Dias Venturosos

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Dias venturosos

Disse-lhes o anjo: Não temais, pois eu vos trago uma boa nova de grande alegria, que o será para todo o povo: é que hoje nasceu na cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo Senhor. "

 

Lucas 2:10-11

 

Iniciavam-se os dias venturosos após os grandes dissabores e longas amarguras carpidos ao longo dos séculos. À noite de sombras demoradas sucedeu o amanhecer de bênçãos já não esperadas.


A orgulhosa Israel experimentara o silêncio multisse-

cular das profecias, como se a Divindade submetesse o povo escolhido ao testemunho das provações demoradas: escravidão, sofrimentos no deserto, submissão aos gentios, que lhe usurparam a administração política, ameaçando a religião oficial, que tentavam substituir pelos deuses pagãos impostos através da adoração à figura do Imperador de Roma. . .

 

Multiplicavam-se, então, a hediondez, o suborno de consciências, as intrigas palacianas e as traições de todo porte.

 

A busca do poder e da sobrevivência assumira papel preponderante no comportamento hebreu, e os indivíduos se haviam transformado em lobos que se devoravam recipocramente, insaciáveis e cruéis.


A rapina e a desconfiança faziam parte do dia a dia de Jerusalém, que se orgulhava do templo majestoso, ora transformado em covil de raposas políticas e hienas astutas, sempre famélicas. Adorava-se ao Deus Único, enquanto

se arquitetavam planos maquiavélicos em seu nome, sob a máscara da sordidez.

 

A pureza de sentimentos, que deve caracterizar o indiví- duo de fé, cedera espaço para a hipocrisia religiosa, sem lugar para a verdadeira fraternidade, a irrestrita confiança em Deus.

 

Descaracterizara-se de tal forma a conduta, que todo exemplo de dedicação era tomado como postura falsa, e toda seriedade no cumprimento da Lei Antiga era tida como ilegítima.

 

As criaturas disputavam, sem qualquer escrúpulo, as migalhas do destaque social e as funções de relevo que lhes proporcionassem ser alvo da bajulação, do desmedido ego- ísmo, das atitudes arbitrárias que assinalavam os pigmeus travestidos de gigantes. . .

 

O clima moral apresentava-se empestado pelos vapores da deslealdade e da luxúria, combatidas em público e preservadas em particular.

 

Os bordéis de luxo multiplicavam-se, as bacanais faziam-se frequentes, imitando os romanos, que eram detestados e invejados.

 

Os desforços nos fracos e oprimidos pela miséria socioeconômica eram a forma habitual de amainar o descontentamento geral, oferecendo aos esfaimados de justiça alguns exemplos da esquecida dignidade pública.

 

Apedrejamentos, sem qualquer julgamento sério, perseguições contínuas, dissimuladas de conduta severa na administração do comportamento geral, sucediam-se como forma de anestesiar aqueles que exigiam fossem cumpridas as determinações de Moisés.

 

Tratava-se de verdadeiros teatros de dissimulação bem apresentada, que, no entanto, estavam longe de esconder a decadência dos governantes e do próprio povo em geral.

 

Foi nesse intenso palco de corrupção e desmandos que nasceu Jesus, trazendo as boas novas de alegria, transformando os dias dos am-ha-haretz - a pobre gente espoliada do campo, que agora perambulava pelas cidades, faminta e quase desnuda, também considerada inútil, que aparece em todas as épocas da Humanidade, os miseráveis, os párias sociais - em um festival de oportunidades dignificadoras. . .

 

Nesse terrível contubérnio, Jesus levantou sua voz e deu início aos dias venturosos, que jamais se acabarão, abrindo espaço para o amor desprezado, para a esperança esquecida, para a felicidade não mais sonhada.

 

A sua voz suave e forte soou, de quebrada em quebrada, desde os vales profundos do Esdrelon às altas montanhas do Tabor e do Sinai, convidando ao despertamento, conduzindo na direção do reino de Deus, que estava esquecido por quase todos, embora o seu nome estivesse na boca dos religiosos, que o utilizavam como instrumento de dolo, de sofisma e de indigna justiça.

