Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

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Capítulo X

Fevereiro - Primeiras lições de moral da infância

Fevereiro


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De todas as chagas morais da Sociedade, parece que o egoísmo é a mais difícil de desarraigar. Com efeito, ela o é tanto mais quanto mais é alimentada pelos próprios hábitos da educação. Parece que se toma a tarefa de excitar, desde o berço, certas paixões que mais tarde tornam-se uma segunda natureza. E admiram-se dos vícios da Sociedade, quando as crianças o sugam com o leite. Eis um exemplo que, como cada um pode julgar, pertence mais à regra do que à exceção.

Numa família de nosso conhecimento há uma menina de quatro a cinco anos, de uma inteligência rara, mas que tem os pequenos defeitos das crianças mimadas, isto é, é um pouco caprichosa, chorona, teimosa, e nem sempre agradece quando lhe dão qualquer coisa, o que os pais cuidam bem de corrigir, porque fora esses defeitos,segundo eles, ela tem um coração de ouro, expressão consagrada. Vejamos como eles se conduzem para lhe tirar essas pequenas manchas e conservar o ouro em sua pureza.

Um dia trouxeram um doce à criança e, como de costume, lhe disseram: “Tu ocomerás se fores boazinha”. Primeira lição de gulodice. Quantas vezes, à mesa, não dizem a uma criança que não comerá tal petisco se chorar. “Faze isto, ou faze aquilo”, dizem, “e terás creme” ou qualquer outra coisa que lhe apeteça, e a criança se constrange, não pela razão, mas em vista de satisfazer a um desejo sensual que aguilhoam.

É ainda muito pior quando lhe dizem, o que não é menos frequente, que darão oseu pedaço a uma outra. Aqui já não é só a gulodice que está em jogo, é a inveja. A criança fará o que lhe dizem, não só para ter, mas para que a outra não tenha. Querem dar-lhe uma lição de generosidade? Então lhe dizem: “Dá esta fruta ou este brinquedo a fulaninho”. Se ela recusa, não deixam de acrescentar, para nela estimular um bom sentimento: “Eu te darei um outro”, de modo que a criança não se decide a ser generosa senão quando está certa de nada perder.

Certo dia testemunhamos um fato bem característico neste gênero. Era uma criança de cerca de dois anos e meio, a quem tinham feito semelhante ameaça, acrescentando: “Nós o daremos ao teu irmãozinho, e tu ficarás sem nada.” Para tornar a lição mais sensível, puseram o pedaço no prato do irmãozinho, que levou a coisa a sério e comeu a porção. À vista disso, o outro ficou vermelho e não era preciso ser nem o pai nem a mãe para ver o relâmpago de cólera e de ódio que partiu de seus olhos. A semente estava lançada: poderia produzir bom grão?

Voltemos à menina, da qual falamos. Como ela não se deu conta da ameaça, sabendo por experiência que raramente a cumpriam, desta vez foram mais firmes, pois compreenderam que era necessário dominar esse pequeno caráter, e não esperar que com a idade ela adquirisse um mau hábito. Diziam que é preciso formar cedo as crianças, máxima muito sábia e, para a pôr em prática, eis o que fizeram: “Eu te prometo, disse a mãe, que se não obedeceres, amanhã cedo darei o teu bolo à primeira menina pobre que passar.” Dito e feito.

Desta vez queriam manter a promessa e dar-lhe uma boa lição. Assim, no dia seguinte, de manhã, tendo visto uma pequena mendiga na rua, fizeram-na entrar e obrigaram a filha a tomá-la pela mão e ela mesma lhe dar o seu bolo. Então elogiaram a sua docilidade. Moral da história: A filha disse: “Se eu soubesse disto teria me apressado em comer o bolo ontem.” E todos aplaudiram esta resposta espirituosa. Com efeito, a criança tinha recebido uma forte lição, mas de puro egoísmo, da qual não deixará de aproveitar-se uma outra vez, pois agora sabe quanto custa a generosidade forçada. Resta saber que frutos dará mais tarde esta semente quando, com mais idade, a criança fizer a aplicação dessa moral em coisas mais sérias que um bolo.

Sabe-se todos os pensamentos que este único fato pode ter feito germinar nessa cabecinha? Depois disto, como querem que uma criança não seja egoísta quando, em vez de nela despertar o prazer de dar e de lhe representar a felicidade de quem recebe, impõem-lhe um sacrifício como punição? Não é inspirar aversão ao ato de dar e àqueles que necessitam?

Outro hábito, igualmente frequente, é o de castigar a criança mandando-a comer na cozinha com os criados. A punição está menos na exclusão da mesa do que na humilhação de ir para a mesa dos serviçais. Assim se acha inoculado, desde a mais tenra idade, o vírus da sensualidade, do egoísmo, do orgulho, do desprezo aos inferiores, das paixões, numa palavra, que com razão são consideradas como as chagas da Humanidade.

