Dias Venturosos

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CAPÍTULO 14

Inimigos morais

Odia havia sido especialmente tórrido. Embora o velário da noite descesse sobre a região, o vento arrastava nos seus braços o ar ainda morno que acariciava a natureza.

 

As atividades foram exaustivas durante as horas passadas.

 

O sermão do Mestre atraiu a multidão, como sempre ocorria.

 

Peregrinos de diferentes cidades chegaram esmagados sob o fardo das suas necessidades e aflições. Eram enfermos do corpo, da emoção e da alma. Acercaram-se do Rabi, a fim de escutá-lO e terem lenidas as suas exulcerações.

 

Sua mensagem carregada de ternura e de esperan- ça convidava essencialmente os ouvintes à transformação moral.

 

– Todas as aflições - Ele assinalara - procedem da alma, que, enferma, exterioriza as debilidades, contribuindo para a degradação orgânica.

 

Os indivíduos, no entanto, desejavam apenas aliviarse da carga, atirar fora o pesado ônus de sofrimentos que os pungia.

 

Depois de ouvirem as palavras saturadas de sabedoria, suplicaram-lhe o socorro compatível para cada mal.

 

. . . E, semelhante a uma aragem abençoada e fresca sobre a terra ardente, Ele recuperou desenganados, levantou combalidos e caídos, impulsionando-os ao prosseguimento das lutas.

 

Quais camadas sucessivas de areias que o vento açoita, as multidões se renovaram, umas após outras, sem se importarem com o cansaço, o desgaste do Mestre afável.

 

Na sua cegueira e desconcerto moral, as criaturas nunca vêem as dores dos outros, suas dificuldades e problemas, diante dos próprios desafios.

 

A ânsia de os solucionar, torna-as indiferentes aos testemunhos silenciosos e afligentes que vergastam aqueles a quem recorrem, sem a menor consideração.

 

Compassivo, no entanto, Ele atendera a todos, até o momento em que Simão O resgatou da massa informe e insaciável.

 

Quando a noite desceu e os grupos se dispersaram, surgiu o momento do repasto, o instante do repouso, dos colóquios instrutivos, porque Ele nunca cessava de instruir nem de educar.

 

Àquela hora, a lua refletia os seus raios argênteos sobre as águas quedas do mar.

 

Soprava, então, uma brisa agradável e amena.

 

Sentado com amigos sob a copa de generosa árvore que distendia galhos quase sobre as águas, desenhara-se a circunstância para o colóquio.


As lâmpadas tremeluzentes do casario que bordava a margem do mar apagavam-se, uma depois de outra, e so-

mente as vozes da natureza cantavam a melodia mágica da beleza.

 

Foi Simão quem deu início ao diálogo.

 

Houvera encontrado, naquela tarde, antigo inimigo, a quem não conseguia perdoar. Sentira-se prejudicado por suas calúnias e se propusera a revidar, conforme a Lei antiga. Guardava o ressentimento, que agora ressumava ao inesperado encontro.


Aproveitando-se da ocasião feliz, honestamente interessado em esclarecer-se, interrogou, solícito:

– Senhor! Como vencer aqueles que nos prejudicaram e ainda nos perturbam? Como suportar os adversários, que se multiplicam como erva má, que de nada necessita para medrar? "Simão - respondeu o amigo –, os verdadeiros adversários do homem não se encontram fora dele, porém em seu mundo íntimo, perseguindo e inquietando-o sem termo. Aqueles que estão fora das províncias dos seus sentimentos, podem ser deixados à margem, porque o mal deles somente atinge aquele que se lhes sintoniza com os petardos mentais e lhes aceita as ofensas".

 

Se não for valorizada a maldade que existe nos outros, ela perde o sentido de direcionamento, porquanto somente os maus se engalfinham nas pelejas inúteis e perversas, nas quais nunca há vencedor.

 

– E quais são, então, esses inimigos íntimos, os que estão dentro de nós?

 

Jesus olhou ternamente o discípulo inquieto, e redarguiu: "Há três inimigos ferozes no imo do ser humano, que respondem por todas as misérias que assolam a sociedade, dilacerando os tecidos sutis da alma. Trata-se do egoísmo, do orgulho e da ignorância.

 

O egoísmo é algoz impiedoso, que junge a sua vítima ao eito da escravidão, tornando-a infeliz.

 

Graças a ele predominam os preconceitos sociais, as dificuldades econômicas, os problemas do relacionamento humano. . . Qual uma moléstia devoradora, se instala nos sentimentos e os estrangula com a força da própria loucura.

