Nosso Lar
Versão para cópiaVampiro
Eram vinte e uma horas. Ainda não havíamos descansado, senão em momentos de palestra rápida, necessária à solução de problemas espirituais. Aqui, um doente pedia alívio; ali, outro necessitava passes de reconforto. Quando fomos atender a dois enfermos, no Pavilhão 11, escutei gritaria próxima. Fiz instintivo movimento de aproximação, mas Narcisa deteve-me, atenciosa:
— Não prossiga, — disse, — localizam-se ali os desequilibrados do sexo. O quadro seria extremamente doloroso para seus olhos. Guarde essa emoção para mais tarde.
Não insisti. Entretanto, fervilhavam-me no cérebro mil interrogações. Abrira-se um mundo novo à minha pesquisa intelectual. Era indispensável recordar o conselho da genitora de Lísias, a cada momento, para não me desviar da obrigação justa.
Logo após às vinte e uma horas, chegou alguém dos fundos do enorme parque. Era um homenzinho de semblante singular, evidenciando a condição de trabalhador humilde. Narcisa recebeu-o com gentileza, perguntando:
— Que há, Justino? Qual é a sua mensagem?
O operário, que integrava o corpo de sentinelas das Câmaras de Retificação, respondeu, aflito:
— Venho participar que uma infeliz mulher está pedindo socorro, no grande portão que dá para os campos de cultura. Creio tenha passado despercebida aos vigilantes das primeiras linhas…
— E por que não a atendeu? — Interrogou a enfermeira.
O servidor fez um gesto de escrúpulo e explicou:
— Segundo as ordens que nos regem, não pude faze-lo, porque a pobrezinha está rodeada de pontos negros.
— Que me diz? — Revidou Narcisa, assustada.
— Sim, senhora.
— Então, o caso é muito grave.
Curioso, segui a enfermeira, através do campo enluarado. A distância não era pequena. Lado a lado, via-se o arvoredo tranquilo do parque muito extenso, agitado pelo vento caricioso. Havíamos percorrido mais de um quilômetro, quando atingimos a grande cancela a que se referira o trabalhador.
Deparou-se-nos, então, a miserável figura da mulher que implorava socorro do outro lado. Nada vi, senão o vulto da infeliz, coberta de andrajos, rosto horrendo e pernas em chaga viva; mas Narcisa parecia divisar outros detalhes, imperceptíveis ao meu olhar, dado o assombro que estampou na fisionomia, ordinariamente calma.
— Filhos de Deus! — Bradou a mendiga ao avistar-nos, — dai-me abrigo à alma cansada! Onde está o paraíso dos eleitos, para que eu possa fruir a paz desejada.
Aquela voz lamuriosa sensibilizava-me o coração. Narcisa, por sua vez, mostrava-se comovida, mas falou em tom confidencial:
— Não está vendo os pontos negros?
— Não! — Respondi.
— Sua visão espiritual ainda não está suficientemente educada.
E, depois de ligeira pausa, continuou:
— Se estivesse em minhas mãos, abriria imediatamente a nossa porta; mas, quando se trata de criaturas nestas condições, nada posso resolver por mim mesma. Preciso recorrer ao Vigilante-Chefe, em serviço.
Assim dizendo, aproximou-se da infeliz e informou, em tom fraterno:
— Faça o obséquio de esperar alguns minutos.
Voltamos apressadamente ao interior. Pela primeira vez, entrei em contato com o diretor das sentinelas das Câmaras de Retificação. Narcisa apresentou-me e notificou-lhe a ocorrência. Ele esboçou um gesto significativo e ajuntou:
— Fez muito bem, comunicando-me o fato. Vamos até lá.
Dirigimo-nos os três para o local indicado.
Chegados à cancela, o Irmão Paulo, orientador dos vigilantes, examinou atentamente a recém-chegada do Umbral, e disse:
— Esta mulher, por enquanto, não pode receber nosso socorro. Trata-se de um dos mais fortes vampiros que tenho visto até hoje. É preciso entregá-la à própria sorte.
Senti-me escandalizado. Não seria faltar aos deveres cristãos abandonar aquela sofredora ao azar do caminho? Narcisa, que me pareceu compartilhar da mesma impressão, adiantou-se suplicante:
— Mas, Irmão Paulo, não há um meio de acolhermos essa miserável criatura nas Câmaras?
— Permitir essa providência, — esclareceu ele, — seria trair minha função de vigilante.
E indicando a mendiga que esperava a decisão, a gritar impaciente, exclamou para a enfermeira:
— Já notou, Narcisa, alguma coisa além dos pontos negros?
Agora, era minha instrutora de serviço que respondia negativamente.
