Quando Voltar a Primavera

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CAPÍTULO 17

SlMÃO, O CIRENEU

Nenhuma voz que se erguesse para defendê-lO.

Pessoa alguma que se resolvesse falar a Seu favor. Todos os verbos estavam calados, e o silêncio era a resposta da frágil gratidão humana Àquele que não titubeava em entregar-se num holocausto de amor.

Tudo se realizava como se fosse uma patética entoando as tristes notas de uma mensagem fúnebre.

O medo aparvalhava os amigos, e a palidez da cobardia moral cobria os rostos dos beneficiados, a distância, com a mortalha da injustificação.

Não obstante as arbitrariedades da Lei, Israel mantinha no seu Estatuto que qualquer pessoa podia levantar a voz a favor de um condenado. Isso bastaria para revisar o processo, concedendo outra oportunidade ao réu, embora já estivesse julgado...

Com Ele a ocorrência se fazia diferente.

Cinco dias apenas eram transcorridos do sucesso que obtivera na cidade regurgitante que O exaltara, dizendo-O o Messias, o Esperado!

Naquela ocasião, todos comentavam publicamente os Seus feitos, enquanto ofereciam tóxico para que os ódios fermentassem, culminando na tragédia que ora se consumava.

Curtos são os sentimentos da gratidão humana, e breve o caminho dos que dizem amar...

Ele não enganara ninguém, porquanto sempre se reportava a um Reino que não era deste mundo.

Apesar disso, esparzira a ternura e a misericórdia como um Sol generoso, aquecendo o pantanal e o transformando em campo fértil.

Agora se encontrava só... A sós, com Deus, como, aliás, sempre estivera.

Tantos se haviam beneficiado, inobstante permaneciam silentes, distantes...

A estranha procissão percorreu distância inferior a quinhentos metros, atravessou a porta Judiciária, e a silhueta do monte sombrio se desenhou entre o fulgor do dia em plenitude e o fundo azul abrasado da Natureza...

Abril já é período de seca, de calor, de Sol intenso...

A terra se torna de cor ocre, morrem as anêmonas e os tons de chumbo substituem o verdor que embeleza.

Àquela hora, mais ou menos às onze, a atmosfera carregada alcançava índices de cansaço que desagradavam, abafados...

De semblantes sinistros, com varapaus, os membros da peregrinação torturam o Justo, agridem-nO com acrimônia, mordacidade e zombaria.

Sempre se fará assim com aqueles que se elevam acima da craveira da banalidade, com os que se erguem nas grimpas dos ideais de enobrecimento da Humanidade.

Ele viera para isto, para ensinar a cada homem a carregar sua cruz conforme o fazia, sem queixas nem murmurações.

Cirenaica, o antigo reino, fora colonizada pelos gregos, que fundaram Cirene. Posteriormente, sob a dinastia que tivera origem com Bato, de Tera, progrediu, nascendo outras cidades. Depois da desencarnação de Alexandre, o Grande, caiu em mãos dos Ptolomeus que passaram a chamá-la de Pentápolis, em razão das cinco cidades que a formavam: Arsinoe, Berenice, Ptolomaide, Apolônia e Cirene.

No ano 67 a.C., passou à Província romana. São de Cirene: Arístipo, Calímaco, Eratóstenes...

Cirene, sua capital, passaria à narração evangélica graças a Simão, ali nascido, judeu de família grega que se encontrava acompanhando a sinistra procissão pelas vias estreitas de Jerusalém, naquele dia.

Aquele homem de olhar triste fascinou-o.

A pesada cruz, com quase setenta quilos, a dilacerar os ombros e as mãos do condenado, que cambaleia, comove-o.

A noite de vigília demorada, as viagens entre Anás e Caifás, o Pretório, exauriram o Filho de Deus.

O centurião fustigava o preso, a fim de que não desfalecesse. A penalidade deveria ser cumprida.

Enfurecido, experimenta o soldado um misto de piedade e dever, ferido pelo amor do prisioneiro pacífico e escravo, serviçal pela paixão a César. No tormento que o vence, deseja diminuir a carga que ameaça esmagá-lO. Perpassa olhar injetado pelas filas de mudos espectadores e chama o homem de Cirene.

O convocado não reage. Parece até que se rejubila interiormente.

Submisso, curva-se, oferece o ombro e auxilia o estranho.

A cruz se ergue mais leve. Jesus dirige-lhe um olhar de profundo amor.

Lampeja um lucilar de ternura e de gratidão que penetra o benfeitor inesperado e fá-lo tremer de emoção desconhecida...

Pai de dois jovens, Rufo e Alexandre, pensa nos filhos e apiada-se dos pais do condenado, umedecendo os olhos.

Estranha voz balbucia no seu coração uma cantilena de esperança... Tem a impressão de que o Homem lhe devassa o pensamento e responde às inquirições que lhe brotam na alma, espontâneas.

As lágrimas se misturam ao suor que molha o rosto queimado, coberto de pó. Viera do campo, sendo surpreendido pela alucinação da intolerância e do ódio.

Claro que ouvira falar de Jesus. Conhecia-O, admirava-O a distância. Agora, porém, O amava.

O amor é um sentimento veloz. Toma do coração e reina absoluto. "Dar-lhe-ia a vida se fosse necessário" — pensou.

Nesse momento, a comitiva torva chegava ao topo do monte.

O crime deveria ser consumado antes do cair do dia, quando se iniciava o sábado, reservado ao repouso, ao esconder-se o Sol...

Viu-O ser preso ao madeiro.

A patética do martelo nos pregos repercutida nos seus ouvidos por muito tempo...

O som metálico e as contrações musculares do Submisso dilaceraram-no, também. Os semblantes suarentos dos crucificadores e os olhares de lince, a agonia e o sangue a fluir abundante, eram a moldura vergonhosa que contrastava com a nobre serenidade d’Ele.

Quando as cordas O arrastaram nas traves, Ele oscilou no ar. O corpo arriou, rasgado. A linha vertical tombou no fundo da grota calcada por pedras que a impediam de cair. Culminava a injustiça criminosa dos homens que se arrastariam por milênios futuros, tentando repará-la.

Permitiu-se ficar a contemplá-lO...

Percebeu as mulheres que choravam e participou, intimamente, daquela dor honesta e corajosa.

Era, sim, o estoicismo feminino que se Lhe fazia solidário, quando todos O abandonaram...

Quedou-se, ali, petrificado, a meditar até o Seu último hausto.

Jamais O esqueceria.

Volveu ao lar e penetrou-se do Espírito de Jesus.

Buscou mais tarde os Seus discípulos, ouviu-lhes as narrativas tardias e luminosas, passando a segui-los e fazendo que seus filhos se convertessem àquele incomparável amor...


* * *

Simão, o cireneu, é o testemunho da solidariedade que o mundo nos solicita até hoje.

Símbolo e ação de bondade, imortaliza-se e liberta-se da timidez, da escravidão a que se jugula, crescendo no rumo do Infinito.

Quinhentos metros eram a distância a percorrer entre o local do julgamento arbitrário e o acume do monte da Caveira...

Em curta distância, a impiedade e a zombaria são grandes.

Também o testemunho da solidariedade fraternal fez-se enorme.

Todos encontraremos pelo caminho da aflição os cireneus em nome e honra de Jesus. A nosso turno, devemos tornar-nos novos homens de Cirene e ajudar os que passam sobrecarregados, aguardando, esperando socorro.




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