Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865
Versão para cópiaCapítulo LXXXIX
Dezembro - Os romances espíritas
Dezembro
Os romances espíritas
Por Théophile Gautier - A dupla vista por Éllie Berthet
Quem diz romance, diz obra de imaginação. A própria essência do romance é representar um assunto fictício, quanto aos fatos e personagens. Mas, mesmo nesse gênero de produções, há regras de que o bom-senso não permite afastar-se e que, aliadas às qualidades do estilo, constituem o seu mérito. Se os detalhes não forem verdadeiros em si mesmos, ao menos devem ser verossímeis e de perfeito acordo com o meio onde se passa a ação.
Nos romances históricos, por exemplo, é de rigor a manutenção estrita da cor local, e há anacronismos que não seriam toleráveis. O leitor deve poder transportarse pelo pensamento para o tempo e para os lugares de que se fala e deles fazer uma ideia justa. Aí estava o grande talento de Walter Scott. Lendo-o, encontramo-nos em plena 1dade Média. Se ele tivesse atribuído os fatos e gestos de Francisco I a Luís XI, ou mesmo se tivesse feito este e os personagens de sua corte falarem como no tempo da Renascença, o mais belo estilo não poderia tê-lo absolvido de tais erros.
Dá-se o mesmo nos romances de costumes. Seu mérito está na verdade dos quadros, porque seria extremamente ridículo emprestar a um súdito espanhol os hábitos e o caráter dos ingleses.
Para começar, o romance parece ser o gênero mais fácil. Consideramo-lo mais difícil que a História, apesar de ser menos sério. O historiador tem o seu quadro traçado pelos fatos, dos quais não pode afastar-se uma linha; o romancista deve tudo criar; mas muitos pensam que basta um pouco de imaginação e de estilo para fazer um bom romance. É um grave erro: é necessária muita erudição. Para fazer a sua Nossa Senhora de Paris, Victor Hugo devia conhecer sua velha Paris arqueológica tão bem quanto a sua Paris moderna.
Podem fazer-se romances sobre o Espiritismo, como sobre todas as coisas. Dizemos até que quando for conhecido e compreendido em sua essência, ele fornecerá às letras e às artes fontes inesgotáveis de deslumbrante poesia. Mas não seria certamente para os que só o vissem nas mesas girantes, nas cordas dos irmãos Davenport ou nas artes dos charlatães. Como nos romances históricos ou de costumes, é indispensável conhecer a fundo a talagarça sobre a qual se quer bordar, a fim de não produzir contra-sensos, que seriam outras tantas provas de ignorância. Assim se dá com o músico que faz variações sobre um tema que se deve sempre reconhecer através das adições da fantasia. Aquele, pois, que não estudou a fundo o Espiritismo em seu espírito, em suas tendências, em suas máximas, tão bem quanto em suas formas materiais, também é tão inapto para fazer um romance espírita de algum valor, quanto teria sido Lesage para fazer Gil Blas, se não tivesse conhecido a história e os costumes da Espanha.
Para isto é, pois, necessário ser espírita crente e fervoroso? Absolutamente não. Basta ser verídico, e não se pode sê-lo sem conhecimento de causa. Para fazer um romance árabe, certamente não é necessário ser muçulmano, mas é indispensável conhecer bastante a religião muçulmana, seu caráter, seus dogmas e suas práticas, bem como os costumes daí decorrentes, para não fazer os africanos falarem como cavaleiros franceses. Mas há aqueles que acham que é suficiente, para dar o cunho da raça, prodigalizar a torto e a direito os Allah! os nomes de Fátima e de Zulema, pois é quase tudo o que eles sabem do Islamismo. Numa palavra, se não é preciso ser muçulmano, é preciso impregnar-se do espírito muçulmano, como para fazer uma obra espírita, mesmo fantástica, é necessário impregnar-se do espírito do Espiritismo. Enfim, é preciso que, lendo um romance espírita, os espíritas possam reconhecer-se, como os árabes deverão reconhecer-se num romance árabe e poderem dizer: é isto; mas nem uns nem outros reconhecer-se-ão se eles forem deturpados, e o autor terá feito uma obra informe, como se um pintor pintasse damas francesas em trajes chineses.
