Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1860

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Capítulo LXXIX

Novembro - Maria D'Agreda - Fenômeno de bicorporeidade

Novembro
Num resumo histórico que acaba de ser publicado, sobre a vida de Maria de Jesus d’Agreda, encontramos um admirável caso de bicorporeidade, que prova como tais fenômenos são perfeitamente aceitos pela religião. É verdade que para certas pessoas as crenças religiosas não são mais autoridade que as crenças espíritas, mas quando essas crenças se apoiarem nas demonstrações dadas pelo Espiritismo e nas provas patentes de sua possibilidade que ele fornece, através de uma teoria racional, sem derrogar as leis da Natureza, e de sua realidade, por exemplos análogos e autênticos, há que render-se à evidência e reconhecer que fora das leis conhecidas há outras que ainda estão nos segredos de Deus.

Maria de Jesus nasceu em Agreda, cidade da Castela, a 2 de abril de 1602, de pais nobres e de virtude exemplar. Ainda muito jovem, tornou-se superiora do convento da Imaculada Conceição de Maria, onde morreu em odor de santidade. Eis o relato que se acha em sua biografia:

“Por maior que seja o nosso desejo de resumir, não podemos deixar de falar aqui do papel inteiramente excepcional de missionária e de apóstolo que Maria d’Agreda exerceu no Novo México. O fato que vamos contar e do qual há provas incontestáveis, provaria por si só quanto eram elevados os dons sobrenaturais com que Deus havia enriquecido a sua humilde serva, e como era ardente o zelo que ela nutria no coração pela salvação do próximo. Nas suas relações íntimas e extraordinárias com Deus, ela recebia uma viva luz, com a ajuda da qual descobria o mundo inteiro, a multidão dos homens que o habitavam, entre os quais os que ainda não haviam entrado no círculo da Igreja e estavam em evidente perigo de perder-se por toda a eternidade. À vista da perda de tantas almas, Maria d’Agreda sentia o coração trespassado e, na sua dor, multiplicava as preces fervorosas. Deus a fez saber que os povos do Novo México apresentavam menos obstáculos que o resto dos homens para a sua conversão e que era especialmente sobre estes que a sua divina misericórdia queria espalhar-se. Tal conhecimento foi um novo aguilhão para o coração caridoso de Maria d’Agreda, e, do mais profundo de sua alma, implorou a clemência divina em favor desse pobre povo. O próprio Deus lhe ordenou que orasse e trabalhasse para tal fim. E ela o fez de maneira tão eficaz que o Senhor, cujas razões são impenetráveis, operou nela e por ela uma das maiores maravilhas que a História pode relatar.

“Um dia, tendo-a o Senhor arrebatado em êxtase, no momento em que orava instantemente pela salvação daquelas almas, Maria d’Agreda sentiu-se de repente transportada para uma região longínqua e desconhecida, sem saber como. Então encontrou-se num clima que não era o de Castela e se sentiu sob os raios de um sol mais ardente que de costume. Ante ela estavam homens de uma raça que jamais tinha encontrado, e Deus lhe ordenava que satisfizesse seus caridosos desejos e pregasse a lei e a fé santa àquele povo. A extática de Agreda obedecia à ordem. Pregava a esses índios em sua língua espanhola e esses pagãos entendiam como se ela lhes falasse em sua língua materna. Seguiam-se conversões em grande número. Voltando do êxtase, esta santa criatura se achava no mesmo lugar em que estava no começo do arrebatamento. Não foi uma só vez que Maria de Jesus desempenhou esse maravilhoso papel de missionária e de apóstolo junto aos habitantes do Novo México. O primeiro êxtase do gênero ocorreu em 1622, mas foi seguido de mais de quinhentos êxtases do mesmo gênero, durante cerca de oito anos. Maria d’Agreda encontrava-se continuamente nessa mesma região para continuar o seu apostolado. Parecia-lhe que o número dos conversos tinha aumentado prodigiosamente e que uma nação inteira, com o rei à frente, estava resolvida a abraçar a fé em Jesus Cristo.

“Ao mesmo tempo ela via, mas a grande distância, os franciscanos espanhóis que trabalhavam na conversão desse novo mundo, mas ignoravam a existência desse povo que ela havia convertido. Tal consideração a levou a aconselhar aos índios que mandassem alguns dentre eles àqueles missionários, para pedir que viessem lhes conceder o batismo. Foi por este meio que a Divina Providência quis dar uma brilhante manifestação do bem que Maria d’Agreda havia feito no Novo México, por sua pregação extática.

“Um dia, os missionários franciscanos que Maria d’Agreda tinha visto em Espírito, mas a uma grande distância, se viram abordados por um bando de índios de uma raça que ainda não tinham encontrado em suas excursões. Eles se anunciavam como enviados de sua nação, pedindo a graça do batismo com grande instância. Surpreendidos com a vista desses índios, e mais admirados ainda pelo pedido que faziam, os missionários procuraram saber a sua causa. Os mensageiros responderam que desde muito tempo uma mulher havia aparecido em sua terra, anunciando a lei de Jesus Cristo. Acrescentaram que essa mulher desaparecia de um momento para o outro, sem que se descobrisse o seu paradeiro; que lhes tinha feito conhecer o verdadeiro Deus e lhes havia aconselhado a irem aos missionários, a fim de obterem para toda a nação a graça do sacramento que resgata os pecados e transforma os homens em filhos de Deus. A surpresa dos missionários cresceu ainda mais quando, interrogando os índios sobre os mistérios da fé, encontraram-nos perfeitamente instruídos de tudo o que é necessário para a salvação. Os missionários tomaram todas as informações possíveis sobre essa mulher, mas tudo quanto os índios puderam dizer foi que jamais tinham visto uma pessoa semelhante. Entretanto, alguns detalhes descritivos da roupa levaram os missionários a suspeitar que ela portasse hábitos de religiosa. Um deles, que tinha consigo o retrato da venerável madre Luíza de Carrion, ainda viva, e cuja santidade era conhecida em toda a Espanha, o mostrou aos índios, pensando que eles talvez pudessem reconhecer alguns traços da mulher-apóstolo. Estes, depois de examinarem o retrato, responderam que a mulher que lhes havia pregado a lei de Jesus Cristo na verdade tinha um véu, como esta do retrato, mas que, pelos traços do rosto, era completamente diferente, sendo mais moça e de uma grande beleza.