 

Dando prosseguimento aos anúncios de João, Ele começou o ministério na Galileia, onde predominavam as gentes simples e desataviadas, confiantes e ingênuas, não maculadas pela perversidade da mente astuciosa dos administradores infiéis.

 

Ali, entre as balsaminas perfumadas e os tamarindeiros em flor, ante o mar-espelho refletindo nuvens garças, nas barcas encalhadas nas praias de pedregulhos e seixos, nas praças dos mercados, nas vilas e aldeias, nas cidades ribeirinhas, Ele cantou o poema lírico da imortalidade como dantes jamais fora ouvido, e nunca mais voltaria a ser escutado. . .

 

Tomando as imagens simples do cotidiano, Ele teceu as redes de amor com que resgataria a humanidade de si mesma, retirando-a do oceano encapelado das paixões, a fim de encaminhá-la no rumo da Grande Luz.

 

Tocado pela compaixão, assumiu a defesa dos fracos e dos oprimidos, estimulando-os ao despertamento interior e demonstrando que a maior escravidão é aquela que se vincula às paixões e misérias morais, atendendo às aflições e socorrendo as dores com infinita paciência, demonstrando, porém, que as doenças externas provêm do mundo íntimo, que necessita ser transformado para melhor, a fim de que não remanesçam causas atuais para futuras aflições.

 

Nunca se ouviram palavras iguais às que Ele pronunciou, nem música semelhante à que saiu dos seus lábios.

 

Os seus ditos eram repetidos e guardados nas mentes e nos corações, como se fossem uma sinfonia que jamais se acabaria, harmonizando as criaturas com a Natureza e com elas mesmas.

 

Enfrentando com altivez o farisaísmo, jamais se atemorizou com as ameaças diretas ou veladas, prosseguindo no ministério sem qualquer ressentimento dos perseguidores, calmo e nobre, demonstrando a elevação de que era investido pelo Pai e que lograra ao longo dos milênios de evolução.

 

Assinalou a época de maneira profunda e tornou-se, por isso mesmo, o marco divisório dos tempos de todas as épocas.

 

Caluniado, invejado, maltratado, traído, crucificado, continuou amando e ressuscitou em manhã radiosa, a fim de que nunca cessassem as alegrias nem se acabassem os DIAS VENTUROSOS que Ele inaugurara.

 

* * *

 

Reunimos, neste livro, narrativas que ouvimos e anotamos em nossas conversações íntimas no além-túmulo, e que fazem parte das suaves-doces histórias do mundo espiritual.

 

Não se trata de fatos reais, de acontecimentos históricos, mas de interpretações de algumas das muitas ocorrências que assinalaram o seu apostolado, e que passaram de geração, tornando-se motivo de comentários felizes que se repetem entre nós, os desencarnados.

 

Objetivamos, com as páginas que constituem a presente obra, recordar aqueles DIAS vENTUROSOS, ricos de beleza e de esperanças, de harmonia e de ternura, que dedicamos a todos quantos sofrem e anelam por uma palavra de conforto, de encorajamento, de paz.

 

Sem qualquer pretensão literária ou prurido escriturístico de restabelecer verdades evangélicas, o nosso propósito fundamental é consolar, despertar sentimentos de amor e de bondade nos leitores que nos honrarem com a sua atenção e gentileza.

 

Hoje, tanto quanto ontem, todos necessitamos de Jesus descrucificado, do Homem incomparável que arrostou todas as consequências pela coragem de amar, a ponto de dar a própria vida, para que todos tivéssemos vida em abundância.

 

Ante a impossibilidade, portanto, de ser transformado o mundo de violência e desar da atualidade, de um para outro momento, pelo menos podemos convidar alguns corações a que se desarmem e algumas mentes a que modifiquem a forma de pensar, considerando a necessidade de iluminação interior, única a produzir a renovação de toda a sociedade para melhor.

 

Acreditando haver realizado o possivel dentro dos nossos limites, exoramos a Jesus que nos abençoe e nos conceda a sua paz.

 

Salvador, 10 de setembro de 1997

 

Amélia Rodrigues

 



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