Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862

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Capítulo LXV

Setembro - Inauguração de um grupo espírita em Bordeaux

Setembro
DISCURSO DE ABERTURA

A despeito de certa má vontade, multiplicam-se diariamente os grupos espíritas. Consideramos um dever e um prazer apresentar aos nossos numerosos leitores o discurso inaugural de um deles, feito pelo seu fundador, Sr. Condat, a 20 de março de 1862.

A maneira pela qual a séria questão do Espiritismo nele é encarada prova quanto agora são compreendidos o seu objetivo e o seu verdadeiro alcance social. Sentimo-nos feliz em dizer que tal sentimento é hoje geral, porque em toda parte a curiosidade é substituída pelo desejo de instrução e de melhora. Foi o que constatamos nas visitas a várias cidades de província.

Vimo-los consagrar-se a comunicações instrutivas e apreciarem seu valor, os médiuns que as recebem. É um fato característico na história do estabelecimento do Espiritismo. Desconhecemos o grupo ao qual nos referimos, mas julgamos suas tendências pelo discurso inaugural. O orador não teria tido essa linguagem ante um auditório leviano e superficial, reunido para se distrair. São as reuniões sérias que dão uma ideia séria do Espiritismo, por isso nunca seria demais encorajar a sua multiplicação.

Senhoras e Senhores.

Pedindo recebais os meus agradecimentos pela benevolente acolhida ao meu convite, permiti-me que vos dirija algumas palavras sobre o motivo de nossa reunião. Em falta de talento, espero encontreis a convicção de um homem profundamente dedicado ao progresso da Humanidade.

Muitas vezes o viajor intrépido, aspirando atingir o pico da montanha, encontra o estreito caminho obstruído por uma rocha; outras vezes, também, no curso das idades, a Humanidade que tende a aproximar-se de Deus, encontra o seu obstáculo: seu rochedo é o materialismo. Ela estaciona por algum tempo, talvez séculos, mas a força invencível a que obedece, agindo na proporção da resistência, triunfa do obstáculo e a Humanidade, sempre solicitada a marchar avante, retoma a caminhada com impulso maior.

Assim, senhores, não nos admiremos quando se manifesta uma dessas grandes ideias que melhor denunciam a origem celeste do homem; quando se produz um desses fatos prodigiosos que vêm perturbar os cálculos restritos e as observações limitadas da ciência materialista. Não nos espantemos, e sobretudo não nos deixemos desencorajar pelas resistências que se opõem a tudo quanto pode servir para demonstrar que o homem não é apenas um pouco de barro, cujos elementos, após a morte, voltarão à Terra.

Antes constatemos, e o constatemos com alegria, nós, os adeptos do Espiritismo, nós, os filhos do século dezenove, filhos de um século que foi a manifestação mais completa, por assim dizer a encarnação do ceticismo e de suas desencorajadoras consequências; constatemos que a Humanidade está em marcha!

Vede o progresso que aqui faz o Espiritismo, nesta cidade grande, bela e inteligente. Vede como por toda parte a dúvida se apaga às claridades da ciência nova.

Contemos, senhores, e confessemos com sinceridade, quantos de nós ainda ontem com um sorriso de incredulidade nos lábios, estamos hoje com o pé na estrada e o coração resolvido a não recuar. Isto é compreensível, pois estamos na corrente e ela nos arrasta.

Que é, então, essa doutrina, senhores? Aonde nos conduz?

Despertar a coragem do homem, ampará-lo nos desfalecimentos, fortificá-lo contra as vicissitudes da vida, reanimar a sua fé, provar-lhe a imortalidade da alma, não só por demonstração, mas pelos fatos, eis a doutrina e aonde ela conduz!

Que outra doutrina produzirá sobre o moral e sobre o intelecto melhores resultados? Será a negação de uma vida futura que lhe poderão opor como preferível, no interesse da Humanidade inteira e para a perfeição moral e intelectual de cada um individualmente?

Tomando por princípio as palavras seguintes, que resumem todo o materialismo: “Tudo acaba quando se abre um túmulo”, que é o que se consegue produzir senão o nada?

Experimento uma penosa sensação, uma espécie de pudor por haver feito um paralelo entre esses dois extremos. A esperança de encontrar num mundo melhor os nossos entes queridos cuja alma abriu as asas, e o horror invencível que experimentamos, que o próprio ateu experimenta ao pensar que tudo estaria aniquilado com o último sopro da parte material do nosso ser, bastariam para afastar toda ideia de comparação. Contudo, senhores, se todas as consolações encerradas no Espiritismo não passassem de crença; se fossem apenas um sistema puramente especulativo, uma engenhosa ficção, como objetam os apóstolos do materialismo, para submeterem certas inteligências fracas a umas tantas regras chamadas arbitrariamente virtude, e desse modo retê-las fora dos sedutores apetites da matéria, compensação que num dia de piedade o autor dessa ordem fatal, que a uns dá tudo e à maioria reserva o sofrimento, teria concedido o sofrimento essa maioria para distrair-se.