Essas reflexões nos são sugeridas a propósito do romance-folhetim que neste momento o Sr. Théophile Gautier publica no grande Moniteur, com o título de Espírita. Não temos a honra de conhecer pessoalmente o autor e não sabemos quais são as suas convicções ou seus conhecimentos acerca do Espiritismo. Sua obra, que está no começo, ainda não permite ver a conclusão. Diremos apenas que se ele não encarasse o seu assunto senão de um só ponto de vista, o das manifestações, desprezando o lado filosófico e moral da Doutrina, não responderia à ideia geral e complexa que o seu título abarca, embora o nome Espírita seja o de um de seus personagens. Se os fatos que ele imagina, pela necessidade da ação, não se encerrassem nos limites traçados pela experiência; se os apresentasse como se passando em condições admissíveis, sua obra falsearia a verdade e faria supor que os espíritas creem nas maravilhas dos contos das Mil e Uma Noites. Se ele atribuísse aos espíritas práticas e crenças que estes desautorizam, ela não seria imparcial e, sob tal ponto de vista, não seria uma obra literária séria.
A Doutrina Espírita não é secreta como a da maçonaria. Não tem mistérios para ninguém e se mostra à luz da publicidade. Não é mística nem abstrata nem ambígua, mas clara e ao alcance de todos; nada tendo de alegórico, não pode dar lugar a equívocos nem a falsas interpretações; diz claramente o que admite e o que não admite. Os fenômenos cuja possibilidade reconhece, não são sobrenaturais nem maravilhosos, mas fundados nas leis da Natureza, de sorte que ela não faz milagres nem prodígios. Aquele, pois, que não a conhece, ou que se engana quanto às suas tendências, é porque não se quer dar ao trabalho de conhecê-la. Essa clareza e essa vulgarização dos princípios espíritas, que contam com adeptos em todos os países e em todas as camadas sociais, são a mais peremptória refutação às diatribes de seus adversários, porque não há uma só de suas alegações erradas que não encontre uma resposta categórica. O Espiritismo, portanto, não pode senão ganhar em ser conhecido, e é no que trabalham, sem querer, os que julgam arruiná-lo por ataques desprovidos de qualquer argumento sério. Os desvios da conveniência na linguagem produzem efeito absolutamente contrário ao que se propõem. O público os analisa e não é favorável aos que a tal se permitem. Quanto mais violenta a agressão, tanto mais gente é levada a buscar a verdade, até mesmo nas fileiras da literatura hostil. A calma dos espíritas diante desse levante; o sangue-frio e a dignidade que conservaram em suas respostas, fazem com a acrimônia dos antagonistas um contraste que choca até os indiferentes, e lançaram a incerteza nas fileiras opostas, que hoje registram mais de uma deserção.
O romance espírita pode ser considerado como uma transição passageira entre a negação e a afirmação. É preciso coragem real para enfrentar e desafiar o ridículo que se liga às ideias novas, mas essa coragem vem com a convicção. Mas tarde ─ estamos convencido ─ das camadas dos nossos adversários da imprensa sairão campeões sérios da doutrina.
Quando as tendências da obra do Sr. Théophile Gautier estiverem melhor desenhadas, nós faremos a nossa apreciação do ponto de vista da verdade espírita.
As reflexões acima naturalmente se aplicam às obras do mesmo gênero sobre o magnetismo e o sonambulismo. Ultimamente a dupla vista forneceu ao Sr. Élie Berthet assunto para um romance muito interessante publicado pelo Siècle, e que, ao talento do escritor, alia o mérito da exatidão. Incontestavelmente, o autor deve ter feito um estudo sério dessa faculdade. Para descrevê-la como o faz, é preciso ter visto e observado bem. Contudo, poder-se-ia censurar-lhe um pouco de exagero na extensão que lhe dá, em certos casos. Outro erro, em nossa opinião, é o de apresentá-la como uma doença. Ora, uma faculdade natural, seja qual for, pode coincidir com um estado patológico, mas, por si mesma, não é uma doença, e a prova é que uma porção de pessoas dotadas da dupla vista no mais alto grau, gozam de perfeita saúde. A heroína é aqui uma jovem tuberculosa e cataléptica: eis o seu verdadeiro mal. A faculdade de que ela goza causou infelicidades pelos enganos que se seguiram, razão pela qual ela deplora o dom funesto que recebeu. Mas esse dom só foi funesto por ignorância, inexperiência e imprudência dos que dele se serviram incorretamente. Deste ponto de vista, não há uma só de nossas faculdades que não possa tornar-se um presente funesto, pelo mau uso ou falsas aplicações que dela possam ser feitas.
