Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1861

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Capítulo XV

Março - A cabeça de Garibaldi

Março
O Siècle de 4 de fevereiro estampa uma carta do Dr. Riboli, que foi a Caprera examinar a cabeça de Garibaldi, do ponto de vista frenológico. Não é nosso propósito apreciar a opinião do doutor, e menos ainda o personagem político. Mas a leitura da carta nos forneceu algumas reflexões que aqui se naturalmente enquadram.

O Dr. Riboli acha que a organização cerebral de Garibaldi corresponde perfeitamente a todas as eminentes faculdades morais e intelectuais que o distinguem e aduz:

“Podeis sorrir de meu fanatismo, mas posso assegurar-vos que os momentos que passei examinando essa cabeça notável foram os mais felizes de minha vida. Eu vi, meu caro amigo, eu vi esse grande homem dar como uma criança a tudo quanto eu lhe pedia. Essa cabeça, que contém um mundo, eu segurei em minhas mãos durante mais de vinte minutos, sentindo a cada instante ressaltar sob os meus dedos as desigualdades e os contrastes de seu gênio...

“Garibaldi tem 1 metro e 64 centímetros de altura. Medi todas as proporções: a largura das espáduas, o comprimento dos braços e das pernas, a grossura do tronco. Numa palavra, é um homem bem proporcionado, forte e de temperamento nervoso sanguíneo.

“O volume da cabeça é notável. A principal fenomenalidade é a altura do crânio, medida da orelha ao alto da cabeça, que é de 20 centímetros. Esta predominância particular de toda a parte superior da cabeça denota, à primeira vista, e sem exame prévio, uma organização excepcional. O desenvolvimento do crânio na parte superior, sede dos sentimentos, indica a preponderância de todas as faculdades nobres sobre os instintos. A craniologia da cabeça de Garibaldi logo apresenta, após o exame, uma fenomenalidade original das mais raras, pode-se dizer sem precedentes. A harmonia de todos os órgãos é perfeita e a resultante matemática de seu conjunto apresenta, antes de mais nada: a abnegação antes de tudo e em tudo; a prudência e o sangue frio; a natural austeridade dos costumes; a meditação quase contínua; a eloquência grave e exata; a lealdade dominante; sua deferência incrível com os amigos, a ponto de sofrer com isto; sua perceptibilidade a respeito dos homens que o cercam é, sobretudo, dominante.

“Numa palavra, meu caro, sem vos aborrecer com todas as comparações, com todos os contrastes da causalidade, da habitatividade, da construtividade, da destrutividade[1], é uma cabeça maravilhosa, orgânica, sem desfalecimentos, que a Ciência estudará e tomará por modelo, etc.”

Toda a carta é escrita com um entusiasmo que denota a mais profunda e a mais sincera admiração pelo herói italiano. Contudo, queremos crer que as observações do autor não tenham sido influenciadas por nenhuma ideia preconcebida. Mas não é disto que se trata. Aceitamos seus dados frenológicos como exatos e, se não o fossem, Garibaldi não seria nem mais nem menos do que é. Sabe-se que os discípulos de Gall formam duas escolas: a dos materialistas e a dos espiritualistas. Os primeiros atribuem as faculdades aos órgãos. Para eles os órgãos são a causa; as faculdades, o produto, de onde se segue que fora dos órgãos não há faculdade, ou, por outras palavras, quando o homem morre, tudo está morto. Os segundos admitem a independência das faculdades. As faculdades são a causa; o desenvolvimento dos órgãos é o efeito, de onde se segue que a destruição dos órgãos não determina o aniquilamento das faculdades. Não sabemos a qual das duas escolas pertence o autor da carta, pois sua opinião não se revela por nenhuma palavra. Mas, por um momento, suponhamos que as observações acima tenham sido feitas por um frenologista materialista. Então perguntamos que impressão deveria ele sentir à ideia de que essa cabeça, que leva todo um mundo, só deve o seu gênio ao acaso, ou ao capricho da Natureza, que lhe teria dado maior massa cerebral num ponto que em outro. Ora, como o acaso é cego e não tem desígnio premeditado, poderia também ter aumentado o volume de uma outra circunvolução do cérebro e dar, assim, sem querer, todo um outro curso às suas inclinações. Tal raciocínio aplica-se, necessariamente, a todos os homens transcendentes, seja a que título for. Onde estaria o seu mérito se o devesse apenas ao deslocamento de um pedacinho de substância cerebral? Se um simples capricho da Natureza pode, ao invés de um grande homem, produzir um homem vulgar? Ao invés de um homem de bem, um celerado?

Isto não é tudo. Considerando hoje essa cabeça poderosa, não existe algo de terrível ao pensar que talvez amanhã, desse gênio nada mais reste, absolutamente nada além de matéria inerte, que será pasto dos vermes? Sem falar das funestas consequências de semelhante sistema, caso fosse acreditado, diríamos que formiga de contradições inexplicáveis, e que os fatos o demonstram a cada passo. Ao contrário, tudo se explica pelo sistema espiritualista: as faculdades não são produto dos órgãos, mas atributos da alma, cujos órgãos não passam de instrumentos ao serviço de sua manifestação. Sendo a faculdade independente, sua atividade estimula o desenvolvimento do órgão, como o exercício de um músculo lhe aumenta o volume. O ser pensante é o ser principal, cujo corpo não passa de acessório destrutível. Assim, o talento éum mérito real, porque é fruto do trabalho e não o resultado de uma matéria mais ou menos abundante. Com o sistema materialista, o trabalho, com o auxílio do qual se adquire o talento, é inteiramente perdido na morte, que muitas vezes não concede o tempo necessário para usufruir. Com a alma, o trabalho tem sua razão de ser, porque tudo o que a alma adquire serve ao seu desenvolvimento; trabalha-se para um ser mortal, e não para um corpo que tem apenas algumas horas de vida.

Dir-se-á, porém, que o gênio não se adquire, que é inato. É verdade. Mas, assim, porque dois homens nascidos nas mesmas condições são tão diferentes do ponto de vista intelectual? Por que teria Deus favorecido a um mais que ao outro? Por que a um teria dado os meios de progredir, recusando-os ao outro? Qual o sistema filosófico que resolveu este problema? Só a doutrina da preexistência da alma pode explicá-lo: o homem de gênio já viveu, tem aquisição, experiência e, por isso, mais direito ao nosso respeito do que se sua superioridade fosse um favor não justificado da Providência, ou um capricho da Natureza. Queremos acreditar que o Dr. Riboli tenha visto na cabeça daquele em que, por assim dizer, não tocava senão com um medo respeitoso, algo mais digno de sua veneração do que uma massa de carne e que não a tenha rebaixado ao papel de um mecanismo organizado. A gente se lembra daquele trapeiro filósofo que olhando um cão morto num canto de rua dizia para si mesmo: Eis o que será de nós! Então! Vós todos que negais a existência futura, eis a que reduzis os maiores gênios!

Para mais detalhes sobre a frenologia e a fisiognomia, recomendamos o artigo da Revista Espírita de julho de 1860.



[1] Lá se vão os neologismos, que entretanto não são mais barbarismos do que Espiritismo e perispírito.




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