Dias Venturosos
Versão para cópiaA trama do mal
As aragens blandiciosas de paz, que permaneceram na comunidade dos Homens do Caminho, eram lentamente substituídas pelos ventos da perturbação, que penetravam através das frestas morais dos companheiros menos resistentes.
Aumentava o número de aflitos e se avolumava, cada vez mais, o trabalho para os devotados seareiros, que não eram muitos.
A onda volumosa das curas contínuas trazia multidões esfaimadas e enfermos desesperados, que aguardavam milagres, sem qualquer esforço em favor da própria transformação moral.
Quando diminuía a azáfama diurna e a noite se recamava de estrelas lucilantes, os apóstolos se reuniam para examinar a situação e tomar providências, reservando-se momentos de paz e de inspiração.
Pairavam na psicosfera ambiente as lembranças do Mestre amado e de Estêvão, apedrejado até a morte.
Alguns desertores, tentando granjear simpatias entre os fariseus, os saduceus e a massa ignorante, teciam comentários desairosos sobre o grupo de amigos do Bem.
Uns diziam-se espoliados dos haveres; outros asseveravam que foram ludibriados na boa-fé e mais outros acusavam os trabalhadores de Jesus de feitiçaria e intercâmbio nefasto com Satanás. . .
As dificuldades surgiam com frequência, embora o ânimo dos companheiros do Mestre não se abalasse. Como efeito, porém, a cooperação diminuía, enquanto aumentavam as necessidades urgentes.
As horas transcorriam rápidas e eram preenchidas pela ação contínua e estafante. Nas noturnas, dedicadas à reflexão, eles davam-se conta de que era chegado o momento do testemunho.
As alegrias, que haviam sido os estímulos para o prosseguimento do labor, estavam sombreadas pelas expectativas de sofrimentos próximos.
Num desses memoráveis encontros, sob a inspiração do mártir apedrejado, João considerou que o instante grave chegava e que o cerco do Mal se fazia mais rude, exigindo-lhes vigilância redobrada, paciência irreprochável e amor sem limite. . .
Celene velava no alto, cercada pelos pingentes estelares, enquanto suave brisa perpassava pelo grupo reunido ao abrigo de veneranda figueira.
Havia algo de especial que os fortalecia, brindandolhes resistência e entusiasmo para o grande enfrentamento.
Cessado o comentário-advertência, o silêncio se abateu sobre eles, quebrado somente pelos sons da noite, os gemidos dos enfermos e alguns gritos de obsessos que se encontravam amparados.
João, rico de juventude, exteriorizava um semblante pulcro, que gerava simpatia, infundia ternura, convidava ao amor sem mesclas de paixão.
Quando se punha a falar, nas assembleias públicas, fascinante, arrebatava. Seu rosto irradiava mirífica luz que o adornava de claridade incomum.
Não obstante as primeiras agruras experimentadas pela igreja nascente, as palestras prosseguiam sem interrupção.
Numa tarde morna, a sala se encontrava repleta e algo especial envolvia o público, que aguardava o verbo canoro do discípulo amado.
Iniciada a atividade por Simão Pedro, que lhe passou a palavra para os comentários sob a inspiração do Santo Espírito, o jovem narrou o seu encontro com Jesus na doce e inesquecível Galileia.
Referiu-se às emoções que o tomaram desde então e à sua entrega total ao amigo que o arrebatara.
Evocando cada momento, deixava-se arrastar pela onda mansa dos júbilos, assinalando cada sentença com delicada referência à felicidade de O amar.
Quando terminou, sutil aroma invadiu o recinto, sensibilizando a todos, que mais se deixaram comover.
A sua presença havia sido notada, e uma certa repulsa perturbara algumas frequentadoras de atividade espiritual.
Era conhecida em Jerusalém, na sua infeliz conduta de vendedora de perfumes e de ilusões.
Lares se haviam desfeito por sua causa, e muitos homens se degradaram para conseguir-lhe as carícias de altos estipêndios e participarem do seu leito de luxúria. Os homens também, por a conhecerem, sentiam-se indignados, ao vê-la naquele recinto.
Ali, porém, era o lar dos deserdados e o hospital dos desenganados.
Ela pareceu acompanhar os comentários do jovem evangelizador com certa dose de interesse.
Quando ele terminou, sem preâmbulos e audaciosamente, ela acercou-se e pediu ao servo do Cristo uma entrevista de urgência.
João encaminhou-a a um cômodo contíguo, deixando por momentos aqueles com os quais repartia seu afeto em cuidadosos diálogos após as palestras.
Mal se adentraram, a infeliz atirou-se-lhe aos braços e, lasciva, começou a declarar-se:
– Todos que aqui vêm, são vítimas do destino. Também eu o sou. Os outros têm doenças e fome, mas eu trago a dor do amor insaciado. . .
O apóstolo recuou, tentando desvencilhar-se dos bra- ços adereçados e do corpo enleante, mas ela insistiu, procurando retê-lo, e disse:
– Eu vos amo!
Sem titubear, o jovem fiel redarguiu com energia:
– Afasta-te, Espírito do Mal, e não penses em perturbar o discípulo de Jesus.
Tomado pela inspiração do Mestre, prosseguia irredutível:
– Deixa essa infeliz em paz, ela que te acolhe com a sua enfermidade moral. Esta é a Casa do amor, em espírito e verdade. Ela necessita de ser amada, sim, mas de outra forma; e eu, em nome de Jesus, te digo: liberta-te da loucura e liberta-a!
A pobre mulher foi tomada por peculiar tremor, e quase tombou no solo, caso João não a houvesse amparado.
Momento após, ainda ofegante, com evidentes sinais de arrependimento, narrou ao discípulo admirado e compungido:
– Sou infeliz! Perdoai-me! Venho aqui a soldo de Matatias, o fariseu do Sinédrio, para tentar-vos. Ele incumbiu-me de seduzir-vos, para ter motivo de levar-vos a julgamento e apedrejar-vos.
A sofredora chorava, cobrindo a face enrubescida com as mãos espalmadas, enquanto continuou:
– Comprou-me, o miserável, que também me explora. Perdoai-me! E agora que fracassei, para onde eu irei? Ele me matará.
– Se queres mudar de vida e entregar-te ao Senhor, esta Casa também é tua. Podes elegê-la como teu lar, numa vida nova.
A mulher, porém, ainda atônita, recompôs-se e saiu, quase a correr.
As pessoas que se encontravam no salão ouviram algo, mas não perceberam toda a ocorrência, quando a viram passar em desespero. . .
Uma semana depois de vencida a trama do Mal, nos arredores da cidade, uma mulher equivocada e infeliz foi apedrejada até a morte.
Entre os seus sicários encontrava-se o fariseu Matatias. . .
O ódio que teima em dominar as criaturas, levandoas a lutar contra o Bem, somente será diluído pelo solvente do amor, quando este dominar os corações.
FIM
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