É preciso ser dotado de uma natureza excepcionalmente boa para resistir a tais influências, produzidas na idade mais impressionável, na qual não podem encontrar o contrapeso nem da vontade, nem da experiência. Assim, por pouco que aí se ache o germe das más paixões, o que é o caso mais ordinário, dada a natureza da maioria dos Espíritos que se encarnam na Terra, ele não pode deixar de desenvolver-se sob tais influências, ao passo que seria preciso observar-lhe os menores traços para reprimi-los.

A falta, sem dúvida, é dos pais, mas é preciso dizer que muitas vezes estes pecam mais por ignorância do que por má vontade. Em muitos há, incontestavelmente, uma culposa despreocupação, mas em muitos outros a intenção é boa, no entanto, é o remédio que nada vale, ou que é mal aplicado.

Sendo os primeiros médicos da alma de seus filhos, os pais deveriam ser instruídos, não só de seus deveres, mas dos meios de cumpri-los. Não basta ao médico saber que deve procurar curar, é preciso saber como agir. Ora, para os pais, onde estão os meios de instruir-se nesta parte tão importante de sua tarefa? Hoje dá-se muita instrução à mulher; fazem-na passar por exames rigorosos, mas algum dia foi exigido da mãe que soubesse como fazer para formar o moral de seu filho?

Ensinam-lhe receitas caseiras, mas foi iniciada aos mil e um segredos de governar os jovens corações?

Os pais, portanto, são abandonados sem guia à sua iniciativa. É por isto que tantas vezes seguem caminhos errados. Assim recolhem, nos erros dos filhos já crescidos, o fruto amargo de sua inexperiência ou de uma ternura mal compreendida, e a Sociedade inteira lhes recebe o contragolpe.

Considerando-se que o egoísmo e o orgulho são reconhecidamente a fonte da maioria das misérias humanas; que enquanto eles reinarem na Terra não se pode esperar nem paz, nem caridade, nem fraternidade, então é preciso atacá-los no estado de embrião, sem esperar que fiquem vivazes.

Pode o Espiritismo remediar esse mal? Sem dúvida nenhuma, e não hesitamos em dizer que ele é o único suficientemente poderoso para fazê-lo cessar, pelo novo ponto de vista com o qual ele permite perceber a missão e a responsabilidade dos pais; dando a conhecer a fonte das qualidades inatas, boas ou más; mostrando a ação que se pode exercer sobre os Espíritos encarnados e desencarnados; dando a fé inquebrantável que sanciona os deveres; enfim, moralizando os próprios pais. Ele já prova sua eficácia pela maneira mais racional empregada na educação das crianças nas famílias verdadeiramente espíritas. Os novos horizontes que abre o Espiritismo fazem ver as coisas de outra maneira. Sendo o seu objetivo o progresso moral da Humanidade, ele forçosamente deverá iluminar o grave problema da educação moral, primeira fonte da moralização das massas. Um dia compreender-se-á que este ramo da educação tem seus princípios, suas regras, como a educação intelectual, numa palavra, que é uma verdadeira ciência. Talvez um dia, também, será imposta a toda mãe de família a obrigação de possuir esses conhecimentos, como se impõe ao advogado a de conhecer o Direito.


Fevereiro NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

Fevereiro


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Um dos nossos correspondentes, o Dr. C…, nos indica este opúsculo e escreve o que se segue:

“Desde algum tempo, palavras que, como cristão e espírita, eu me abstenho de qualificar, têm sido pronunciadas muitas vezes por homens que receberam a missão de falar aos povos sobre caridade e misericórdia. Permiti-me, para suavizar as penosas impressões que elas vos devem ter causado, como a todo homem verdadeiramente cristão, que vos fale de um livrinho do Rev. padre Blot [François-René Blot]. Não penso que seja espírita, mas encontrei em sua obra o que, no Espiritismo, faz amar a Deus e esperar em sua misericórdia, além de diversas passagens que tocam muito de perto o que ensinam os Espíritos.”

Nele destacamos as passagens seguintes, que confirmam a opinião do nosso correspondente:

“No sétimo século, o Papa São Gregório, o Grande, depois de haver contado que um religioso vira, ao morrer, os profetas vindo à sua frente, inclusive designando seus nomes, acrescentou: “Este exemplo nos faz compreender claramente quão grande será o conhecimento que teremos uns dos outros na vida incorruptível do céu, pois esse religioso, mesmo numa carne corruptível, reconheceu os santos profetas, que jamais tinha visto.”

“Os santos se veem reciprocamente, como o exigem a unidade do reino e a unidade da cidade onde vivem, em companhia do próprio Deus. Revelam espontaneamente uns aos outros os seus pensamentos e afeições, como as pessoas de uma mesma casa, unidas por sincero amor. Entre os seus concidadãos do céu, conhecem até os que não conheceram na Terra, e o conhecimento das belas ações os leva a um conhecimento mais completo daqueles que as realizaram (Berti, De theologicis disciplinis). [De Theologicis Disciplinis Accurata Synopsis: Continens … — Google Books.]

