Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865

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Capítulo XI

Fevereiro - Perguntas e problemas

Fevereiro
Perguntas e problemas

OBRAS-PRIMAS POR VIA MEDIÚNICA

Por que os Espíritos dos grandes gênios que brilharam na Terra não produzem obras-primas por via mediúnica, como fizeram em vida, considerando-se que sua inteligência nada perdeu?

Esta pergunta é, ao mesmo tempo, uma daquelas cuja solução interessa à ciência espírita, como assunto de estudo, e uma objeção oposta por certos negadores à realidade das manifestações. “Essas obras superiores, dizem estes últimos, seriam uma prova de identidade própria para convencer os mais recalcitrantes, ao passo que os produtos mediúnicos assinados pelos mais ilustres nomes quase não se elevam acima da vulgaridade. Até agora não se cita nenhuma obra capital que possa aproximar-se das dos grandes literatos e dos grandes artistas. “Quando eu vir, acrescentam alguns, o Espírito de Homero dar uma nova Ilíada, o de Virgílio uma nova Eneida, o de Corneille um novo Cid, o de Beethoven uma nova sinfonia em la ou um sábio, como Laplace, resolver um desses problemas inutilmente procurados, como a quadratura do círculo, por exemplo, então poderei crer na realidade dos Espíritos. Mas como quereis que neles creia, quando vejo dar seriamente, sob o nome de Racine, poesias que um aluno de quarto ano corrigiria; atribuir a Béranger versos que não passam de finais mal rimados, sem espírito e sem sal, ou emprestar a Voltaire e Chateaubriand uma linguagem de cozinheira?”

Há nesta objeção um lado sério, é o que contém a última parte, mas que não denota menos a ignorância dos primeiros princípios do Espiritismo. Se os que a fazem não julgassem antes de havê-lo estudado, poupar-se-iam de uma tarefa inútil.

Como se sabe, a identidade dos Espíritos é uma das grandes dificuldades do Espiritismo prático. Ela não pode ser constatada de maneira positiva senão para os Espíritos contemporâneos, cujo caráter e hábitos são conhecidos. Então eles se revelam por uma porção de particularidades, nos fatos e na linguagem, que não podem deixar qualquer dúvida. São esses cuja identidade nos interessa mais, pelos laços que a eles nos unem.

Muitas vezes um sinal, uma palavra é bastante para atestar a sua presença, e essas particularidades são tanto mais significativas quanto mais similitude há na série de conversas familiares que se tem com os Espíritos. Além disto, há que considerar que quanto mais os Espíritos estiverem próximos de nós, pela época de sua morte terrestre, menos estarão despojados do caráter, dos hábitos e das ideias pessoais que no-los tornam conhecidos.

Já é diferente com os Espíritos que, de certo modo, só são conhecidos através da História. Para esses não existe qualquer prova material de identidade; pode haver presunção, mas não certeza absoluta da personalidade. Quanto mais afastados de nós estiverem os Espíritos pela época em que viveram, menor essa certeza, visto que suas ideias e seu caráter podem ter-se modificado com o tempo. Em segundo lugar, os que atingiram uma certa elevação formam famílias similares pelo pensamento e pelo grau de adiantamento, cujos membros todos estão longe de ser nossos conhecidos. Se um deles se manifestar, fá-lo-á sob um nome nosso conhecido, como indício de sua categoria. Se, por exemplo, Platão for evocado, pode ser que ele responda ao apelo, mas se ele não puder, um Espírito da mesma classe responderá por ele. Será o seu pensamento, mas não a sua individualidade. Eis o de que importa bem compenetrar-se.

Aliás, os Espíritos superiores vêm para nos instruir. Sua identidade absoluta é questão secundária. O que eles dizem é bom ou mau, racional ou ilógico, digno ou indigno da assinatura, eis toda a questão. No primeiro caso, aceita-se; no segundo, rejeita-se como apócrifa.

Aqui se apresenta o grande escolho da intromissão dos Espíritos levianos ou ignorantes, que se enfeitam com grandes nomes para fazerem aceitar suas tolices e utopias. Nesse caso, a distinção exige tato, observação e, quase sempre, conhecimentos especiais. Para julgar uma coisa é preciso ter competência. Como aquele que não é versado em literatura e poesia pode apreciar as qualidades e os defeitos das comunicações desse gênero? A ignorância, neste caso, por vezes leva a tomar como belezas sublimes a ênfase, os floreios de linguagem, as palavras sonoras que escondem o vazio das ideias; não pode identificar-se como o gênio particular do escritor, para julgar o que pode e o que não pode ser dele. Assim, muitas vezes veem-se médiuns que se orgulham de receber versos com a assinatura de Racine 5oltaire ou Béranger não sentirem dificuldade em considerá-los autênticos, por mais detestáveis que sejam. Felizes ainda aqueles que não se zangam com as pessoas que se permitem pô-los em dúvida.

