Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1859

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Capítulo LXX

Novembro - Urânia

Novembro
Abri aos meus clamores, ó véus do Santuário!
Trema o mau, brilhe o bom à luz do lampadário!
Agite-se o meu peito à santa claridade
Em cintilante flux dardejando a verdade!
E vós, ó pensadores que nas lutas coevas
Prometem-nos a luz e só nos dão as trevas,
Que em sonhos mentirosos, ilusões levianas
Embalais sem cessar as angústias humanas,
Assembleias de sábios, de orgulho a fremir,
Uma voz de mulher vos há de confundir!
Esse Deus que quereis do Universo afastar,
E que em vão pretendeis loucamente explicar,
Buscando em vãos sistemas descobrir-lhe a essência,
Malgrado vós, se revela à vossa consciência;
E aquele que se entrega a um raciocínio ledo,
Se o nega em alta voz, o proclama em segredo!
Tudo à sua vontade nasce, cresce e alterna;
Ele é a suprema base e a própria Vida Eterna;
Tudo nele repousa: o espírito e a matéria;
Que retire o seu sopro... ─ eis a morte sidérea!
Um dia disse o ateu: “Oh, Deus é uma quimera;
Filha do acaso, a vida é apenas uma espera;
O mundo, em que é lançado o ser em tenra idade,
É regido tão só pela necessidade.
Se a morte nos apaga os sentidos em chama,
O báratro do nada logo nos reclama;
A Natura imutável, em seu curso eterno,
Recolhe os nossos restos no seio materno.
Gozemos os instantes que os fados nos doem;
Nossas frontes em luz de rosas se coroem;
Só há um Deus: o prazer; em nossos desatinos
Desafiemos a fúria de incertos destinos!”
Mas logo que a consciência, a interna vingadora
Te censurar, ó louco, a culpa embriagadora,
O pobre repelido em gesto desumano,
O crime em que manchaste as tuas mãos de insano,
Será do selo escuro da matéria cega
Que no teu coração surge a luz que renega
Os teus crimes e os põe ao teu olhar ansioso,
Fazendo-te, que horror, ante ti mesmo odioso.
Então, do Soberano que a tua audácia ainda
Quer negar, sentirás a sua pujança infinda
A oprimir-te, a assediar-te, e embora teus esforços,
Em ti se revelar nos gritos do remorso!
Evitando os humanos, cheio de inquietude,
Procuras da floresta a negra solitude;
E pensas, nos selvagens dédalos que segues,
Escapar a esse Deus que sempre te persegue!
Sobre a presa em pedaços dorme o tigre em paz;
O homem vela em sangue na treva mordaz;
De olhar espavorido em fulgurante horror
Treme-lhe o corpo envolto em gélido suor;
Rumor surdo e sinistro fere-lhe os ouvidos;
Espectros ferozes cercam-no em gemidos;
E sua voz, confessando horríveis erros seus,
Exclama com terror: Graças vos dou, meu Deus!
É o remorso, o carrasco eterno da consciência,
Que nos revela em Deus nossa imortal essência;
É ele que, frequente, faz de um criminoso,
Pelo arrependimento, um mártir glorioso;
Dos brutos separando a humana criatura
Eis o remorso, a chama em que a alma se depura;
E é por seu aguilhão que o ser regenerado
Pela escala do bem se faz mais elevado.
Sim, a verdade brilha e do soberbo ateu
A audácia é repelida pelo esplendor seu.
O panteísmo vem, então, tentando expor
Do seu tolo argumento o estonteante licor.
“Oh mortais fascinados por sonho risível,
Onde ireis encontrar o Grão-Ser invisível?
Ei-lo ante o vosso olhar, o eterno Grande-Todo;
Tudo lhe forma a essência, ele resume o Todo;
Deus esplende no Sol, verdeja na folhagem,
Ruge pelo vulcão e troa na voragem,
Floresce nos jardins, murmura nos nascentes,
Suspira pela voz das aves docemente,
E tinge pelos ares diáfanos tecidos.
É ele que nos move e os órgãos entretidos
Em nós mantém; que pensa em nós, e os mais diversos
Seres são ele; enfim, eis Deus: é o Universo!”
Oh! Deus se manifesta a si mesmo contrário!
É ovelha e lobo, rola e víbora! Tão vário
Que se faz, vez a vez, pedra, planta e animal;
Sua natureza liga e funde o bem e o mal,
Percorre toda a escala, do bruto ao arcanjo!
É luz e lama, eterno, antitético arranjo!
Ele é bravo e covarde, é pequenino e ingente,
Verídico e farsante, imortal e morrente!
E ao mesmo tempo vítima e opressor, oprime;
Cultivando a virtude rola pelo crime;
Lamettrie e Platão num único epitélio,
Sócrates e Melito, Nero e Marco Aurélio,
Um servidor da glória e da ignomínia!
É a força que se afirma e que é também fulmínea!
