Quando Voltar a Primavera

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CAPÍTULO 4

AFLITOS E CONSOLADOS

Mathias ben Mordeckai resmungava padecimentos mal contidos...

A face crestada carregava as marcas iniludíveis da miséria moral, decorrência inevitável daquela outra miséria, a econômica.

Vira-se atirado ao desespero qual frágil pluma açoitada pelo vendaval. Nenhum amparo, nenhuma possibilidade de paz. O abismo da ruína era o dédalo em que rebolcava, como vítima de muitos que se lhe tornaram algozes, vítima de si mesmo, que se convertera em impiedoso sicário.

Lutara por sucumbir, no entanto, morto pela falta de júbilos, a vida negava-se abandonar-lhe o catre orgânico, desgastado e vencido, vegetando no chavascal, entre os milhares de vagabundos, os Am-Ha-Aretz e a ralé odiada, fermentadora da massa das paixões...

Ruminava evocações.

Aquela tarde, porém, auspiciosa, fizera-o diferente. Zéfiro levemente perfumado carregava afagos de ternura e poesia.

O Sol longínquo dourava o cabeço do Hermon e algumas "rosas de sharon" espocavam o vermelho nos fundos das grotas entre as pedras escuras, donde se esgueiravam vetustas árvores desgalhadas, acolhedoras...

Parecia-lhe escutar ignota melodia no ar. Não saberia distinguir se um som onomatopaico, se um gorjeio de anjo, se uma balada de flauta ou se a canção de uma citara tangida pelos dedos veludosos do amor.

O túmido peito pela emotividade despedaçou os cristais retentores das lágrimas represadas e descobriu-se vertendo copioso pranto. Tremiam-lhe as mãos geladas e todo o corpo frágil, como a cana de um bambu que, carcomido pela idade, se fazia um arco de sofrimento.

Ergueu a cabeça a fim de quebrar a magia do instante e cravou os olhos nublados na figura diáfana e majestosa do Rabi...

Ei-lO mui próximo, todavia, tão longe! Desejou gritar a felicidade da angústia ou a angústia da felicidade inesperada, porém a voz estava estrangulada na garganta hirta.

Buscou reflexionar. Não pôde fazê-lo.

Foram as evocações que retornaram insistentes; os dias felizes em Acra, na herdade dos ascendentes; a família enriquecida pelos bens aquinhoados; a bajulação e o destaque fruídos...

Depois afluíram-lhe à mente as surpresas: intrigas e dificuldades, a expropriação hedionda e a ruína. O Sinédrio foi erguido contra ele, em simulacro de justiça, e, através de móveis e leis deploráveis, viu-se arrastado com a família à necessidade...

Amigos e parentes cerraram-lhe as portas.

As conjunturas políticas amargas conduziram-no ao caos.

A esposa, de vergonha e dor, sucumbiu à morte; os filhos, crescidos e educados, abandonaram-no sem qualquer explicação.

Ficaram com ele a dor, a ofensa, o descrédito e a mágoa — a aflição!

Tudo repentinamente.

Os poderosos desfrutavam o gáudio - ele também provara a taça embriagadora do sucesso e agora sorvia o ácido e o fel da crua aflição, igual, pior do que os infelizes, porquanto não estava acostumado à presença do desconforto.

Reunira-se aos magotes dos párias. Aqueles eram os dias dos párias que abundavam - homens probos que foram reduzidos à desdita, vitimados pelas ambições alheias - ralé adensada por outra escória moral: os revoltados! ...

Viera àquela região porque amava o campo, a terra virgem, o grão promissor, a seara referta...

Agora, a música no ar transformou-se em sinfonia e as palavras que lhe chegavam já não constituíam uma cantilena comum.

Cintilam os primeiros astros ao longe - lanternas estelares que espiam a Terra antes que a noite tudo envolva e, quando esta triunfe, estarão apontando rumos e rotas...

Em todo aquele período não encontrara a pérola de uma palavra nem uma réstia de luz por compaixão.

A morfeia isola e desgraça, mas a fraternidade no "Vale dos 1mundos" ajuda uns aos outros - refletiu. No entanto, no vale dos homens aflitos — os padecentes da lepra econômica, social e moral —, a rapina devora esperanças, e o despeito mina possibilidades, arrasando quaisquer ilusões...

Estava cansado de viver.

Seguira os grupos e alcançara a montanha, impulsionado pela ansiedade, empurrado por intangíveis mãos e se acomodara.