 

O egoísmo é responsável por males incontáveis, que devastam a humanidade. O egoísta somente pensa em si, a nada nem a ninguém respeita na sanha de amealhar exclusivamente em benefício próprio, a tudo quanto ambiciona. Faz-se avaro e perverso, porque transita insensível às necessidades alheias.

 

Por sua vez, o orgulho é tóxico que cega e destrói os valores morais do indivíduo, levando-o a desconsiderar as demais criaturas que o cercam. Acreditando-se excepcional e portador de valores que pensa possuir, subestima tudo para sobressair onde se encontra, exibindo a fragilidade moral e as distonias nervosas de que se torna vítima indefesa.

 

A ignorância igualmente escraviza e torna o ser déspota, indiferente a tudo quanto não lhe dizerespeito diretamente, esquecido de que todas as pessoas são membros importantes e interdependentes do organismo social.

 

O egoísmo é o genitor abjeto dos males que espalha, como a ambição desregrada, o ressentimento, a irritação, a ira, o ódio, os sentimentos vis que denigrem a vida.


O orgulho desestrutura aquele que se deixa ensoberbecer sob a ação dos seus vapores venenosos, levando à lou-

cura da presunção e da prepotência. Na raiz de inúmeros desequilíbrios morais estão as manifestações do orgulho.

 

E a ignorância, serva da estupidez, é o ressumar da morte do conhecimento, dos sentimentos de beleza, da afetividade e da ternura, que enregela o coração e atormenta a conduta".

 

Calou-se momentaneamente, dando lugar a novas interrogações.


Pedro, estimulado pela resposta, voltou à carga, indagando:

– E como extirpá-los da alma? Haverá, por acaso, antí- dotos para esses inimigos soezes?

 

Jesus relanceou o olhar pela noite serena, dilatando-o nos amigos silenciosos e atentos, logo respondendo: "Ao egoísmo se deve sobrepor a solidariedade, que abre os braços à gentileza e ao altruísmo.

 

O coração generoso é rico de dádivas. Quanto mais as reparte, mais possui, porque se multiplicam com celeridade.

 

A solidariedade anula a solidão e amplia o círculo de auxílios mútuos, dignificando o ser que se eleva emocionalmente, engrandecendo a vida e a humanidade.

 

O orgulho cede ante a humildade, que dimensiona a pessoa com a medida exata, descobrindo-lhe o significado, a sua realidade. O indivíduo não é o que se supõe vãmente, nem o que dele se diz. Mas é, sim, o valor dos seus próprios atributos, aqueles que pode ampliar a benefício próprio e do grupo social no qual se movimenta.

 

A humildade é virtude que faculta a compreensão das ocorrências perturbadoras, projetando luz nos intrincados problemas do comportamento humano. Sem humildade o homem se rebela, porque não reconhece a fraqueza que lhe é peculiar, nem se dá conta, conscientemente, de que logo mais será desatrelado do carro orgânico, nivelando-se a todos os demais no vaso sepulcral. . .

 

À ignorância facultem-se o conhecimento e o dileto filho do sentimento maior, que é hálito do Pai vivificando tudo e todos, origem e finalidade do Universo: o amor!

 

Quando o amor se envenena com os tóxicos das paixões dissolventes, o ser humano se desorganiza e se degrada nos conflitos destrutivos.

 

Resseca-se-lhe, então, a emotividade e se lhe anula a faculdade de justificar, compreender e amar o seu próximo, porque está nas sombras da ignorância, geradora da indiferença mórbida, que torna o homem participante inútil do festival da vida.

 

Cabe a todos vigiar as nascentes do coração, de modo que os seus inimigos íntimos cedam lugar aos sentimentos nobres, travando essa batalha sem quartel no campo da consciência. Não será uma luta rápida, porém contínua, lenta, que se deve repetir sempre que seja registrada a presença da erva moral daninha.

 

Por isso, ninguém que realmente vence a outrem torna-se triunfador, ou que, se desforçando de alguém, fruirá de paz.

 

A vitória real é sempre sobre si mesmo, nas províncias da alma.

 

O perdão às ofensas, o respeito ao direito alheio, a beneficência e a bondade são os filhos diletos do amor-conhecimento que voa em luz com asas de caridade, tornando o mundo melhor e todos os seres felizes. " Silenciou.

 

Ouviram-se os arpejos suaves da melodia da noite em festa de estrelas e de luar.

 

Ele levantou-se e pôs-se a caminhar, enquanto os amigos mergulharam em profunda meditação.

 

Mateus 12:22-42

 



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