Os mensageiros

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Capítulo XVII

O romance de Alfredo


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Depois de alguns minutos, utilizados por nós no serviço da higiene reconfortadora, Alfredo convidou-nos à mesa, onde Ismália, com extrema fidalguia, mandou servir frutos diversos.

Os senhores do castelo não podiam ser mais gentis.

Servidores iam e vinham, com grande júbilo a lhes transparecer do rosto.

A palestra de Alfredo e as observações de Ismália estavam cheias de notas interessantes e educativas.

— E qual a sua impressão dos serviços em geral? — Perguntou Aniceto, atencioso, dirigindo-se ao dono da casa.

— Excelente, quanto às oportunidades de realização que nos oferecem, — respondeu Alfredo em tom significativo; — entretanto, não tenho o mesmo parecer quanto à situação em curso. As zonas a que servimos estão repletas de novidades dolorosas. O presente período humano é de conflitos devastadores e as vibrações contraditórias que nos atingem são de molde a enfraquecer qualquer ânimo menos decidido. Desencarnados e encarnados empenham-se em batalhas destruidoras. É uma lástima.

— Multiplica-se o número de necessitados que recorrem ao Posto? — Continuou indagando nosso orientador.

— Enormemente. Nossa produção de alimentos e remédios tem sido integralmente absorvida pelos famintos e doentes. Tenho quinhentos cooperadores, mas nos sentimos presentemente incapazes de atender a todas as obrigações. As massas de sofredores são incontáveis. Noutro tempo, nossa paisagem se mantinha sem sombras, durante muitas semanas, mas agora…


Nesse instante, Ismália pediu licença para dirigir-se ao interior. E como Alfredo fixasse os olhos nos meus, aventurei-me a considerar:

— Ainda bem que tendes uma abnegada companheira ao vosso lado.

Ele e Aniceto sorriram, quase a um só tempo, falando-nos o administrador:

— Ah! Meus amigos, por enquanto, não tenho essa felicidade em caráter definitivo. Minha esposa e eu temos o divino compromisso da união eterna, mas ainda não lhe mereço a presença contínua. Ela é a bondade celeste, e eu, a realidade humana.

Depois de pequena pausa, prosseguiu com gentileza:

— Aniceto conhece-nos a história. Vocês, porém, a ignoram. Sentir-me-ei, portanto, contente, em relatar algumas lembranças, com benefício duplo. Aliviarei o coração, uma vez mais, contando minhas faltas, e vocês dois, que talvez tenham em breve novos serviços na Terra, aproveitarão, por certo, alguma coisa das minhas experiências.