Consideramos, pois, perfeitamente justa a crítica que se opõe a semelhantes coisas, porque ela está em concordância com nossa opinião. O erro não está no Espiritismo, mas nos que aceitam mui facilmente o que vem dos Espíritos. Se aqueles que transformam isto em arma contra a doutrina a tivessem estudado, saberiam o que ela admite e não lhe imputariam o que ela recusa, nem os exageros de uma credulidade cega e irrefletida. O erro é ainda maior quando se publicam, sob nomes conhecidos, coisas indignas da origem que lhes é atribuída. É oferecer o flanco à crítica fundada e prejudicar o Espiritismo. É necessário que se saiba que o Espiritismo racional absolutamente não patrocina essas produções, e não assume a responsabilidade pelas publicações feitas com mais entusiasmo do que prudência.

A incerteza quanto à identidade dos Espíritos, em certos casos, e a frequência da intromissão dos Espíritos levianos provam algo contra a realidade das manifestações? De modo algum, porque o fato das manifestações é tão bem provado pelos Espíritos inferiores quanto pelos superiores. A abundância dos primeiros prova a inferioridade moral do nosso globo, e a necessidade de trabalhar pela nossa melhora, para dela sairmos o mais cedo possível.

Resta, agora, a questão principal: Por que os Espíritos dos homens de gênio não produzem obras-primas pela via mediúnica?

Antes de tudo, é preciso ver a utilidade das coisas. Para que serviria isto? Dirão que para convencer os incrédulos. Mas, quando os vemos resistirem à mais palpável evidência, uma obra-prima não lhes provaria melhor a existência dos Espíritos, porque eles a atribuiriam, como todas as produções mediúnicas, à superexcitação cerebral. Um Espírito familiar, um pai, uma mãe, um filho, um amigo, que vêm revelar circunstâncias desconhecidas do médium; que vêm dizer essas palavras que vão ao coração, provam muito mais que uma obra-prima, que poderia sair do próprio cérebro. Um pai, cujo filho que chora vem atestar a sua presença e a sua afeição, não fica mais convencido do que se Homero viesse fazer uma nova Ilíada, ou Racine uma nova Fedra? Por que, então, lhes pedir prodígios de força que mais espantariam do que convenceriam, quando eles se revelam por milhares de fatos íntimos ao alcance de todos? Os Espíritos buscam convencer as massas, e não este ou aquele indivíduo, porque a opinião das massas faz lei, ao passo que os indivíduos são unidades perdidas na multidão. Eis por que eles dão pouco valor aos obstinados que querem levá-los à força. Eles sabem muito bem que mais cedo ou mais tarde terão de curvar-se ante a força da opinião. Os Espíritos não se submetem aos caprichos de ninguém. Para convencer empregam os meios que querem, conforme os indivíduos e as circunstâncias. Tanto pior para os que não se contentam com isto; sua vez chegará mais tarde. Eis por que também dizemos aos adeptos: Ligai-vos aos homens de boafé, porque não falhareis, mas não percais o vosso tempo com os cegos que não querem ver, e os surdos que não querem ouvir. Agir assim é faltar à caridade? Não, pois para estes será apenas um retardamento. Enquanto perdeis tempo com eles, negligenciais dar consolações a uma porção de gente necessitada e que aceitaria com alegria o pão da vida que lhes oferecêsseis. Pensai, ainda, que os refratários, que resistem às vossas palavras e às provas que lhes dais, cederão um dia sob o ascendente da opinião que se formará em volta deles. Seu amor-próprio sofrerá menos com isto.

A questão das obras-primas liga-se ainda ao princípio que rege as relações dos encarnados com os desencarnados. Sua solução depende do conhecimento deste princípio. Eis as respostas dadas a respeito na Sociedade Espírita de Paris.

(6 de janeiro de 1865 – Médium Sr. d’Ambel)