“Então alguns missionários partiram com os emissários índios, para recolher entre eles tão abundante colheita. Após alguns dias de viagem, chegaram ao meio da tribo, onde foram recebidos com as mais vivas demonstrações de alegria e reconhecimento. Na viagem constataram que em todos os indivíduos daquela raça a instrução cristã era completa.

“O chefe da nação, objeto de especial solicitude da serva de Deus, quis ser o primeiro a receber a graça do batismo com toda a sua família, e em poucos dias a nação inteira seguiu o seu exemplo.

“Não obstante esses grandes acontecimentos, ignorava-se ainda quem era a serva do Senhor que tinha evangelizado esses povos, e tinha-se uma santa curiosidade e piedosa impaciência por conhecê-la. Sobretudo o Padre Alonzo de Benavides, que era o superior dos missionários franciscanos no Novo México, queria romper o véu do mistério que ainda cobria o nome da mulher-apóstolo e aspirava voltar momentaneamente à Espanha para descobrir o retiro dessa religiosa desconhecida, que prodigiosamente havia cooperado para a salvação de tantas almas. Em 1630 pôde, enfim, seguir para a Espanha, e foi diretamente a Madrid, onde se achava então o Geral de sua ordem. Benavides lhe deu a conhecer o objetivo a que se havia proposto ao decidir sua viagem à Europa. O Geral conhecia Maria de Jesus d’Agreda e, conforme o dever de seu cargo, tivera de examinar a fundo o íntimo dessa religiosa. Conhecia, pois, a sua santidade, tão bem quanto a sublimidade dos caminhos em que Deus a havia posto. Veio-lhe logo o pensamento de que essa mulher privilegiada bem podia ser a mulher-apóstolo de que lhe falava o Padre Benavides, e lhe comunicou suas impressões. Deu-lhe cartas, pelas quais o constituía seu comissário, com ordem a Maria d’Agreda para responder com toda simplicidade às perguntas que julgasse conveniente lhe dirigir. Com tais ordens, o comissário partiu para Agreda.

“A humilde irmã se viu, assim, obrigada a revelar ao missionário tudo quanto sabia com referência ao objeto de sua missão junto a ela. Confusa e ao mesmo tempo dócil, ela relatou a Benavides tudo quanto lhe tinha acontecido em seus êxtases, acrescentando, com franqueza, que estava completamente incerta quanto ao modo pelo qual sua ação tinha podido exercer-se a tão grande distância. Benavides também interrogou-a sobre as particularidades dos lugares que tantas vezes deveria ter visitado e verificou que ela estava bem informada sobre tudo o que se relacionava com o Novo México e os seus habitantes. Ela lhe expôs, nos mínimos detalhes, a topografia dessas regiões e as mencionou servindo-se mesmo dos nomes próprios, como teria feito um viajante depois de vários anos passados nessas regiões. Acrescentou mesmo que tinha visto Benavides várias vezes, bem como seus religiosos, indicando os lugares, os dias, as horas, as circunstâncias, e fornecendo detalhes especiais sobre cada um dos missionários.

“Compreende-se facilmente o alívio de Benavides por ter enfim descoberto a alma privilegiada de que Deus se havia servido para exercer sua ação miraculosa sobre os habitantes do Novo México.

“Antes de deixar a cidade de Agreda, Benavides quis redigir um relato de tudo quanto havia constatado, quer na América, quer em Agreda, nas suas conversas com a serva de Deus. Nessa peça exprimiu sua convicção pessoal tocante à maneira por que a ação de Maria de Jesus se tinha feito sentir nos índios. Ele inclinava-se a crer que a ação tinha sido corporal. Sobre o assunto, a humilde religiosa sempre guardou uma grande reserva. A despeito de mil indícios que levavam Benavides a concluir pelo que já havia concluído, antes dele, o confessor da serva de Deus, indícios que pareciam acusar uma mudança corporal de lugar, Maria d’Agreda sempre persistiu na crença de que tudo se passava em Espírito. Na sua humildade, ela era mesmo fortemente tentada a pensar que o fenômeno fosse simples alucinação, posto que, de sua parte, inocente e involuntária. Mas o seu diretor, que conhecia os fundamentos das coisas, pensava que a religiosa fosse transportada corporalmente, em seus êxtases, aos lugares de seus trabalhos evangélicos. Ele apoiava sua opinião na impressão física que a mudança de clima provocara em Maria d’Agreda na longa série de trabalhos entre os índios, e na opinião de várias pessoas doutas que ele entendera dever consultar em grande segredo. Seja como for, o fato permanece sempre como um dos mais maravilhosos de que já se falou nos anais dos santos e é muito próprio para dar uma ideia verdadeira, não só das comunicações divinas que Maria d’Agreda recebia, mas também de sua candura e de sua amável sinceridade.”



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