Com a mente perturbada, fez-se esquivo. Selara os lábios desde os dias da hediondez, temendo, odiando os seres iguais, todos os homens... E sofria as aflições disso tudo decorrentes.

Aquele homem, sofrido Rabi, fascinava-o. Nele havia inconfundível grandeza e parecia comum, entranhada força e ressumava fragilidade, desconhecido poder, e Sua voz era um canto.

Penetrava-lhe o corpo, balsamizava-lhe a alma. Supunha tê-lo dentro e fora; não saberia explicar.

Por que não O conhecera antes, nos dias venturosos? -, interrogou-se. - Tê-lO-ia amado...

Não distinguia todas as Suas palavras que a brisa dispersava.


Aguçou, porém, as ouças e escutou, deslumbrado:

— Bem-aventurados os aflitos, pois que serão consolados...

Os dois olhares se encontraram: a fagulha dos seus olhos e o Sol dos olhos d’Ele, e incendiou-se o coração...

Tudo em volta desapareceu numa visão de luz, de beleza, de aspirações que se renovavam, e Mathias ben Mordeckai se resolveu avançar, crescer, qual se fora um dardo disparado na direção do infinito que alcançaria. Perdeu-se no tempo, confundiu-se no espaço...

Quando a escumilha da noite fulgurou estrelada e o silêncio se abateu num poema de luar sobre a montanha, o aflito deu-se conta.

Desceu cantando a poesia do Reino de Deus que já abundava no país da sua vida e adentrou-se pelas portas do futuro, consolado. 5 AUSÊNCIA/PRESENÇA Ao iniciar-se o ministério, Ele abandonou transitoriamente a convivência dos amigos e fez-se ausente por quarenta dias, durante os quais foi comungar com Deus em extenuante jejum para suportar conviver com os homens... Depois da Crucificação, ressurreto, por quarenta dias Ele se demorou entre os companheiros, oferecendo Sua presença amorosa a fim de que confiassem no ministério abraçado.

A ausência O faz ressurgir em fulgurante presença. A presença de Jesus permanece na Terra, não obstante a onda avassaladora do materialismo e do utilitarismo humano, penetrando os corações e fortalecendo aqueles que se Lhe vinculam, tornando os pigmeus, gigantes, e os escravos, homens livres interiormente.

Não apenas os santos e os místicos registraram-Lhe a presença nos momentos de êxtase e grandiloquência. Também os construtores das novas nações, os cientistas e os tecnólogos ao penetrarem a intimidade das formas e descobrirem os intrincados mecanismos da máquina humana que lhes constituem fontes inexauríveis de estudo e observação.

O artista e o esteta sentem-nO e deslumbram-se, magnetizados pela Sua força transcendente, renovadora.

De Francisco de Assis a Teresa D´Ávila, a Albert Schweitzer, cada um a seu turno sentiu a magia da Sua presença, produzindo uma grandiosa força que os vitalizou e impeliu a realizar a transformação de si mesmos, dos homens e da época em que viveram...

Pascal, Lineu, Bergson, Goethe, Einstein experimentaram o hálito vivificador da Sua presença fascinante, deixando-se vencer momentaneamente para volverem ao campo de ação, tocados pelos objetivos nobres que erguem a vida...

Sempre Jesus!

Os que O detestam não conseguem fugir à Sua presença, onde quer que se refugiem.

Sentem-se perseguidos pelo Seu brando olhar e pela doçura da Sua voz, impregnados pelos conceitos que Ele emitiu e dos quais não se conseguem libertar...

Eram aqueles os dias de dor, de luto, de saudade. Uma saudade penetrante, como uma adaga cravada na alma, fazia-os recordar o Amigo que há pouco se deixara guindar numa Cruz, para ressurgir...

As vagas notícias sobre as perseguições imediatas atemorizavam o grupo.

Naquele dia, porém, chegaram as alvíssaras, a Boa-nova! Ele houvera desaparecido do sepulcro antes selado, que agora se encontrava vazio...

Uma ex-vendedora de ilusões fora a mensageira da notícia.

Todavia, sua narração deixava esperanças e suspeitas...

Eles saíram de Jerusalém à hora sexta, sufocados pela ardência do calor.

A terra árida, calcinada, adusta, se apresentava triste e erma sob um céu escaldante, carregado de nuvens sombrias.

Caminhavam mergulhados em reflexões. Eram dois amigos e, no entanto, seguiam a sós. Retornavam ao seio dos familiares, após as emoções desencontradas dos últimos dias. Aos júbilos da entrada em Jerusalém, sucederam as sombras inditosas do Calvário...


