Quando Voltar a Primavera

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CAPÍTULO 10

A LIÇÃO DIFÍCIL

As inquietações se demoravam asserenadas sob o pálio estrelado da noite harmoniosa.

O código de moral sublime, inscrito nos corações, deveria permanecer indelével para os milênios porvindouros, norteando as mentes e confortando as almas aturdidas pelo perpassar das dores, através dos evos.

Sopravam as aragens brandas da Natureza em festa, respingadas pelo frio trazido do mar.

A multidão, dominada pelo magnetismo do Cristo, volvera aos lares em silêncio, penetrada de emoções — uma festa que somente culminaria no reino, após a vitória da imortalidade, passadas as sombras do corpo somático...

Tinha-se a impressão de que aquelas horas ultrapassariam os tempos e ficariam como os momentos culminantes da Terra.

Nunca dantes se dissera nada igual; jamais se ouviria algo equivalente àquele sermão do monte.

Estavam lançadas, em definitivo, as bases do Reino Eterno sobre os escombros do mundo perecível, em sua tangibilidade transitória.

As lágrimas vertidas em silêncio, no altar das meditações das almas colhidas pela sinfonia das bem-aventuranças, constituiriam, a partir dali, o adubo para as sementes de luz da Boa-nova...

Quando se preparavam o Mestre e os discípulos para retornarem aos penates, de alma túmida pela felicidade, Simão Pedro mais se acercou do Rabi e, desejando realçar a grandeza das lições sorvidas, não pôde sopitar interrogações que lhe bailavam na mente simples.

Amante da Lei, vira o esboroar dos velhos códigos de soberba e perversidade, abrindo-se-lhe aos sentimentos uma madrugada de bênçãos que o impelia à incontida ventura.

— Rabi — interrogou hesitante jamais alguém enunciou ditos, quais os que aqui foram proferidos... Nunca mais se repetirá esta tarde profunda e abençoada...


Emulado pela silenciosa aquiescência do Amigo Querido, prosseguiu:

— Todos os enunciados penetram-me a alma qual se fossem um punhal aguçado, feito em luz, que rasgasse a cortina de sombras que me envolvia o Espírito. Sempre acreditei e temi a soberania da lei e dos seus austeros códigos. Agora, em face dos dispositivos do amor, sem dúvida participo de uma revolução que modificará toda a estrutura da coletividade, do mundo... O Evangelho passará a ser a diretriz firme e doce para o futuro, conclamando o homem à responsabilidade, à abnegação, ao trabalho pelo progresso... "As bem-aventuranças hoje aqui apresentadas são a excelência da esperança, bênçãos sobre bênçãos para os humildes, os brandos, os pacíficos, os amantes, os sedentos de justiça e de verdade... " Não pôde prosseguir. Os olhos marejados de pranto irromperam em cascatas, enquanto a voz se estrangulava na garganta túrgida pela emoção superior.


Compreendendo as ânsias do discípulo amado, o Senhor falou-lhe em socorro afetuoso:

— O Evangelho prepara o mundo novo. Sob a sua influência modificar-se-ão as paisagens morais do homem, da Humanidade, sim.

Não obstante, jamais revoga as leis, adiciona-lhes o sal do amor, da misericórdia. Justiça e misericórdia, severidade e amor, eis os pilotis das edificações novas. "Até aqui a violência caracterizou o poder. No entanto, não existe maior violência do que a pacificação. Forte não é o que tripudia sobre o fraco, nem o que esmaga aquele que cede. Este ganha, talvez, mas não se realiza na peleja. A verdadeira vitória ocorre nas telas íntimas do mundo moral: superar as paixões, vencer as dificuldades e frustrações, renunciar quando poderia exigir, ceder quando desejaria pelejar pelo triunfo, amar quando tudo conspira contra esse sublime sentimento... Entendes?

— Sim, Rabi - respondeu o discípulo com doce ternura. — Compreendo e me comovo. Nada maior do que dar a vida por amor, oferecer-se em holocausto a benefício do próximo. E é nesse ponto que as minhas indagações se fazem perturbadoras. "Convidaste-nos a amar os inimigos... No entanto, como fazê-lo?

Se alguém propositadamente fala de nós, fere-nos com o verbo ácido e humilha-nos com doestos, desrespeitando o direito de dignidade moral que o Pai nos concede a todos, como proceder?

— Continuar amando e nunca revidar mau conceito por agressividade.

— E se, estimulado pelo nosso silêncio, o adversário estrugir em nossa face uma encorajada bofetada, desrespeitando os valores morais e contrariando as determinações legais que legislam contra a violência, facultando ao agredido o direito de um justo processo, como agir?

— Oferecendo-lhe a outra face. Não nos é lícito responder brutalidade por brutalidade, agressão por agressão...

— Ninguém, no entanto, terá forças para uma atitude pacífica de tal monta. E se for tentado a reagir, ou se reagir dominado pela cólera?

— Ter-se-á tornado igual ao agressor ou pior do que ele, porque o discípulo do Evangelho será a Luz do mundo, o sal da terra, o pão da vida e nunca o fel, o veneno, a treva...

— Apesar dessa realidade, se o inimigo se investir de estímulos à viva força, partindo para o crime, ameaçando destruir nossa vida?

— Ainda aí, Simão, convém não esquecer que o criminoso é sempre o infeliz, nunca a vítima... Supliquemos ao Pai que nos livre do mal, todavia, não temamos os maus. Se o nosso amor não possuir a força de acalmá-los, a culpa não será deles... Aquele que conduz a claridade deve vencer a treva exterior e não se encharcar de sombras.

O coração puro e a mente calma não receiam nunca. O portador da violência combure-se nas labaredas em que ardem os sentimentos da própria agressividade...

— Apesar disso, Mestre, nessa atitude não estaríamos estimulando o crime em geral, o latrocínio em particular, em que os usurpadores não trepidam em prosseguir nos seus infelizes cometimentos? ...

— Deforma alguma. A violência somente diminui sua força má quando abafada nos tecidos da caridade... Não nos cabe fazer justiça com as próprias mãos. Na condição de agredido e malsinado, nossa defesa não tem o direito de produzir vítimas... Seria a manutenção da criminalidade se, a pretexto de salvarmos a vida, destruíssemos a do adversário... Afinal, se revidássemos com as mesmas armas, em que diferiríamos deles, os maus, embora nos justificasse o errôneo proceder, utilizando a escusa de que agredimos para conseguir a manutenção da própria vida... "Bem sei que isto não é fácil. O atavismo que procede da fera, que tem sobrevivido a milênios na jornada ascendente do animal para o homem, não será vencido de um só golpe, no trânsito do homem para o anjo... Todavia, se o aprendiz do Evangelho não se exercitar nas lições de fraternidade e renovação, jamais alcançará a plenitude do amor. Por isso, insisto. Se somente amamos os que nos amam, em que seremos melhores do que os fariseus e os publicanos?

Imprescindível amar e amar os inimigos, até que aqueles se sintam aturdidos pela nossa afeição... " O Mestre silenciou.

Simão Pedro compreendeu a gravidade do ensinamento, e, mentalmente, atirou-se na direção do futuro.

Percebeu as lutas porvindouras, começando a conscientizar-se das renúncias e sacrifícios que o Evangelho exigia...

À noite, ao alto, em estrelas de prata, cantava uma grandiosa melodia de luz no zimbório, aguardando o futuro.

O Cantor desceu às labutas, a fim de selar com o exemplo a sublime mensagem de amor aos atormentados e atormentadores do mundo...




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