Essas engenhosas combinações, senhores, estabelecidas como consequência de um princípio sem base e simples fruto da imaginação não seriam, para as inteligências fortes, para o homem que sabe fazer uso da razão, um tormento a mais, acrescentado aos tormentos da fatalidade a que ele não poderia subtrair-se?

Sem dúvida a demonstração é uma coisa admirável. Ela prova, antes de mais nada, a razão humana e a alma, essa abstração da matéria. Mas até hoje seu ponto de partida único foi a expressão de Descartes: “Penso, logo existo.” Hoje o Espiritismo veio dar uma força imensa ao princípio da imortalidade da alma, apoiado em fatos tangíveis e irrefutáveis.

O que precede explica por que e como aqui estamos reunidos. Mas, senhores, deixai-me ainda comunicar-vos uma impressão que sempre senti, um desejo constantemente renovado, cada vez que me encontrei em presença de uma Sociedade que tem por objetivo o aperfeiçoamento moral do homem. Eu gostaria de ter participado do primeiro grupo, das primeiras comunicações de alma para alma dos fundadores; gostaria de ter presidido ao desenvolvimento do germe da ideia que, como o grão tornado gigante, mais tarde produziu frutos abundantes.

Ora, senhores! Hoje que tenho a felicidade de vos reunir para propor a formação de um novo grupo espírita, minha ideia tem plena aceitação e vos peço que, como eu, conserveis no coração e na memória a data de 20 de março.

Agora, senhores, é tempo de passar à prática, que talvez eu tenha retardado. Sem transição, para reparar a perda de tempo tão largamente dedicado a desabafos, abordarei o objetivo de nossa reunião, pedindo que vos previnais contra uma objeção que naturalmente se manifestará em vosso espírito, como se manifestou no meu, quanto à indispensável necessidade de médiuns, quando se quer formar um grupo espírita.

Aí está, senhores, a aparência de uma dificuldade, mas não uma dificuldade. Inicialmente, a ausência de médiuns em nossas sessões não as tornará estéreis, crede-o. Eis uma ideia que vos apresento, pedindo o vosso conselho. Procederemos assim:

A primeira parte de cada sessão seria dedicada à leitura de O livro dos Espíritos e de O livro dos médiuns. A segunda seria consagrada à formação de médiuns, entre nós e, acreditai, senhores, se seguirmos os conselhos e os ensinos dados nessas obras de nosso venerado chefe, Sr. Allan Kardec, a faculdade mediúnica não tardará a se desenvolver na maior parte de nós. Então os nossos trabalhos receberão sua mais larga e suave recompensa, porque Deus, o grande criador de todas as coisas, o juiz infalível, não se enganará quanto ao bom uso que queremos fazer da preciosa faculdade mediúnica. Ele não deixará, pois, de nos dar a mais bela recompensa que possamos ambicionar, a de permitir que um de nós, ao menos, obtenha tal faculdade no mesmo grau que vários médiuns sérios que temos, nesta noite, a felicidade de contar entre nós.

Nossos queridos irmãos Gourgues e Sab , que tenho a honra de vos apresentar, assistindo a nossa sessão inaugural, quiseram dar-lhe o mais alto grau de solenidade. Que eles nos deem a esperança, que lhes suplicamos, e que com a frequência que lhes for possível, nos venham visitar. Sua presença fortalecerá a nossa fé e avivará o ardor daqueles dentre nós que ante o insucesso das primeiras tentativas mediúnicas poderiam cair no desânimo.

Sobretudo, senhores, não tomemos um caminho errado. Demo-nos perfeita conta de nossa empresa e de seu objetivo. Seria vítima de lamentável engano quem fosse tentado a fazer parte do grupo que vamos formar, apenas levado pela esperança de encontrar distrações fúteis e fora da boa moral pregada pelos bons Espíritos.

“O fim essencial do Espiritismo”, disse nosso venerado chefe, “é o melhoramento das criaturas. Nele só se deve procurar aquilo que possa ajudar o progresso moral e intelectual. Não se deve perder de vista que a crença no Espiritismo só é proveitosa àquele de quem se possa dizer: Ele hoje é melhor que ontem”.

Não esqueçamos que o nosso pobre planeta é um purgatório, onde expiamos, por nossa existência atual, as faltas cometidas nas precedentes. Isso prova, senhores, que nenhum de nós pode-se dizer perfeito, pois enquanto tivermos faltas a expiar, reencarnaremos. Nossa presença na Terra atesta, portanto, a nossa imperfeição.