Contra a sua própria essência afia o gume eterno,
Vota-se ao Paraíso e lança-se ao Inferno,
Invoca o nada e, para cúmulo da injúria,
Contra a sua própria obra eleva a voz em fúria!
Oh, não, mil vezes não, tal dogma monstruoso
Jamais pôde nascer num coração virtuoso.
Imerso no remorso, onde o crime se expia,
O temerário autor da doutrina doentia,
No seio do prazer sentiu-se apavorar
Pela imagem de um Deus que quisera negar;
E para o afastar, blasfemo dos blasfemos!
Uniu-o a este mundo e uniu-o a si mesmo.
Pelo menos, o ateu, premido no tumulto,
Ousando negar Deus, não lhe degrada o vulto.
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Deus, que esta raça humana busca sem cessar,
Deus, que embora ignoto temos de adorar,
É de todos os seres o princípio e o fim:
Mas, para o atingir, qual o caminho enfim?
Não será pela Ciência, efêmera miragem
Que nos fascina o olhar com sua brilhante imagem
E que, frustrando sempre um incapaz querer,
Esvai-se sob a mão que a julgava deter.
Sábios, acumulais escombros sobre escombros,
E os vossos vãos sistemas passam quais ribombos!
Esse Deus que ninguém pode ver sem morrer,
Cuja essência contém um terrível poder
Mas a seus filhos sabe ternamente amar,
Não podes compreendê-lo sem o igualar!
Ah, para unir-se a ele, reencontrá-lo um dia,
Deve a alma voar como o Amor o faria.
Atiremos ao vento o orgulho e a descrença,
Deus nos aplainará os caminhos da crença.
Seu amor infinito jamais afastou
Uma alma que sinceramente o procurou,
E que, calcando aos pés a riqueza e o prazer,
Aspira a confundir-se com o seu puro Ser.
Mas Deus, que ama o humilde, o coração piedoso,
Que expulsa do seu seio o déspota orgulhoso,
Que se oculta ao sábio e se abandona ao prudente,
Não admite partilha, como o amante inclemente.
E, para o agradar, é necessário opor
Às ilusões do mundo um firme desamor.
Felizes os seus filhos que, na solidão,
Ao Bom, ao Verdadeiro e ao Belo é que se dão.
Feliz o homem justo, absorvido inteiro
No tríplice clarão desse foco primeiro!
Em meio às aflições, no seu caudal profundo,
No círculo fechado deste pobre mundo,
Semelhante a um oásis em flor no deserto
O tesouro da fé à sua alma está aberto;
E Deus, sem se mostrar, o coração lhe invade
E dá-lhe uma alegria estranha à Humanidade.
Então o homem prudente aceita o seu destino
E da calma inviolável guarda o bem divino.
Quando a noite o envolve em seu véu constelado
Ele dorme tranquilo e absorve, embalado
Nos sonhos que inebriam o seu coração
Um antegozo celeste da suprema unção.
Tua alma que tem sede ardente da verdade
Quer mergulhar do Todo na profundidade?
Como um pintor, primeiro, cria pela mente
A obra-prima que o seu pincel torna patente,
O Eterno tudo tira da própria natura,
Mas sem se confundir com sua criatura,
Que recebendo a inteligência, luz dos céus,
É livre de falir ou de elevar-se a Deus.
Obra de sua mente e de sua palavra
Cada criação parte do seu seio... e lavra,
Num círculo traçado por leis imutáveis,
O destino escolhido, os fins realizáveis.
Como o artista, Deus pensa antes de produzir.
Como ele, o que produz poderá destruir.
Sim, fonte inesgotável de seres diversos
E dos globos semeados no imenso Universo,
Deus, força irrefreável, da sua Vida Eterna
Transmite às criações a chispa da luzerna.
O livro e a pintura pelo artista feitos,
São inertes produtos, jazem imperfeitos.
Mas o Verbo lançado pelo Onipotente
Destaca-se e se faz por si mesmo existente.
Sem cessar se transforma e jamais perecível
Do metal se projeta a espírito invisível.
O Verbo criador adormece na planta,
Sonha no animal, no homem se levanta;
Desce de grau em grau para logo subir,
Brilha na Criação, no conjunto a fulgir.
Forma nas ondas do éter a imensa cadeia
Que na pedra começa e no arcanjo se alteia.
Obedecendo às leis que regem os meios seus
Cada germe se achega ou se afasta de Deus,
Conforme se devota ao bem, ou o mal o atrai.
O ser inteligente, por si, sobe ou cai.
Ora, se o homem, na atmosfera do mal,
Se lança pelo crime ao plano do animal,
Já o homem puro em anjo se transforma, e esse anjo
Subindo grau a grau pode tornar-se arcanjo.
Elevado ao seu trono, o arcanjo, divindade,
Poderá conservar a personalidade
Ou fundir-se, afinal, na própria Onipotência
Que pode assimilar uma tão pura essência.
