Quando Voltar a Primavera

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CAPÍTULO 22

A FORTUNA DE TAMAR

Era jovem e, não obstante requestada pela ilusão da carne, vivendo intermináveis horas de prazer, sentia-se em soledade, padecendo angústias sem nome. Da casa onde vendia luxúria e despertava paixões, podia ver além da porta Formosa, a estrada serpenteante que desaparecia entre os crestados cerros, fora da cidade, na direção de Jopa.

Meditando, não poucas vezes, perdia-se em interrogações sem respostas que mais a maceravam.

Sonhara sempre com a felicidade e despertava no desespero;

acalentara um lar e vivia numa casa; ambicionara o amor e recolhera o vazio do coração...

Aqueles pareciam-lhe dias intrigantes: misturavam-se nas informações que lhe chegavam, incertas opiniões sobre a figura de um Messias que padecera o flagício da Cruz sem conseguir restaurar a liberdade de Israel e de continuadores Seus que se multiplicavam assustadoramente. De boca em boca, os comentários desencontrados afligiam e perturbavam. Falavam em morte e ressurreição, derrota e vitória...

Sem saber como explicar-se, as notícias que lhe alcançavam o Espírito, em torno daquele estranho martirizado, pareciam um unguento balsâmico depositado em feridas do seu sentimento atormentado.

Colhera impressões de transeuntes que a Ele se referiam, impressionados, de servos comovidos e através das companheiras de ilusão se inteirara que remanesciam d’Ele companheiros que ergueram um abrigo de socorro aos desventurados e infelizes, além dos muros, no caminho distante, onde sempre havia misericórdia e compaixão...

Todas as vozes referiam-se à solidariedade ali existente, naqueles ásperos dias.

Ali, na casa em que eles se reuniam, embora as diferenças naturais, todos eram iguais.

Crianças órfãs, desvalidos e enfermos enxameavam sob os telheiros acolhedores, enquanto mãos estranhas, esparzindo caridade, irmanavam-nos em salutar convivência.

Anelava por ir ter com eles. Tinha tormentosa sede de Deus. Não desejava receber objurgatórias nem repreensões. Sofria a carência de entendimento fraterno, precisava ofertar-se uma oportunidade.

Sem maiores inquietações, naquele mês de Nisan, quando a relva verdejante se bordara de azuis miosótis e o lacre de algumas rosas tingia as pedras nos acumes distantes, foi visitar Simão, o Apóstolo do Caminho.

A casa regurgitava...

A face do velho pescador, sulcada por profunda amargura e crestada pelo Sol tórrido do mar, contrastava com dois olhos brilhantes de criança confiante, enquanto a cabeleira quase em neve emoldurava-o, dando-lhe singular dignidade, rara autoridade.

Misturou-se aos ouvintes do entardecer que repletavam o auditório singelo e escutou-o fascinada.

Pairavam no ar dúlcidas emoções, enquanto estranho magnetismo penetrava os Espíritos, atingindo-a profundamente.

A conversação edificante do venerando discípulo de Jesus era feita de reminiscências carinhosas. A palavra escorria-lhe dos lábios como o licor adocicado do cabaz de uvas maduras.

A musicalidade da palavra encorajava os atoleimados e facultava aos desnorteados a diretriz da oportunidade renovadora.

—Jesus não ergueu a voz — enunciava o palestrante — para verberar o infeliz, antes, porém, para exprobrar a infelicidade e tinha os braços abertos para todos os que estivessem dispostos à redenção.

Sua Mensagem constituía uma bússola e um medicamento, uma esperança e uma certeza... Quantos a escutavam jamais a esqueciam. Quais pirilampos estelares, embora houvesse nuvens borrascosas, Suas palavras continuavam fulgurando nos céus da mente.

Negado, não reclamou, traído, não reagiu e crucificado não se rebelou. Amou indistintamente e, em particular, os opositores e adversários — Ele que era o Amor não amado como a predicar sem palavras que a felicidade consiste em ajudar e sofrer, conquanto liberte os desavisados e comprometidos com o erro das terríveis peias da alucinação e da desdita... "Cercou-se de mendigos, mulheres inditosas, salteadores, mas não construiu um reino de párias e de vagabundos... Ao inverso, elaborou com as suas almas uma experiência de felicidade que inaugurava o Reino de Deus em cada coração. " Ela o ouvia deslumbrada.

Sim, pensava, aquele era o reino de vitórias a que aspirava...

Buscara-o por torpes meios, por ínvios caminhos, debatendo-se em vão.


Terminada a oração, à medida que as pessoas falavam ao ancião iluminado, Tamar, a jovem inquieta, aguardou que as cinzas do crepe da noite amortecessem a claridade do poente e, quando a sala estava imersa em silêncio que a envolvia e ao pregador, acercou-se e falou dominada pelas lágrimas:

— Tenho necessidade de Deus e sou impura. Sonho com o amor e estou corrompida... Na minha indigência de pecadora, escutei o chamado para a liberdade, mas sou escrava... Ai de mim que sou desditosa meretriz e nada posso fazer, nada sou!...

— Jesus, porém, minha filha - respondeu Simão, delicado —, é a porta da redenção e a via libertadora...

— Desejo a luz e bracejo em trevas, ambiciono a honra e sou toda podridão. Que hei de fazer, amigo dos desditosos?

— Todos começamos da treva para a luz, do tormento para a paz, do arrependimento do erro para a realização do bem... Não há alternativa, senão começar hoje e agora, trocando Mamon por Deus, o bezerro de ouro pelo cordeiro da mansuetude, a concupiscência pela pureza lirial... Não confraternizam a mentira e a verdade, a doença com a saúde... Necessário definir-se, escolher, enquanto há tempo...


Ela fitou o ancião que parecia aureolado de estranha luz e, saindo da hesitação que a vencia, revolveu a destra nervosa no tecido custoso da burra dourada e, tomando as moedas que tilintavam, colocou-as nas mãos do pescador, esclarecendo:

— E a minha riqueza, o fruto do prazer da véspera... Todas as moedas de ontem aí estão... Rogo-lhe que as transforme em pães e socorro... Deve haver aí — olhou em derredor para a intimidade da casa agora envolta em sombras — filhos de mulheres como eu, que não conhecem as mães desvairadas que não souberam ser mães...

— Guarde-as, minha filha... — retrucou o apóstolo sereno.

— Não as quer, em razão da sua origem? Talvez sejam as mais valiosas, porque estão manchadas pelo suor e pelo sangue da minha aflição, que desejo transformar em senda renovadora, primeiro passo para o reencontro comigo mesma. Guarde-as, por favor, e apiade-se de mim.

Com o peito opresso, a garganta entumecida, Tamar foi penetrada pela suave expressão do fiel servidor do Cristo, igualmente emocionado, e saiu, banhando-se pela luz das estrelas faiscantes na escumilha do Infinito...

A partir de então, entre as mãos que se movimentavam para socorrer na Casa do Caminho, em nome de Jesus, estavam as outrora cuidadas mãos de Tamar, a antiga meretriz que encontrou o Reino de Deus e deu-se integralmente a Ele, transformando a fortuna da ilusão em riqueza de paz.




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