— Pois vejo mais, — respondeu o Vigilante-Chefe.
Baixando o tom de voz, recomendou:
— Conte as manchas pretas.
Narcisa fixou o olhar na infeliz e respondeu, após alguns instantes:
— Cinquenta e oito.
O Irmão Paulo, com a paciência dos que sabem esclarecer com amor, explicou:
— Esses pontos escuros representam cinquenta e oito crianças assassinadas ao nascerem. Em cada mancha vejo a imagem mental de uma criancinha aniquilada, umas por golpes esmagadores, outras por asfixia. Essa desventurada criatura foi profissional de ginecologia. A pretexto de aliviar consciências alheias, entregava-se a crimes nefandos, explorando a infelicidade de jovens inexperientes. A situação dela é pior que a dos suicidas e homicidas, que, por vezes, apresentam atenuantes de vulto.
Recordei, assombrado, os processos da medicina, em que muitas vezes enxergara, de perto, a necessidade da eliminação de nascituros para salvar o organismo materno, nas ocasiões perigosas; mas, lendo-me o pensamento, o Irmão Paulo acrescentou:
— Não falo aqui de providências legítimas, que constituem aspectos das provações redentoras, refiro-me ao crime de assassinar os que começam a trajetória na experiência terrestre, com o direito sublime da vida.
Demonstrando a sensibilidade das almas nobres, Narcisa rogou:
— Irmão Paulo, também eu já errei muito no passado. Atendamos a esta desventurada. Se me permite, eu lhe dispensarei cuidados especiais.
— Reconheço, minha amiga, — respondeu o diretor da vigilância, impressionando pela sinceridade, — que todos somos Espíritos endividados; entretanto, temos a nosso favor o reconhecimento das próprias fraquezas e a boa vontade de resgatar nossos débitos; mas esta criatura, por agora, nada deseja senão perturbar quem trabalha. Os que trazem os sentimentos calejados na hipocrisia emitem forças destrutivas. Para que nos serve aqui um serviço de vigilância?
E, sorrindo expressivamente, exclamou:
— Busquemos a prova.
O Vigilante-Chefe aproximou-se, então, da pedinte e perguntou:
— Que deseja a irmã, do nosso concurso fraterno?
— Socorro! Socorro! Socorro!… — Respondeu lacrimosa.
— Mas, minha amiga, — ponderou acertadamente, — é preciso sabermos aceitar o sofrimento retificador. Por que razão tantas vezes cortou a vida a entezinhos frágeis, que iam à luta com a permissão de Deus?
Ouvindo-o, inquieta, ela exibiu terrível carantonha de ódio e bradou:
— Quem me atribui essa infâmia? Minha consciência está tranquila, canalha!… Empreguei a existência auxiliando a maternidade na Terra. Fui caridosa e crente, boa e pura…
— Não é isso que se observa na fotografia viva dos seus pensamentos e atos. Creio que a irmã ainda não recebeu, nem mesmo o benefício do remorso. Quando abrir sua alma às bênçãos de Deus, reconhecendo as necessidades próprias, então, volte até aqui.
Irada, respondeu a interlocutora:
— Demônio! Feiticeiro! Sequaz de Satã!… Não voltarei jamais!… Estou esperando o céu que me prometeram e que espero encontrar.
Assumindo atitude ainda mais firme, falou o Vigilante-Chefe com autoridade:
— Faça, então, o favor de retirar-se. Não temos aqui o céu que deseja. Estamos numa casa de trabalho, onde os doentes reconhecem o seu mal é tentam curar-se, junto de servidores de boa vontade.
A mendiga objetou atrevidamente:
— Não lhe pedi remédio, nem serviço. Estou procurando o paraíso que fiz por merecer, praticando boas obras.
E, endereçando-nos dardejante olhar de extrema cólera, perdeu o aspecto de enferma ambulante, retirando-se a passo firme, como quem permanece absolutamente senhor de si.
Acompanhou-a o Irmão Paulo com o olhar, durante longos minutos, e, voltando-se para nós, acrescentou:
— Observaram o Vampiro? Exibe a condição de criminosa e declara-se inocente; é profundamente má e afirma-se boa e pura; sofre desesperadamente e alega tranquilidade; criou um inferno para si própria e assevera que está procurando o céu.
Ante o silêncio com que lhe ouvíamos a lição, o Vigilante-Chefe rematou:
— É imprescindível tomar cuidado com as boas ou más aparências. Naturalmente, a infeliz será atendida alhures pela Bondade Divina, mas, por princípio de caridade legítima, na posição em que me encontro, não lhe poderia abrir nossas portas.
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