
Dá-lhes a fé que transforma
Os sofrimentos e os prantos
Nos tesouros sacrossantos
Da vida de Teu amor!...
Outras estrofes elevaram-se ao céu como soluços de resignação e de
esperança...
Com o peito crivado de setas que lhe exauriam o coração, e contemplando o
cadáver do filho que expirara antes dele, dada a sua fraqueza orgânica, Nestório sentiu que um turbilhão de lembranças indefiníveis lhe afloravam ao pensamento já vacilante, confuso, nas vascas da agonia. Com os olhos sem brilho pelas ânsias da morte arrebatando-lhe as forças, percebeu a multidão que os apupava, escutando-lhe ainda os alaridos animalescos... Fitou a tribuna imperial, onde, certo, estariam quantos lhe haviam merecido afeição pura e sincera, mas, dentro
de emoções intraduzíveis, viu-se também, nas suas recordações confusas, na tribuna de honra, com a toga de senador, enfeitado de púrpura... Coroado de rosas[1] aplaudia, também ele, a matança de cristãos que, sem os postes do suplício nem flechas envenenadas a lhes traspassarem o peito, eram devorados por feras hediondas e insaciáveis... Desejou andar, mover-se, porém, ao mesmo tempo sentia-se ajoelhado junto de um lago extenso, diante de Jesus Nazareno, cujo olhar doce e profundo lhe penetrava os recônditos do coração... Genuflexo, estendia as mãos para o Mestre Divino, implorando amparo e misericórdia... Lágrimas ardentes queimavam-lhe as faces descarnadas e tristes...
Aos seus olhos moribundos, as turbas furiosas do circo haviam desaparecido...
Foi quando um vulto de anjo ou de mulher[2] caminhou para ele, estendendo-lhe as mãos carinhosas e translúcidas... O mensageiro do céu ajoelhara-se junto do corpo ensanguentado e afagou-lhe os cabelos, beijando-o suavemente. O antigo escravo experimentou a carícia daquele ósculo divino e seu espírito cansado e enfraquecido adormeceu de leve, como se fora uma criança.
Em toda a arena vibraram radiações invisíveis, dos mais elevados planos da espiritualidade... Seres abnegados e resplandecentes estendiam fraternalmente os braços para os companheiros que abandonavam o invólucro perecível, nos testemunhos da fé, pela injúria e pelo sofrimento.
Daí a minutos, enquanto os serviçais do anfiteatro retiravam dos postes de martírio os despojos sangrentos, aos gritos de aplauso da turba ensandecida, Helvídio Lucius, na tribuna de honra, apertava nervosamente as mãos da esposa, dando-lhe a entender as comoções inexplicáveis que lhe vagavam no íntimo, enquanto ela, obrigada a manter as atitudes protocolares, cravava no companheiro os olhos molhados.
Mas, no palácio do Aventino, naquela tarde límpida e serena, o espetáculo fora talvez mais comovente pela sua majestade dolorida e silenciosa.
Recolhidos a uma sala de repouso, Cneio Lucius e a neta observavam todos os movimentos externos das festividades adrianinas, reparando que a onda de povo se represara no circo para os derradeiros números do programa.
Ao empalecer do céu romano, a jovem buscou o fragmento de pergaminho em que Ciro escrevera as oitavas rimadas do último hino, exclamando para o velhinho, suavemente:
– Avô, a esta hora Nestório e Ciro devem estar caminhando para o sacrifício!
Acreditas, vovô, que os nossos amados podem voltar do Céu para nos suavizar o destino?
– Como não, minha filha? Pois se Jesus prometeu vir ao encontro de quantos se reúnam, neste mundo, em seu nome, como não permitirá voltarem seus mensageiros, que nos amam já desta vida?
Célia ergueu para o ancião os grandes olhos tristes, iluminados por uma candidez maravilhosa.
