Os mensageiros
Versão para cópiaMente enferma
Observando e trabalhando sempre, Aniceto considerou:
— Aqui não comparecem apenas os desencarnados enfermos. Reparem os encarnados, igualmente. Entre o nosso Círculo e a assembleia dos irmãos corporificados, a percentagem de trabalhadores em relação ao número de doentes e necessitados é quase a mesma.
Designando um cavalheiro aprumado e bem posto, que se mantinha em palestra com o senhor Bentes, doutrinador naquele grupo, acrescentou:
— Vejam este amigo rodeado de sombra, em conversação com o colaborador de nossa irmã Isabel. Ouçam-lhe a palavra e, depois, ajuízem.
Com efeito, o cavalheiro indicado rodeava-se de pequenas nuvens, mormente ao longo do cérebro.
Fixando nele a atenção, eu o ouvia distintamente:
— Há muito, — asseverava com ênfase, — frequento as reuniões espiritistas, à procura de alguma coisa que me satisfaça; no entanto, — e sorriu irônico, — ou a minha infelicidade é maior que a dos outros ou estamos diante de mistificação mundial.
Atento à respeitosa atitude do orientador encarnado, prosseguia, orgulhoso:
— Tenho estudado muitíssimo, não me furtando ao crivo da razão rigorosa. Já devorei extensa literatura relativa à sobrevivência humana e, todavia, nunca obtive uma prova. O Espiritismo está cheio de teses sedutoras, mas o terreno se mostra cheio de dúvidas. A obra de Kardec, inegavelmente, representa extraordinária afirmação filosófica; entretanto, encontramos com Richet um acervo de perspectivas novas. A metapsíquica corrigiu muitos voos da imaginação, trazendo à análise pública observações mais profundas sobre os desconhecidos poderes do homem. No exame dessas verdades científicas, o mediunismo foi reduzido em suas proporções. Precisamos dum movimento de racionalização, ajustando os fenômenos a critério adequado. Todavia, meu caro Bentes, vivemos em paisagem de mistificações sutis, distantes das demonstrações exatas.
A essa altura, o interlocutor, muito calmo e seguro na fé, interveio, considerando:
— Concordo, Dr. Fidélis, em que o Espiritismo não deva fugir a toda espécie de considerações sérias; contudo, creio que a doutrina é um conjunto de verdades sublimes, que se dirigem, de preferência, ao coração humano. É impossível auscultar-lhe a grandeza divina com a nossa imperfeita faculdade de observação, ou recolher-lhe as águas puras com o vaso sujo dos nossos raciocínios viciados nos erros de muitos milênios. Ao demais, temos aprendido que a revelação de ordem divina não é trabalho mecânico em leis de menor esforço. Lembremos que a missão do Evangelho, com o Mestre, foi precedida por um esforço humano de muitos séculos. Antes de morrerem os cristãos nos circos do martírio, quantos precursores de Jesus foram sacrificados? Primeiramente, devemos construir o receptáculo; em seguida, alcançaremos a bênção. A Bíblia, sagrado livro dos cristãos, é o encontro da experiência humana, cheia de suor e lágrimas, consubstanciada no Velho Testamento, com a resposta celestial, sublime e pura, no Evangelho de Nosso Senhor.
O cavalheiro, que respondia pelo nome de Dr. Fidélis, sorria de modo vago, entre a ironia e a vaidade ofendida.
Bentes, contudo, não perdeu a oportunidade e continuou:
— Se todo serviço sério da existência humana é alguma coisa de sagrado aos nossos olhos, que dizer da expressão divina no trabalho planetário? E considerando a essência do serviço na organização do mundo, que seria de nós se um punhado de Espíritos amigos e sábios nos arrebatassem à visão ampla de orbes superiores, impelindo-nos para eles, precipitadamente, tão só pelo fato de nos dispensarem, como indivíduos, uma estima santa? Estaríamos preparados para a mudança radical? Saberemos o que venha a ser a vida num orbe superior? Teremos trabalhado bastante para entender os divinos desígnios? E a Terra? E as nossas milenárias dívidas para com o planeta que nos tem suportado as imperfeições? Como residir nos andares mais altos, sem drenar os pântanos que jazem em baixo? Estas considerações tornam-se imprescindíveis no exame de argumentação como a sua, porquanto não poderemos ajuizar, com precisão, as correntes generosas de um rio caudaloso, observando tão somente as gotas recolhidas no dedal das nossas limitações.
