Capítulo XV

A visita materna

Atento às recomendações de Clarêncio, procurava reconstituir energias para recomeçar o aprendizado. Noutro tempo, talvez me sentisse ofendido com as observações aparentemente tão ríspidas; mas, naquelas circunstâncias, lembrava meus erros antigos e sentia-me confortado. Os fluidos carnais compelem a alma a profundas sonolências. Em verdade, apenas agora reconhecia que a experiência humana, em hipótese alguma, poderia ser levada à conta de brincadeira. A importância da encarnação na Terra surgia-me aos olhos, evidenciando grandezas até então ignoradas. Considerando as oportunidades perdidas, reconhecia não merecer a hospitalidade de “Nosso Lar”. Clarêncio tinha dobradas razões para falar-me com aquela franqueza.

Passei dias entregue a profundas reflexões sobre a vida. No íntimo, grande ansiedade de rever o lar terreno. Abstinha-me, porém, de pedir novas concessões. Os benfeitores do Ministério do Auxílio eram excessivamente generosos para comigo. Adivinhavam-me os pensamentos. Se até ali não me haviam proporcionado satisfação espontânea a semelhante desejo, é que tal propósito não seria oportuno. Calava-me, então, resignado e algo triste. Lísias fazia o possível por alegrar-me com os seus pareceres consoladores. Eu estava, porém, nessa fase de recolhimento inexprimível, em que o homem é chamado para dentro de si mesmo, pela consciência profunda.


Um dia, contudo, o bondoso visitador penetrou, radiante, no meu apartamento, exclamando:

— Adivinhe quem chegou à sua procura!

Aquela fisionomia alegre, aqueles olhos brilhantes de Lísias, não me enganavam.

— Minha mãe! — Respondi, confiante.

Olhos arregalados de alegria, vi minha mãe entrar de braços estendidos.

— Filho! Meu filho! Vem a mim, querido meu!

Não posso dizer o que se passou então. Senti-me criança, como no tempo em que brincava à chuva, pés descalços, na areia do jardim. Abracei-me a ela carinhoso, chorando de júbilo, experimentando os mais sagrados transportes da ventura espiritual. Beijei-a repetidas vezes, apertei-a nos braços, misturei minhas lágrimas com as suas lágrimas, e não sei quanto tempo estivemos juntos, abraçados. Afinal, foi ela quem me despertou do enlevo, recomendando:

— Vamos, filho, não te emociones tanto assim! A alegria também, quando excessiva, costuma castigar o coração.

E em vez de carregar minha adorada velhinha nos braços, como fazia na Terra, nos derradeiros tempos de sua romagem por lá, foi ela quem me enxugou o pranto copioso, conduzindo-me ao divã.

— Estás ainda fraco, filhinho. Não desperdices energias.

Sentei-me a seu lado e ela, cuidadosamente, ajeitou-me a fronte cansada, em seus joelhos, afagando-me de leve, confortando-me à luz de santas recordações. Senti-me, então, o mais venturoso dos homens. Guardava a impressão de haver o barco de minha esperança ancorado em porto mais seguro. A presença maternal constituía infinito reconforto ao meu coração. Aqueles minutos davam-me a ideia de um sonho tecido em trama de felicidade indizível. Qual menino que procura detalhes, fixava-lhe as vestes, cópia perfeita de um dos seus velhos trajos caseiros. Notando-lhe o vestido escuro, as meias de lã, a mantilha azul, contemplei a cabeça pequenina, aureolada a fios de neve, as rugas do rosto, o olhar doce e calmo de todos os dias. Mãos trêmulas de contentamento, acariciava-lhe as mãos queridas, sem conseguir articular uma frase. Minha mãe, todavia, mais forte que eu, falou com serenidade:

— Nunca saberemos agradecer a Deus tamanhas dádivas. O Pai jamais nos esquece, meu filho. Que longo tempo de separação! Não julgues, porém, que me houvesse esquecido. As vezes, a Providência separa os corações, temporariamente, para que aprendamos o amor divino.

Identificando-lhe a ternura de todos os tempos, senti que se me reavivavam as chagas terrenas. Oh! Como é difícil alijar resíduos trazidos da Terra! Como pesa a imperfeição acumulada em séculos sucessivos! Quantas vezes ouvira conselhos salutares de Clarêncio, observações fraternais de Lísias, para renunciar às lamentações; mas, ao carinho maternal, como que se reabriam velhas feridas. Do pranto de alegria passei às lágrimas de angústia, relembrando exacerbadamente os trâmites terrestres. Não conseguia atinar que a visita não era para satisfação dos meus caprichos, e sim preciosa bênção de acréscimo da misericórdia divina. Copiando antigas exigências, concluí erroneamente que minha genitora deveria continuar como repositório de minhas queixas e males sem-fim. Na Terra, quase sempre, as mães não passam de escravas, no conceito dos filhos. Raros lhes entendem a dedicação antes de as perder. Na mesma falsa concepção de outros tempos, descambei para o terreno das confidências dolorosas.

Minha mãe ouviu-me calada, deixando transparecer inexprimível melancolia. Olhos úmidos, aconchegando-me de quando em quando mais estreitamente ao coração, falou, carinhosa:

— Oh! Filho, não ignoro as instruções que o nosso generoso Clarêncio te ministrou. Não te queixes. Agradeçamos ao Pai a bênção desta reaproximação. Sintamo-nos agora numa escola diferente, onde aprendemos a ser filhos do Senhor. Na posição de mãe terrestre, nem sempre consegui orientar-te como convinha. Também eu trabalho, pois, reajustando o coração. Tuas lágrimas fazem-me voltar à paisagem dos sentimentos humanos. Alguma coisa tenta operar o retrocesso de minh’alma. Quero dar razão aos teus lamentos, erigir-te um trono, qual se foras a melhor criatura do Universo; mas essa atitude, presentemente, não se coaduna com as novas lições da vida. Esses gestos são perdoáveis nas Esferas da carne; aqui, porém, filho meu, é indispensável atender, antes de tudo, ao Senhor. Não és o único homem desencarnado a reparar os próprios erros, nem sou a única mãe a sentir-se distante dos entes amados. Nossa dor, portanto, não nos edifica pelos prantos que vertemos, ou pelas feridas que sangram em nós, mas pela porta de luz que nos oferece ao espírito, a fim de sermos mais compreensivos e mais humanos. Lágrimas e úlceras constituem o processo de bendita extensão dos nossos mais puros sentimentos.

Depois de longa pausa, em que a consciência profunda me advertia solene, minha mãe prosseguiu:

— Se é possível aproveitar estes minutos rápidos, em expansões de amor, por que desviá-los para a sombra das lamentações? Regozijemo-nos, filho, e trabalhemos incessantemente. Modifica a atitude mental. Conforta-me tua confiança em meu carinho, experimento sublime felicidade em tua ternura filial, mas não posso retroceder nas minhas experiências. Amemo-nos, agora, com o grande e sagrado amor divino.

Aquelas palavras benditas me despertaram. Guardava a impressão de fluidos vigorosos que partiam do sentimento materno vitalizando-me o coração. Minha mãe me contemplava desvanecida, mostrando belo sorriso. Ergui-me, respeitoso, e beijei-a na fronte, sentindo-a mais amorosa e mais bela que nunca.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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