Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862
Versão para cópiaCapítulo XCVI
Dezembro - O Tugúrio e o Salão
Dezembro
Estudos de costumes Espíritas
Entre nossa correspondência antiga encontramos esta carta, que vem a propósito do artigo precedente.
Paris, 29 de julho de 1860.
Senhor,
Tomo a liberdade de vos comunicar as reflexões sugeridas por dois fatos por mim observados e que, com boas razões, poderiam ser qualificados de estudos de costumes espíritas. Vereis, por aqui, que os fenômenos morais têm valor para mim. Desde que me entreguei ao estudo do Espiritismo, parece que vejo cem vezes mais coisas que antes. Tal fato, ao qual não teria dado a mínima atenção, leva-me hoje a refletir. Estou ─ poderia dizer ─ ante um espetáculo perpétuo, no qual cada indivíduo tem o seu papel e me oferece um enigma a decifrar. É verdade que uns são tão fáceis, quando se possui a chave do Espiritismo, que se não tem grande mérito. Outros oferecem maior interesse, porque, com o Espiritismo, encontramo-nos como que num país cuja língua desconhecemos. Isso me tornou meditativo e observador, pois agora para mim tudo tem uma causa. Os mil e um fatos que outrora me pareciam produto do acaso e passavam despercebidos, hoje têm sua razão de ser e sua utilidade. Um nada, na ordem moral, atrai minha atenção e me é uma lição. Mas esquecia que é a propósito de uma lição que quero falar.
Sou professor de piano. Há tempos, indo à casa de uma de minhas alunas, de uma família da alta sociedade, entrei na portaria, não me lembro por quê. Uma senhora, com os punhos nos quadris, e que não se desqualificou nem pelo físico nem pelo moral, ocupava um canto. Eu a vi reprovar o comportamento da filha, menina de uns quinze anos, cujas maneiras estavam em chocante contraste com as da mãe.
─ Que fez a senhorita Justina ─ perguntei ─ para assim excitar a vossa cólera?
─ Nem me faleis, senhor, esta sirigaita não se dá conta de seus ares de duquesa! A senhorita não gosta de lavar a louça; acha que isso lhe estraga as mãos, que cheira mal, ela que foi criada com as vacas, na casa da avó. Ela tem medo de sujar as unhas; precisa de perfume para o lenço! Eu te darei perfumes! Eu!...
Então, uma valente bofetada a faz recuar quatro passos.
─ Ah! Vede, meu senhorzinho, é preciso corrigir as crianças quando pequenas. Jamais estraguei as minhas. Todos os meus filhos são bons operários, e é preciso que esta sirigaita perca os ares de grande dama.
Depois de haver dado uns conselhos, de doçura à mãe e de submissão à filha, subi para ter com a minha aluna, sem dar importância à cena de família.
Lá, por singular coincidência, vi a contrapartida. A mãe, mulher da sociedade, de belas maneiras, também repreendia a filha, mas por motivo oposto.
─ Mas tenha modos, Sofia, ─ dizia-lhe ela ─ você tem um verdadeiro aspecto de cozinheira. Não é de admirar. Você tem uma predileção particular pela cozinha, onde se sente melhor que na sala. Garanto que a Justina, a filha da porteira, teria vergonha de você. Dir-se-ia que vocês trocaram de berço.
Eu jamais havia notado essas particularidades. Foi necessária a aproximação das duas cenas para que as notasse. A senhorita Sofia, minha aluna, é uma jovem de dezoito anos, muito bela, mas seus traços têm algo de vulgar; suas maneiras são comuns e sem distinção; sua postura, seus movimentos têm algo de pesado e desajeitado. Eu ignorava sua inclinação pela cozinha. Pus-me, então, a comparar a pequena Justina, de instintos tão aristocráticos, e me perguntei se aí não estaria um exemplo chocante de pendores inatos, porquanto nas duas a educação foi impotente para modificá-los.
Por que uma, educada no seio da opulência e do bom-tom, tem gostos e maneiras vulgares, ao passo que a outra, que desde a infância viveu no meio mais rústico, tem o sentido da distinção e das coisas delicadas, a despeito dos corretivos da mãe para que perca o hábito?
Ó filósofos, que quereis sondar os refolhos do coração humano, explicai esses fenômenos sem as existências anteriores. Para mim, é indubitável que as duas moças têm o instinto daquilo que foram.
Que pensais disto, caro mestre?
Aceitai,
D...
Pensamos que a senhorita Justina, a porteira, bem poderia ser uma variante do que diz Charles Fourier: “Veem-se, todos os dias, pessoas mendigando à porta dos castelos de que foram donas em vidas precedentes.”
Quem sabe se a senhorinha Justina não teria sido a senhora desse palácio, e a senhorinha Sofia, a grande dama, a sua porteira?
Essa ideia é revoltante para certa gente que se não afaz ao pensamento de ter sido menos do que é, ou tornar-se criado de seu criado. Assim, o que se tornam as raças de puro sangue que se teve tanto cuidado de não mesclar?
Consolai-vos. O sangue dos vossos avós pode correr em vossas veias, pois o corpo procede do corpo. Quanto ao Espírito, é outra coisa. Mas que fazer, se assim é? Porque um homem se aborrece com a chuva, não deixará de chover.
Sem dúvida é humilhante pensar que de senhor se possa passar a servo e de rico a mendigo, mas nada é mais fácil do que impedir que assim seja. Basta não ser vão e orgulhoso para não ser rebaixado; ser bom e generoso para não ser reduzido a pedir aquilo que se recusou aos outros. Ser punido por aquilo em que se pecou, não é a mais justa das justiças? Sim, de grande a gente pode tornar-se pequeno, mas quando se foi bom, não se pode voltar a ser mau. Ora, não é melhor ser um proletário honesto que um rico vicioso?