Há médiuns que, por suas aquisições anteriores, por seus estudos particulares, na existência que hoje percorrem, tornaram-se mais aptos, senão mais úteis que outros. Aqui a questão moral nada tem a ver: é uma simples questão de capacidade intelectual. Mas não se deve ignorar que a maior parte desses médiuns não são pródigos e que se recebem da parte dos Espíritos comunicações de uma ordem elevada, só a eles são proveitosas. Mais de uma obra-prima da literatura e das artes é produto de uma mediunidade inconsciente. Sem isto, de onde viria a inspiração? Afirmai ousadamente que as comunicações recebidas por Delphine de Girardin, Auguste Vaquerie e outros estavam à altura do que se tinha o direito de esperar dos Espíritos que se comunicavam por eles. Nessas ocasiões, infelizmente muito raras em Espiritismo, as almas dos que queriam comunicar-se tinham à mão bons, excelentes instrumentos, ou antes, médiuns cuja capacidade cerebral fornecia todos os elementos de palavras e de pensamentos necessários à manifestação dos Espíritos inspiradores. Ora, na maior parte das circunstâncias em que os Espíritos se comunicam, os grandes Espíritos, bem entendido, estão longe de ter sob a mão os elementos suficientes para a emissão de seu pensamento na forma, com a fórmula que eles lhe teriam dado em vida. É isso um motivo para não receber suas instruções? Certamente não, porque se algumas vezes a forma deixa a desejar, o fundo é sempre digno do signatário das comunicações. Além disso, são querelas de palavras. Existe ou não existe a comunicação? Tudo está nisto. Se existe, que importa o Espírito e o nome que este toma! Se não se acredita, importa ainda menos com ela se preocupar. Os Espíritos tratam de convencer; quando não o conseguem, é um inconveniente sem importância; é apenas porque o encarnado ainda não está pronto para ser convencido. Contudo, estou bem à vontade para afirmar aqui que em cem indivíduos de boa-fé que experimentam por si mesmos ou por médiuns que lhes são estranhos, mais de dois terços se tornam partidários sinceros da Doutrina Espírita, porque nesses períodos excepcionais, a ação dos Espíritos não se circunscreve ao ato do médium apenas, mas se manifesta por mil facetas materiais ou espirituais sobre o próprio evocador.

Em suma, nada é absoluto e sempre chegará uma hora mais fecunda, mais produtiva que a hora precedente. Eis em duas palavras minha resposta à pergunta feita por vosso presidente.

ERASTO


(20 de janeiro de 1865 – Médium Srta. M. C.)

Perguntais por que os Espíritos que na Terra brilharam pelo gênio, não dão aos médiuns comunicações à altura de suas produções terrenas, quando deveriam antes as dar superiores, pois o tempo decorrido desde sua morte deve ter aumentado as suas faculdades. Eis a razão:

Para se fazer ouvir, os Espíritos devem agir sobre os instrumentos que estejam ao nível de sua ressonância fluídica. Que pode fazer um bom músico com um instrumento detestável? Nada. Então! Muitos, senão a maioria dos médiuns, são para nós instrumentos muito imperfeitos. Compreendei que em tudo é necessário similitude, tanto nos fluidos espirituais quanto nos fluidos materiais. Para que os Espíritos adiantados possam se vos manifestar, necessitam de médiuns capazes de vibrar com eles em uníssono; do mesmo modo, para as manifestações físicas, é preciso que os encarnados possuam fluidos materiais da mesma natureza que os dos Espíritos errantes, tendo ainda ação sobre a matéria.

Assim, Galileu não poderá manifestar-se realmente senão a um astrônomo capaz de compreendê-lo e transmitir sem erro os seus dados astronômicos; Alfred de Musset e outros poetas terão necessidade de um médium amante e entendedor da poesia; Beethoven, Mozart procurarão músicos dignos de poder transcrever seus pensamentos musicais; os Espíritos instrutores que vos desvendam os segredos da

Natureza, segredos pouco conhecidos ou ainda ignorados, precisam de médiuns que já compreendam certos efeitos magnéticos e que tenham estudado bem a mediunidade.

Compreendei isto, meus amigos; refleti que não encomendais uma roupa ao chapeleiro, nem vossas cabeleiras a um alfaiate. Deveis compreender que necessitamos de bons intérpretes e que alguns de nós, por não encontrar esses intérpretes, se recusem à comunicação. Mas então o lugar é ocupado. Não esqueçais que os Espíritos levianos são um grande número, e que eles se aproveitam das vossas faculdades com tanto mais facilidade quanto muitos dentre vós, envaidecidos pelas assinaturas notáveis, pouco preocupados em se informarem sobre a fonte verdadeira e confrontar o que obtêm com o que deveriam ter obtido. Regra geral: quando quiserdes um calculador, não vos dirijais a um dançarino.

UM ESPÍRITO PROTETOR

OBSERVAÇÃO: Esta comunicação repousa num princípio verdadeiro, que resolve perfeitamente a questão, do ponto de vista científico, mas que não poderia ser tomado num sentido muito absoluto. À primeira vista, o princípio parece contradizer os fatos tão numerosos de médiuns que tratam de assuntos fora de seus conhecimentos e pareceria implicar, para os Espíritos superiores, a possibilidade de só se comunicarem com médiuns à sua altura. Ora, isto só se deve entender quando se trata de trabalhos especiais e de uma importância muito alta. Concebe-se que se Galileu quiser tratar de uma questão científica; se um grande poeta quiser ditar uma obra poética, tenham necessidade de um instrumento que responda ao seu pensamento, mas isto não quer dizer que para outras coisas, uma simples questão de moral, por exemplo, um bom conselho a dar, não poderão fazê-lo por um médium que não seja cientista nem poeta. Quando um médium trata com facilidade e superioridade assuntos que lhe são estranhos, é um indício de que o seu Espírito possui um desenvolvimento inato e faculdades latentes, fora da educação que recebeu.



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