“Perdestes um filho, uma filha? recebei os consolos que um patriarca de Constantinopla dirigia a um pai desolado. Esse patriarca não pode mais ser contado entre os grandes homens, nem entre os santos: é Fócio, o autor do cisma cruel que separa o Oriente e o Ocidente, mas suas palavras apenas provam que, sobre este ponto, os gregos pensam como os latinos. Ei-las: Se vossa filha vos aparecesse; se, pondo as suas mãos nas vossas e sua fronte jovial em vossa fronte, ela vos falasse, não faria a descrição do céu? Depois acrescentaria: Por que vos afligir, ó meu pai? estou no paraíso, onde a felicidade não tem limites. Vireis um dia com minha mãe bem-amada e então constatareis que eu não disse demais deste lugar de delícias, pois a realidade está além de minhas palavras.”

Os bons Espíritos podem, pois, manifestar-se, ser vistos, tocar os vivos, falar com eles, descrever sua própria situação, vir consolar e fortificar os que amaram. Se podem falar e tomar a mão, por que não poderiam escrever? “Os gregos — diz o padre Blot — sobre este ponto pensam como os latinos.” Por que, então, hoje os latinos dizem que esse poder só é dado aos demônios para enganar os homens? A passagem seguinte é ainda mais explicita:

“São João Crisóstomo, numa de suas homilias sobre São Mateus, dizia a cada um de seus ouvintes: Desejais ver aquele que a morte vos levou? Levai a mesma vida que ele no caminho da virtude e em breve gozareis esta santa visão. Mas quereis vê-lo aqui mesmo? Oh! quem vo-lo impede? Isto vos é permitido e é fácil vê-lo, se fordes ajuizados; porque a esperança dos bens futuros é mais clara que a própria vista.”

O homem carnal não pode ver o que é puramente espiritual. Se, pois, pode ver os Espíritos, é que eles têm uma parte material, acessível aos seus sentidos; é o envoltório fluídico, que o Espiritismo designa sob o nome de perispírito.

Após uma citação de Dante sobre o estado dos bem-aventurados, o padre Blot acrescenta:

“Eis, pois, o princípio de solução para as objeções: No céu, que é menos um lugar que um estado, tudo é luz, tudo é amor.” Assim, o céu não é um lugar circunscrito; é o estado das almas ditosas; por toda a parte onde forem felizes, estarão no céu, isto é, para elas tudo é luz, amor e inteligência. É o que dizem os Espíritos.

Fénelon, quando da morte do Duque de Beauvilliers, seu amigo, escreveu à duquesa: “Não, só os sentidos e a imaginação perderam o objetivo. Aquele que não podemos mais ver está, mais que nunca, conosco. Encontramo-lo sem cessar em nosso centro comum. Ele aí nos vê e nos proporciona verdadeiros socorros. Aí conhece melhor que nós as nossas enfermidades, ele que não mais tem as suas; e pede os remédios necessários à nossa cura. Para mim, que estava privado de o ver há tantos anos, eu lhe falo, eu lhe abro o meu coração.”

Fénelon ainda escrevia à viúva do Duque de Chevreuse: “Unamo-nos de coração àquele a quem lamentamos; ele não se afastou de nós ao se tornar invisível; ele nos vê, nos ama, é tocado por nossas necessidades. Chegado felizmente ao porto, ora por nós que ainda estamos expostos ao naufrágio. Diz-nos com uma voz secreta: “Apressai-vos ao nosso encontro. Os Espíritos puros veem, ouvem, amam sempre os verdadeiros amigos no seu centro comum. Sua amizade é imortal como sua fonte. Os incrédulos só amam a si mesmos; deveriam desesperar-se de perder os amigos para sempre; mas a amizade divina muda a sociedade visível numa sociedade de pura fé; ela chora, mas chorando, consola-se pela esperança de juntar-se a seus amigos no país da verdade e no seio do próprio amor.”

Para justificar o título de seu livro: Reconhecemo-nos no céu, o padre Blot cita grande número de passagens de escritores sacros, de aparições e de manifestações diversas, que provam a reunião, depois da morte, daqueles que se amaram, as relações existentes entre os mortos e os vivos, os auxílios que prestam mutuamente pela prece e pela inspiração. Em parte alguma fala da separação eterna, consequência da danação eterna, nem dos diabos, nem do inferno; ao contrário, mostra as almas mais sofredoras libertadas pela virtude do arrependimento e da prece, e pela misericórdia de Deus. Se o padre Blot lançasse anátema contra o Espiritismo, seria lançá-lo contra o seu próprio livro e contra todos os santos, cujo testemunho invoca. Sejam quais forem suas opiniões a esse respeito, diremos que se não o tivessem pregado senão nesse sentido, haveria menos incrédulos.




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