Dialogavam de tempos a tempos. No entusiasmo dos diálogos que ora se faziam mais ardentes, quando se reencontraram no caminho das recordações, ouviram a interferência de um estranho que os interroga:

— De que falais, um com o outro? (Marcos 16:12 Lucas 24:13-35) Pararam tristes.


Cléofas, interrogou:

— Oh! Porventura ignorais o que se passou em Jerusalém, nestes dias? Sereis o único? Sois estrangeiro?

E explicaram sucintamente os acontecimentos trágicos.

O homem que deles se acerca, inquire-os, interessa-se, ouve a fala...

— Oh! Néscios e tardos de coração para crerdes em tudo o que os profetas disseram!

Narra-lhes, então, as Escrituras com ardor, evoca os textos antigos, os profetas, emociona-se, emociona-os e os deslumbra.

Anotou Lucas, que os viandantes não conseguiam identificar o estranho por "terem os olhos fechados".

Inobstante sentem-se aquinhoados com as estrelas da sabedoria que borda os lábios do gentil companheiro.

Cai a tarde...

Emaús dista de Jerusalém 60 estádios. Asseveram alguns estudiosos da exegética e da historiografia do Evangelho que a distância seria de quase 160 estádios, quase 30 quilômetros.

Não importa, isto é secundário.

O essencial é que a cidade de Amouas ou Nicópolis, situada na Lidda, no vale de Séphala, fizera-se famosa desde os dias de Judas Macabeu, que ali batera os gregos em lutas cruentas. No entanto, era uma aldeia, um pequeno burgo de "fontes frescas" cantantes, onde hoje se encontram sicômoros, jardins, alcaparreiras em flor.

Seria registada no Evangelho como a cidade da diáfana Presença.

Haviam chegado, quando sentiram que o estranho parecia prosseguir o caminho.


Cléofas diz-lhe, emocionado:

— A tarde caiu, as sombras descem, fica conosco Senhor, o dia já declinou!

Na melodia da voz, uma entonação de carinho e gratidão a quem os consolara. Este aquiesce, adentra-se pela casa acolhedora, parte o pão, abençoa-o antes e o distribui aos amigos aturdidos...

Dão-se conta. Despertam. Sorriem e choram...

Era Jesus.

Como não O identificaram?!

O júbilo explode inesperado e os braços se abrem para afagá-lO.

Ele, porém, dilui-se, enevoa-se e desaparece...

O estupor os domina, as mãos suam e tremem, álgidas...

Não podem sopitar as alegrias e, ato contínuo, retornam a fim de anunciarem o Encontro.

Fazem-no com emoção surpreendente, em regozijo insuperável.

Ficarão nas histórias da História o fato e o feito.

Antes o Senhor os chamara néscios, por fim os abençoara.

Nunca vos deixarei a sós! —, dissera anteriormente.

Testificando a excelência da promessa, ainda hoje, nas torpes e adustas estradas da vida, pelos ínvios caminhos da guerra humana, no cotidiano das lutas da evolução, a presença de Jesus é a segurança e a força de todos quantos n’Ele confiam.

Mesmo quando o fragor das tempestades parece tudo aniquilar, Ele irrompe de dentro do coração e balsamiza com confiança, oferecendo a resistência e o equilíbrio necessários para a vitória.

Ninguém que esteja a sós.

Nunca em abandono.

Aquele que se sente desprezado, certamente O abandonou, deixando de registrar-Lhe as vibrações.

Envileceu a alma, desconectou os registros psíquicos, estiolou-se intimamente, fugiu...

No entanto, em qualquer momento em que faça quietação e prece, ei-lO que surge, triunfal e amigo, permeando a alma e irrigando-a de entusiasmo para superar as vicissitudes.

A Emaús simbólica se desdobra diante dos nossos olhos, os diálogos pessimistas se repetem, a via se alonga; numa curva, porém, do caminho, Ele aparece e dirige a palestra, segurando a coragem e conduzindo para frente...


* * *

Onde estejas, como te encontres, da forma que quiseres, tenta sentir-Lhe a presença e nunca te ausentes d’Ele.

Quarenta dias esteve ausente em jejum, preparando-se.

Quarenta dias de presença sustentando a Era da liberdade total e da glorificação perene.




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Lucas 24:29

E eles o constrangeram, dizendo: Fica conosco, porque já é tarde, e já declinou o dia. E entrou para ficar com eles.

lc 24:29
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