Paris, 29 de julho de 1860.
Senhor,
Tomo a liberdade de vos comunicar as reflexões sugeridas por dois fatos por mim observados e que, com boas razões, poderiam ser qualificados de estudos de costumes espíritas. Vereis, por aqui, que os fenômenos morais têm valor para mim. Desde que me entreguei ao estudo do Espiritismo, parece que vejo cem vezes mais coisas que antes. Tal fato, ao qual não teria dado a mínima atenção, leva-me hoje a refletir. Estou ─ poderia dizer ─ ante um espetáculo perpétuo, no qual cada indivíduo tem o seu papel e me oferece um enigma a decifrar. É verdade que uns são tão fáceis, quando se possui a chave do Espiritismo, que se não tem grande mérito. Outros oferecem maior interesse, porque, com o Espiritismo, encontramo-nos como que num país cuja língua desconhecemos. Isso me tornou meditativo e observador, pois agora para mim tudo tem uma causa. Os mil e um fatos que outrora me pareciam produto do acaso e passavam despercebidos, hoje têm sua razão de ser e sua utilidade. Um nada, na ordem moral, atrai minha atenção e me é uma lição. Mas esquecia que é a propósito de uma lição que quero falar.
Sou professor de piano. Há tempos, indo à casa de uma de minhas alunas, de uma família da alta sociedade, entrei na portaria, não me lembro por quê. Uma senhora, com os punhos nos quadris, e que não se desqualificou nem pelo físico nem pelo moral, ocupava um canto. Eu a vi reprovar o comportamento da filha, menina de uns quinze anos, cujas maneiras estavam em chocante contraste com as da mãe.
─ Que fez a senhorita Justina ─ perguntei ─ para assim excitar a vossa cólera?
─ Nem me faleis, senhor, esta sirigaita não se dá conta de seus ares de duquesa! A senhorita não gosta de lavar a louça; acha que isso lhe estraga as mãos, que cheira mal, ela que foi criada com as vacas, na casa da avó. Ela tem medo de sujar as unhas; precisa de perfume para o lenço! Eu te darei perfumes! Eu!...
Então, uma valente bofetada a faz recuar quatro passos.
─ Ah! Vede, meu senhorzinho, é preciso corrigir as crianças quando pequenas. Jamais estraguei as minhas. Todos os meus filhos são bons operários, e é preciso que esta sirigaita perca os ares de grande dama.
Depois de haver dado uns conselhos, de doçura à mãe e de submissão à filha, subi para ter com a minha aluna, sem dar importância à cena de família.
Lá, por singular coincidência, vi a contrapartida. A mãe, mulher da sociedade, de belas maneiras, também repreendia a filha, mas por motivo oposto.
─ Mas tenha modos, Sofia, ─ dizia-lhe ela ─ você tem um verdadeiro aspecto de cozinheira. Não é de admirar. Você tem uma predileção particular pela cozinha, onde se sente melhor que na sala. Garanto que a Justina, a filha da porteira, teria vergonha de você. Dir-se-ia que vocês trocaram de berço.
Eu jamais havia notado essas particularidades. Foi necessária a aproximação das duas cenas para que as notasse. A senhorita Sofia, minha aluna, é uma jovem de dezoito anos, muito bela, mas seus traços têm algo de vulgar; suas maneiras são comuns e sem distinção; sua postura, seus movimentos têm algo de pesado e desajeitado. Eu ignorava sua inclinação pela cozinha. Pus-me, então, a comparar a pequena Justina, de instintos tão aristocráticos, e me perguntei se aí não estaria um exemplo chocante de pendores inatos, porquanto nas duas a educação foi impotente para modificá-los.
Por que uma, educada no seio da opulência e do bom-tom, tem gostos e maneiras vulgares, ao passo que a outra, que desde a infância viveu no meio mais rústico, tem o sentido da distinção e das coisas delicadas, a despeito dos corretivos da mãe para que perca o hábito?
Ó filósofos, que quereis sondar os refolhos do coração humano, explicai esses fenômenos sem as existências anteriores. Para mim, é indubitável que as duas moças têm o instinto daquilo que foram.
Que pensais disto, caro mestre?
Aceitai,
D...
Pensamos que a senhorita Justina, a porteira, bem poderia ser uma variante do que diz Charles Fourier: “Veem-se, todos os dias, pessoas mendigando à porta dos castelos de que foram donas em vidas precedentes.”
Quem sabe se a senhorinha Justina não teria sido a senhora desse palácio, e a senhorinha Sofia, a grande dama, a sua porteira?
Essa ideia é revoltante para certa gente que se não afaz ao pensamento de ter sido menos do que é, ou tornar-se criado de seu criado. Assim, o que se tornam as raças de puro sangue que se teve tanto cuidado de não mesclar?
Consolai-vos. O sangue dos vossos avós pode correr em vossas veias, pois o corpo procede do corpo. Quanto ao Espírito, é outra coisa. Mas que fazer, se assim é? Porque um homem se aborrece com a chuva, não deixará de chover.
Sem dúvida é humilhante pensar que de senhor se possa passar a servo e de rico a mendigo, mas nada é mais fácil do que impedir que assim seja. Basta não ser vão e orgulhoso para não ser rebaixado; ser bom e generoso para não ser reduzido a pedir aquilo que se recusou aos outros. Ser punido por aquilo em que se pecou, não é a mais justa das justiças? Sim, de grande a gente pode tornar-se pequeno, mas quando se foi bom, não se pode voltar a ser mau. Ora, não é melhor ser um proletário honesto que um rico vicioso?
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