Luz do Mundo

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CAPÍTULO 3

O REINO DIFERENTE

"Que estranho e enigmático era aquele Rabi! — pensava Tiago, atormentado, em contínuos cismares. — É verdade que O amava, todavia, por mais profundo como era aquele amor, não conseguia compreendê-Lo. A sua mensagem penetrava as almas e as Suas atitudes de retidão conseguiam impressiona-lo de forma irreversivel. Malgrado as dificuldades em que se debatia, sentia a grandeza do poema de amor que Ele cantava nas praias e com que arrebatava as multidões.

Receava, porém, que a Palavra não se demorasse por muitos anos como Ele desejava. Afinal, era necessário recorrer aos nobres e aos poderosos para granjear os favores humanos. As rédeas do poder permaneceram sempre em todos os tempos nas poucas mãos da força. E estas somente se faziam benignas em relação aos que agradavam as posições dos mandatários. O Rabi era integérrimo e bom, não obstante se recusasse sistematicamente à subserviência, evitando mesmo oferecer aos poderosos essas homenagens tão do agrado dos que desfrutam as situações de privilégio. Não poucas vezes, fora Ele acusado pelos Fariseus de não serem encontrados entre os Seus seguidores um príncipe sequer, um doutor da Lei, alguém que fosse alguma coisa... E tinham razão, forçoso era dizê-lo. E a verdade é que sempre Ele se encontrava cercado pelas multidões dos desgraçados, os mal-cheirosos...

"Indubitavelmente, — considerava, magoado no íntimo, — fazia-se mister assistir os sofredores, os enfermos, os carregados de problemas a fim de aliviá-los... Viver, todavia, exclusivamente envolvido pelos leprosos, escrofulosos, paralíticos, surdos, mudos, cegos, endemoninhados, não era atitude cor-reta... Além disso, colimando as dificuldades em quase desacato às autoridades se permitia o Mestre a convivência com as meretrizes e os bandidos, os cobradores de impostos — sempre detestados! — mantendo largas e cordiais tertúlias com eles, dividindo o pão, repartindo o peixe em repastos amigáveis e fraternos...

"Não, aquela não era uma atitude própria — arrematava o discípulo zeloso, mas invigilante.

"Na Terra somos obrigados — considerava, preocupado, — a viver segundo os padrões tradicionais. Como remover os velhos óbices, sem lhes sofrer as consequências? Que Reino seria, então, o a que Ele se referia e se propunha? Por acaso um paraíso para mendigos e desventurados?

"Não conseguia ele mesmo sopitar o desagrado ante as pústulas virulentas;

nauseava-o a visão cavernosa da lepra, nos tecidos humanos gastos... Detestava os pecadores e, nesse particular, era severo: a Lei deveria ser cumprida com toda a austeridade a que se reportava o Tora — cada erro recebendo a necessária punição. "Diria ao Mestre, sim, na primeira oportunidade, quanto aos seus pensamentos, às suas conjecturas!"

Em clara manhã perfumada, enquanto jornadeavam entre Cafarnaum e Magdala, o discípulo interessado na fácil implantação do Reino de Deus entre os homens da Terra resolveu, confabulando com o Amigo Divino, apresentar-Lhe as suas dúvidas.

— Rabi! — falou algo constrangido — Faz algum tempo, encontro-me angustiado por dolorosas interrogações.

O Celeste Companheiro fitou-o com olhos transparentes, penetrando-lhe a alma.

Ante aquele gesto carinhoso nenhum segredo permanecia oculto, quedando-se silencioso, aguardando.

— Como sabes — prosseguiu, delicado — também eu anseio pelo momento da glorificação do Nosso Pai entre os infelizes da Terra. Todavia, creio que, cuidando apenas dessa gente que nos cerca, muito difícil será conseguir colimar os objetivos a que Te reportas e que todos desejamos.


Encorajado pela atitude de cordial simpatia e discreta aceitação da censura por parte do ouvinte, prosseguiu:

— Conheço pessoas das classes mais favorecidas que se não negariam a contribuir com a sua posição, suas moedas e títulos, de modo a facilitarem a penetração dos nossos postulados entre os anciães e os mais representativos membros da nossa raça. Todavia, não se inclinariam eles a aceitar uma comunhão com estes que compartem nossos ideais: os proletários infelizes, a ralé sem nome...