O pesquisador renitente acentuou a expressão irônica do rosto e revidou:
— Você fala como homem de fé, esquecendo que meu esforço se dirige à razão e à ciência. Quero referir-me às ilações inevitáveis da consulta livre, às farsas mediúnicas de todos os tempos. Você está informado de que cientistas inúmeros examinaram as fraudes dos mais célebres aparelhos do mediunismo, na Europa e na América. Ora, que esperar de uma doutrina confiada a mistificadores continentais?
Bentes respondeu, muito sereno e ponderado:
— Está enganado, meu amigo. Estaríamos laborando em erro grave, se colocássemos toda a responsabilidade doutrinária nas organizações mediúnicas. Os médiuns são simples colaboradores do trabalho de espiritualização. Cada um responderá pelo que fez das possibilidades recebidas, como também nós seremos compelidos a contas necessárias, algum dia. Não poderíamos cometer o absurdo de atribuir a concentração de todas as verdades divinas somente na cabeça de alguns homens, candidatos a novos cultos de adoração. A doutrina, Dr. Fidélis, é uma fonte sublime e pura, inacessível aos pruridos individualistas de qualquer de nós, fonte na qual cada companheiro deve beber a água da renovação própria. Quanto às fraudes mediúnicas a que se refere, é forçoso reconhecer que a pretensa infalibilidade científica tem procurado converter os mais nobres colaboradores dos desencarnados em grandes nervosos ou em simples cobaias de laboratório. Os pesquisadores, atualmente batizados como metapsiquistas, são estranhos lavradores que enxameiam no campo de serviço sem nada produzirem de fundamentalmente útil. Inclinam-se para a terra; contam os grãos de areia e os vermes invasores, determinam o grau de calor e estudam a longitude, observam as disposições climáticas e anotam as variações atmosféricas, mas, com grande surpresa para os trabalhadores sinceros, desprezam a semente.
O interlocutor deixou de sorrir e observou:
— Vamos ver, vamos ver… Espero a mensagem dos meus com os sinais iniludíveis da sobrevivência, após a morte…
Aniceto nos tocou de leve, e falou:
— Repararam como este homem traz a mente enfermiça? É um dos curiosos doentes, encarnados. Tem vasta cultura e, todavia, como traz o sentimento envenenado, tudo quanto lhe cai nos raciocínios participa da geral intoxicação. É pesquisador de superfície, como ocorre a muita gente. Tudo espera dos outros, examina seu semelhante, mas não ausculta a si mesmo. Quer a realização divina sem o esforço humano; reclama a graça, formulando a exigência; quer o trigo da verdade, sem participar da semeadura; espera a tranquilidade pela fé, sem dar-se ao trabalho das obras; estima a ciência, sem consultar a consciência; prefere a facilidade, sem filiar-se à responsabilidade, e, vivendo no torvelinho de continuadas libações, agarrado aos interesses inferiores e à satisfação dos sentidos físicos, em caráter absoluto, está aguardando mensagens espirituais…
Estávamos admirados, ante as conclusões interessantes do instrutor amigo.
Vicente, que se mantinha sob forte impressão, perguntou:
— Afinal de contas, que deseja este homem?
Aniceto sorriu e respondeu:
— Também ele teria imensas dificuldades para responder. Para nós outros 5icente, o Dr. Fidélis é um desses enfermos que ainda não se dispuseram a procurar o alívio, pelo demasiado apego à sensação.
[Os capítulos do n.° 43 ao 48, dizem respeito às observações e estudos efetuados por André Luiz em uma reunião de trabalhos espirituais na residência de Dona 1sabel.]
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