O Espiritismo fincou as balizas da rota que conduz a Deus. Marchemos sem perdê-las vista. A linha traçada pelos bons Espíritos, geômetras da Divindade, está ladeada de precipícios. As urzes e os espinhos são as suas margens. Não temamos os arranhões. Que são tais feridas, comparadas à felicidade eterna, que acolherá o viajor que chegou ao termo da viagem?

Esse termo, senhores, esse objetivo há muito tempo é objeto de minhas meditações. Abarcando o meu passado com um olhar, e voltando-me para reconhecer o espinheiro que me havia ferido, o obstáculo que me tinha feito tropeçar, não pude deixar de fazer o que faz todo homem, ao menos uma vez na vida: o balanço, por assim dizer, das alegrias e dos desgostos, dos bons momentos de coragem e das horas de desânimo. E, com a mente tranquila e a alma livre, isto é, dobrada sobre si mesma, desprendida da matéria, eu disse a mim mesmo: A existência humana é apenas um sonho, mas um sonho horroroso, que começa quando a alma ou Espírito encarnado da criança se ilumina aos primeiros lampejos da inteligência, para terminar no aniquilamento da morte. A morte! Essa palavra pavorosa para tantas pessoas, na verdade é apenas o despertar desse sono horrível, a benfeitora compassiva que nos liberta do pesadelo insuportável que nos acompanhou passo a passo, desde nosso nascimento.

Falo em geral, mas não de maneira absoluta. A vida do homem de bem não tem mais esses mesmos caracteres. Aquilo que ele fez de bom, de grande, de útil, ilumina com puras claridades o sonho de sua existência. Para ele, a passagem da vida à morte é feita sem transição dolorosa. Ele nada deixa em sua retaguarda que pudesse comprometer o futuro de sua nova existência espiritual, recompensa de suas boas obras.

Mas, ao contrário, para os cegos voluntários que tiverem constantemente fechados os olhos para melhor negarem a existência de Deus; que se tiverem recusado à contemplação do sublime espetáculo de suas obras divinas, provas e manifestações de sua bondade, de sua justiça e de seu poder, para esses direi que terão um terrível despertar, cheio de amargos lamentos, sobretudo por haverem desconhecido os benéficos conselhos de seus irmãos espíritas. O sofrimento moral que terão de suportar durará até que um arrependimento sincero mova a piedade de Deus, que lhes concederá a graça de nova encarnação.

Muita gente ainda vê nas comunicações espíritas uma obra do demônio. Contudo o seu número diminui dia a dia. Esse feliz decréscimo é evidentemente devido à curiosidade de visitar os grupos espíritas e de ler O livro dos Espíritos, porque, no número dos curiosos encontram-se pessoas que se convencem, principalmente as que leem aquele livro.

Não acrediteis, senhores, que atraireis muitos adeptos à nossa doutrina fazendoos primeiramente assistirem às nossas sessões. Não. Tenho a íntima convicção de que uma criatura completamente estranha à doutrina não se convencerá pelo que vir em nossos trabalhos. Terá antes vontade de rir dos fenômenos, em vez de levá-los a sério.

Quanto a mim, senhores, creio ter feito muito mais pela doutrina levando alguém a ler O Livro dos Espíritos do que levando-o a uma das nossas sessões. Quando tenho certeza de que a leitura foi feita e de que deu os frutos que não pode deixar de dar, oh! então levo com satisfação aquela pessoa a um grupo espírita. Tenho certeza de que nesse momento ela se dará conta de tudo o que vir e compreenderá, e que aquele que possivelmente riria antes daquela leitura, sentirá efeitos diametralmente opostos. Não quero dizer que chorará.

A melhor maneira de terminar é com uma citação retirada de O livro dos Espíritos. Ela convencerá, mais que minhas pobres palavras, aqueles que ainda duvidam do fundo de verdade sobre o qual repousam as crenças espíritas:

“Os que dizem que as crenças espíritas ameaçam invadir o mundo proclamam, por isso mesmo, a sua força, porque uma ideia destituída de base e de lógica não se tornaria universal. Se, pois, o Espiritismo se estabelece em toda parte, se recruta principalmente nas camadas esclarecidas, como todos reconhecem, é porque tem um fundo de verdade. Contra essa tendência serão vãos os esforços dos detratores. O que prova isto é que o próprio ridículo com que tentam cobri-lo, longe de deter a sua marcha, parece dar-lhe vida nova. Tal resultado justifica plenamente o que muitas vezes nos têm dito os Espíritos: ‘Não vos inquieteis com a oposição. Tudo quanto fizerem contra vós reverterá a vosso favor e os vossos maiores adversários servirão à vossa causa, sem o querer. Contra a vontade de Deus não prevalecerá a má vontade dos homens.’”

CONDAT



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