Em seguida, levantou-se muito serena, dirigindo-se à larga janela que dava para o Tibre, cujas águas refletiam os matizes da hora crepuscular.
Fixando o pergaminho, leu todo o conteúdo, silenciosamente, cantando depois em voz quase imperceptível todos os versos do hino cristão e detendo-se, de modo particular, na última estrofe, relendo-a com uma lágrima e procurando adivinhar nela o pensamento do seu eleito.
O venerando patrício ouvia-lhe a voz terna, como se escutasse uma ave implume, abandonada e só, entre os invernos do mundo, sem poder exteriorizar as emoções que lhe assaltaram o íntimo dolorido.
As mais tristes meditações povoavam-lhe o cérebro, sentia o coração bater acelerado, num ritmo assustador.
De alma confrangida, observava a neta que se voltava agora para o céu, como se buscasse entre as nuvens do azul vespertino o coração que idolatrava.
Alguns minutos rolaram, longos e penosos para o seu pensamento exausto e magoado.
Em dado instante, quando o firmamento já havia de todo desmaiado, a jovem fixou no Alto, com mais atenção, os olhos ternos e profundos, como se estivesse vislumbrando alguma visão que a extasiasse.
Parecia abstraída de todas as sensações do mundo exterior, de todos os objetos que a rodeavam, figurando-se não perceber a presença do próprio avô, que lhe acompanhava o êxtase, comovidamente.
Decorridos instantes, todavia, os braços moviam-se de novo, como se as expressões que lhe eram características retomassem o curso da realidade e da vida.
– É verdade! – suspirou Cneio Lucius num quase murmúrio.
– Vovô – disse então com uma placidez divina a lhe brilhar nos olhos –, vi um bando de pombas alvas, no céu, como se houvessem saído do circo do martírio!...
– Sim, filha – respondeu Cneio Lucius angustiado, depois de levantar-se para contemplar o azul sereno –, devem ser as almas dos mártires, remontando à Jerusalém celeste!...
Profundo silêncio fizera-se entre ambos.
A ansiedade de seus corações, na grandeza melancólica do momento, falava mais que todas as palavras.
Célia, porém, rompeu aquela divina quietude, interrogando:
– Vovô, já leste o Sermão da Montanha, em que Jesus abençoa todos os que sofrem?!...
– Sim... – respondeu o ancião amargurado.
– Certamente – retornou a jovem com a sua inocência carinhosa e desvelada – Jesus preferiu que eu ficasse no mundo, sem o amor de Ciro, a sofrer o sacrifício da separação e da saudade, a fim de me salvar um dia, para o Céu, onde se reúnem todos os seus bem-aventurados!...
Cneio Lucius sentiu profundamente a doce resignação daquelas palavras. Desejou responder, exortando-a à sublime perseverança daquele sacrifício, mas tinha o velho peito sufocado. Atraiu, contudo, a neta de encontro ao coração, beijando-lhe a fronte enternecidamente. Seus cabelos brancos misturavam-se com a farta cabeleira jovem, como se a sua velhice veneranda fosse uma noite estrelada osculando uma aurora.
Ao longe, ouviam-se ainda as últimas algazarras do povo, mas o firmamento de Roma tocara-se de beleza sublimada e misteriosa. A imensa tranqüilidade do crepúsculo parecia povoar-se de sagrados apelos do Infinito.
Então, os dois, fitando o Tibre e o céu, em prece silenciosa, começaram a chorar...
[1]Nestório era a reencarnação do orgulhoso senador Públio Lentulus Cornélio. (Vide “Há Dois Mil Anos”.) – Nota de Emmanuel.
[2] Lívia. (Vide “Há Dois Mil Anos”.) – Nota de Emmanuel.
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Lucas 6:20
E, levantando ele os olhos para os seus discípulos, dizia: Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus.
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Mateus 18:21
Então Pedro, aproximando-se dele, disse: Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete?
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João 15:12
O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei.
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