Assim, mais de um arcanjo, em celeste esplendor,
Com Deus se confundiu, num excesso de amor.
Mas outros, invejando a glória soberana,
Fascinados de orgulho, o pai da ira humana,
Quiseram discutir os desígnios de Deus
E mergulhar na noite dos segredos seus;
E esse Deus, que um olhar em pó os reduziria,
Apenas os queimou com sua luz que fulgia.
Depois, desfigurados, no Universo, errantes,
Sempre assaltados por remorsos devorantes,
Esses anjos perdidos por seu gesto incréu
Não ousam mais surgir no patamar do céu.
E a vergonha, aguçando os aguilhões ferais,
Atira a alma rebelde às penas infernais,
Enquanto o homem puro, as provas acabadas,
Se eleva ao Paraíso, atravessando escadas.
Todos esses diversos mundos no infinito,
Que firam teu olhar com seus raios benditos.
Que role pelo espaço a vaga universal
De mundos, como os seres, juntos em caudal.
Esses globos reunidos, focos luminosos,
São navios celestes, barcos fabulosos
Em que vagam no espaço, em planos distanciados,
As coortes de luz de Espíritos graduados.
Há mundos horrorosos e mundos felizes:
Nestes últimos reinam, soberanos juízes,
Três princípios divinos ─ honra, amor, justiça,
Cimentando a estrutura social sem cobiça.
Eternamente amados por seus habitantes
Constituem o penhor de venturas constantes.
Outros mundos, rodando em insolentes vertigens,
Seguiram o que os anjos em pecado exigem.
Esses mundos, autores da própria desgraça,
Trocaram por sua lei a lei de Deus sem jaça,
E em seu solo varrido por louca tormenta
A impura multidão dos seres se lamenta.
Nosso globo noviço, em seus passos primeiros,
Até hoje flutua entre esses dois roteiros.
Ultrajando a moral e a própria Natureza,
Quando um mundo de crime excede a sua devesa;
Quando os povos mergulham em prazeres frementes,
Fechando seus ouvidos à voz dos videntes;
Quando o Verbo divino, em seu mais leve traço,
Se apaga neste mundo enceguecido e baço;
Então do Onipotente a cólera a ferver
Cai sobre o condenado e o leva a perecer.
Arcanjos vingadores, com asas possantes
Batem a terra ímpia... e os mares ululantes
Alteando enormes ondas sobrepassam as fragas
E devastando o solo precipitam as águas;
Explode e ruge a chama dos vulcões rotundos
Dispersando no espaço os resíduos do mundo.
E o Soberano Ser, cuja vingança explode,
Quebra esse globo impuro que já crer não pode.
Nossa Terra mesquinha é uma região de prova
Em que o justo a sofrer em prantos se renova;
Purificando as lágrimas seu coração
Preparam-lhe o caminho de melhor mansão.
Não é portanto em vão que o sono anestesiante
Nos leva num transporte ao sonho inebriante,
E num rápido impulso somos conduzidos
A um radiante astro novo em luz entretecido,
Onde cremos errar em vastas pradarias
Percorridas por seres de sabedoria;
E vemos esse globo iluminado a sóis
Brancos, azuis e rubros, que, nos arrebóis,
Fazem cruzar no espaço os seus variados tons
E ao luar tingem os campos com seus entretons.
Se manténs neste mundo um coração virtuoso
Irás para esses globos de aspecto suntuoso,
Onde há alegria e paz, onde a sabedoria
Mora e a felicidade eterna se irradia.
Sim, tua alma vê essas radiosas regiões
Que os favores do céu embelezam em festões,
Onde o ser se depura e sobe pouco a pouco
Enquanto o mau regride em seu caminho louco,
E do reino do mal rodando em seus anéis
Cai de círculo em círculo entre os infiéis.
Espelho que reflete a imagem do Universo,
Nossa alma pressagia esses fados diversos.
A alma, essa energia que rege os sentidos,
Que logo lhe obedecem aos mínimos pedidos, ─
Que, como chama presa num vaso de argila,
Com seu ardor a frágil prisão aniquila, ─
A alma, que guarda a lembrança do passado
E às vezes sabe ler no futuro afastado,
Não é breve centelha do fogo vital.
Tu mesmo, tu compreendes que a alma é imortal.
Nas regiões espaciais, em plena eternidade,
Conservando a constância e a própria identidade,
Não, a alma não morre, apenas se transporta,
E de abrigo em abrigo ela sempre se exorta.
Nossa alma, ao isolar-se do mundo exterior,
Poderá conquistar um senso superior,
E na ebriez do sono magnético
Possuir outra visão e o dom profético.
Por instantes liberta dos liames terrestres,
Facilmente percorre as amplidões celestes,
E ágil, num salto, lançando-se ao firmamento,
Vê através dos corpos e lê no pensamento.


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