Ismália e eu guardávamos um escrínio de felicidade no mundo; no entanto, os salteadores perversos espreitavam-nos a ventura. Minha responsabilidade era enorme no campo dos negócios materiais, e, longe de compreender as obrigações sublimes de esposo e pai, não procurava atender aos deveres justos para com o lar e os dois filhinhos que Deus me enviara ao círculo doméstico. Ismália, porém, era a providência de nossa casa. Esqueci-me, contudo, de que a virtude, a qualquer tempo, será atormentada pelo vício e minha nobre companheira foi vítima da maldade de um amigo desleal, com quem tinha eu inúmeros interesses em comum, no campo monetário. Minha esposa sofreu, em silêncio, a perseguição dele por alguns anos consecutivos. E quando meu desventurado sócio verificou a inutilidade da atitude criminosa, em franco desespero buscou envenenar-me o espírito desprevenido. Começou por advertir-me, quanto ao procedimento dela. Atordoou-me, envolvendo-a em acusações descabidas. Subornou criados domésticos e colocou espiões que seguissem minha querida Ismália, nas tarefas de esposa e mãe. Esse homem exercia profunda influência sobre mim, e, atendendo aos laços que nos uniam, minha companheira jamais se sentiu com bastante coragem para denunciá-lo. Enquanto dava ouvidos à calúnia, fora de meu círculo doméstico, tornara-me intolerável dentro dele. Não sabia contemplar minha esposa com a despreocupação e a confiança absoluta de outra época. Via o mal nos seus mínimos gestos e queria descobrir segundas intenções nas suas frases mais inocentes. Cheguei a acusá-la, veladamente. Ismália chorou e calou-se. Por fim, nosso infeliz perseguidor subornou um homem de baixa condição que permaneceu, certa noite, ao lado de nossos aposentos particulares como vulgar ladrão, às ocultas, sendo eu convocado à prova máxima. Penetrei no quarto em extremo desespero e acusei em voz alta ao ver a companheira profundamente tranquila. Ismália levantou-se, receosa da minha saúde mental, mas não lhe atendi os rogos, procurando, como louco, o conspurcador da minha honra… Abri violentamente grande armário antigo, vasculhando o quarto. Nesse instante, o vulto de um homem esgueirou-se na sombra do aposento próximo, e, antes que eu pudesse agarrá-lo no meu ódio infrene, saltou a janela, alcançando o pomar de nossa casa. Corri, desesperado, detonando balas a esmo, mas, nada consegui. Regressei ao quarto e, para cúmulo da calúnia odiosa, o desconhecido deixara, atrás de si, um chapéu novo, rigorosamente moderno, para que se acentuassem meus sentimentos terríveis. Olhos congestos, vomitando insultos, quis eliminar Ismália, banhada em lágrimas a meus pés; no entanto, alguma coisa, que nunca pude compreender na Terra, paralisou-me o braço quase homicida. Vociferando blasfêmias, surdo aos rogos dela, afastei-me do lar, tomado de horror. No dia imediato, fiz valer meu direito exclusivo sobre os filhos e providenciei para que Ismália, convertida em estátua de dor, fosse restituída à fazenda paterna. Contratei uma governanta para os meninos e, logo após, tomei um paquete para a Europa, onde me demorei mais de três anos. Nunca me propus a verificações sérias, e, embora tivesse o espírito incessantemente atormentado, humilhei os sentimentos mais íntimos, jamais procurando notícias da companheira caluniada. Certo dia, recebi uma carta lacônica na costa francesa. Um parente dava-me informações da esposa. Após dois anos angustiosos, entre a saudade e o abandono, Ismália fora colhida pela tuberculose, falecendo em terrível martirológio moral. Deliberei, então, a volta. Fixei-me novamente no Rio, eduquei os filhinhos e conservei a dolorosa viuvez no desencanto do coração. Os anos rolaram uns sobre os outros, quando fui chamado à cabeceira do ex-sócio agonizante. O infeliz, em face da morte, confessou o crime odioso, pedindo um perdão que, infelizmente, não pude conceder. Transformei-me, desde então, num louco irremediável. Cansado, envelhecido, procurei a propriedade rural dos sogros, tentando reparar, de alguma sorte a injustiça, mas a morte não me deu ensejo e voltei para a Esfera dos desencarnados, em tristes condições espirituais.

Nesse instante, fez uma pausa, para continuar comovido:

— Não preciso dizer que recebi de Ismália todo o amparo de que necessitava. Todavia, infelizmente para mim, estávamos separados. Não mereci a bênção da união sublime. Ismália segue-me de perto, mas tem residência num Plano superior, que devo esforçar-me por alcançar. Desde muito, dediquei-me aos serviços do nosso Posto de Socorro, consagrei-me aos ignorantes e sofredores, e minha santa Ismália vem até aqui, mensalmente, incentivar-me o bom ânimo e amparar-me nas lutas.

— Mas não poderia ela transferir-se definitivamente para aqui? — Indagou Vicente, tão impressionado quanto eu, com o romance comovedor.

Alfredo sorriu e falou:

— Sei que Ismália tem trabalhado para isso, que seu ideal de união eterna é idêntico ao meu, atendendo à circunstância de estar o superior sempre em posição de dar ao inferior; mas não ignoro que foi advertida por nossos maiores, sobre as minhas atuais necessidades de esforço e solidão. Preciso conhecer o preço da felicidade, para não menosprezar, de novo, as bênçãos de Deus. Minha esposa deseja descer para encontrar-se definitivamente comigo; entretanto, é necessário que eu aprenda a subir e, por este motivo, ainda não recebemos a devida permissão para o definitivo consórcio espiritual.

Observando-nos a emoção, concluiu:

— Estou resgatando crimes de precipitação. Pela impulsividade delituosa perdi minha paz, meu lar e minha devotada companheira. Conforme ouviram, não matei nem roubei a ninguém, mas envenenei-me a mim próprio. A calúnia é um monstro invisível, que ataca o homem através dos ouvidos invigilantes e dos olhos desprevenidos.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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