O Mestre, sem traduzir qualquer surpresa ou desagrado, continuou sereno, de passo regular, caminho afora.

A Natureza àquela hora da manhã derramava ondas de leve perfume campesino pela alameda agradável que resguardava a vereda.

— Anseio ver-Te em Jerusalém entre os mais expressivos nomes do povo — aprestou-se Tiago, emocionado. — Glorificado, passarás à posteridade entre aqueles filhos de Israel que serão sempre venerados pelas gerações futuras.


E como o Senhor prosseguisse discretamente silencioso, indagou, inquieto, o discípulo agitado:

— Não dizes nada, Mestre? Eu gostaria de ouvir Tua opinião.

— Tenho falado a todos a mesma linguagem — acentuou, pausado, o Filho de Deus — linguagem de amor e compreensão. Em verdade, as minhas palavras são atos que, inconfundíveis, não podem receber interpretação incorreta, nem se ajustam às malévolas conceituações. Não venho para os sãos, os felizes, os ditosos, os que já receberam da Terra o seu galardão, as suas reservas de alegria e as suas altas concessões de triunfo, conquanto transitórios.


Refletindo no conteúdo das palavras do discípulo, aduziu, compassivo:

— Tens toda a razão em ambicionar os êxitos que passam ligeiros e podes afervorar-te à sua conquista, marchando ao lado dos que se glorificam e dominam... És livre de minha parte para avançares pela rota que desejares.

Aqueles, porém, que amam a meu Pai e me servem, fá-lo-ão ao lado dos atormentados, dos enfermos e desventurados pois que para estes eu vim. Eu sou o Médico das almas se tenho os braços abertos para todas as dores. O meu coração é fonte de reconforto para os que sofrem e o Reino a que me refiro não possui balizas na Terra, nem pode ser compreendido dentro das diretrizes do tradicional humano. Alicerça-se sobre dores extenuantes e possivelmente nos holocaustos de muitas vidas. Cimentar-se-á no sacrifício dos que amam e que nada possuindo não receiam perder o que não têm.

Silenciou, fitando a estrada que serpenteava na direção da cidade a distância.


Talvez, antecipando no tempo os acontecimentos do futuro, continuou:

— O Filho do Homem triunfará, sim, em Jerusalém, de maneira inesquecível e Seu nome passará à posteridade... Estará Ele entre os filhos da raça em posição porém mui diversa à dos antepassados. Mas isto será apenas o começo das dores reservadas aos seguidores do Reino...

O sol penetrava em fios de ouro pela copa das árvores e chilreava a passarada na ramagem oscilante.

O discípulo fez-se, então, pensativo.

— O Reino de Deus — concluiu o Mestre — está dentro de cada um que o deseje.

Não é trabalho externo, antes resultado do excelente labor anônimo e sacrificial nas noites de silêncio, nos dias de angústia e dor libertadora. Ninguém o verá, e esse herói, aquele que o conseguir realizar, não receberá aplauso, passando entre os homens desconsiderado, incompreendido, malsinado, todavia em paz consigo mesmo e em harmonia com Deus... Eis porque não posso atender às tuas sugestões. Obedeço Àquela que me enviou, pensando especialmente na "meretrizes e nos publicanos que levarão a dianteira para o Reino de Deus", em preferência a muitos dos homens que aparentemente se encontram vinculados ao meu nome.

Calou-se o Mestre.

Tiago caiu em pesada reflexão, enquanto caminhava ao Seu lado. Desde então passou a entender melhor o Reino de Deus, aquele que não tem aparências externas e que deve ser conquistado com decisão.


* * *

Ainda hoje, diante dos espíritos difíceis, dos infelizes e dos perturbados, dos perturbadores e pervertidos, a atitude de muitos cristãos novos não difere daquela que Tiago, embora bem intencionado, conquanto invigilante, mantinha antes do diálogo esclarecedor...




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