Feitas estas reservas, diremos que o fenômeno é perfeitamente descrito. Ele descreve judiciosamente essa visão da alma desprendida que não conhece distâncias, que penetra a matéria como um raio de luz penetra os corpos transparentes, e que é a prova patente e visível da existência e da independência do princípio espiritual; judiciosamente descreve também o quadro da estranha transfiguração que se opera no êxtase, dessa prodigiosa lucidez que confunde por sua precisão em certos casos, e que desconcerta pelas ilusões que às vezes produz. Para os personagens do drama, é o quadro mais verdadeiro dos sentimentos que agitam os crentes, os incrédulos, os incertos e os espantados. Há aí um médico que flutua entre o ceticismo e a crença mas, como homem de bom-senso, ele não acredita que a Ciência tenha dito a última palavra. Ele observa, estuda e constata os fatos. Sua conduta durante as crises da moça atesta a sua prudência. Há também o desânimo dos exploradores, que aí são justamente fustigados.
O autor teria feito obra incompleta, se tivesse negligenciado o lado moral da questão. Seu objetivo não é açular a curiosidade com fatos extraordinários, mas deduzir-lhes as consequências úteis e práticas. Entre outros, um episódio prova que ele compreendeu perfeitamente esta parte de seu programa.
A jovem vidente descobre num subterrâneo importantes papéis que devem pôr termo a um grave processo de família. Ela descreve minuciosamente os lugares e as circunstâncias. As escavações, feitas conforme suas indicações, provam que ela viu muito bem. Eles encontram os papéis e o processo é anulado. Notemos, de passagem, que ela fez tal descoberta espontaneamente, solicitada pelo interesse que tem pela família, e não por solicitações. A peça principal consistia de uma carta em estilo antigo, da qual ela faz a leitura textual e completa com tanta facilidade quanto se a tivesse sob os olhos. É aí, sobretudo, que sua faculdade nos parece levada ao exagero.
Mais adiante ela vê um outro subterrâneo, onde estão imensos tesouros, cuja origem explica. Para lá chegar há que atravessar outra caverna, cheia de restos humanos, de numerosas vítimas dos tempos do feudalismo. Até aí, nada que não seja provável; o que absolutamente não é provável é que as almas dessas vítimas aí tenham ficado encerradas há séculos e possam erguer-se ameaçadoras ante os que venham perturbar seu sombrio repouso, à cata de um tesouro. Aí está o fantástico. Se fossem os carrascos, nada haveria de surpreendente. Sabemos, por numerosos exemplos, que tal é, muitas vezes, o castigo temporário dos culpados, condenados a ficar no mesmo lugar e em presença de seus crimes, até que, tocados pelo arrependimento, elevem o pensamento a Deus para implorar sua misericórdia. Mas aqui são as vítimas inocentes que seriam punidas, o que não é racional.
O dono do castelo, velho avarento, atraído pela descoberta dos papéis, quer continuar as escavações. Elas são difíceis, perigosas para os operários, mas nada o detém. A vidente lhe suplica em vão que renuncie; prediz que, se ele persistir, virá a desgraça.
─ Além do mais, acrescenta ela, não o conseguireis.
─ Então esses tesouros não existem? pergunta o velho avaro.
─ Existem tais quais os descrevi, eu garanto; mas, ainda uma vez, lá não chegareis.
─ E quem me impedirá?
─ As almas que estão na caverna que é preciso atravessar.
O velho avarento, cético endurecido, admitia a visão extracorpórea da moça, sem compreender muito bem, porque acabara de ter uma prova disso em seu prejuízo, porquanto os papéis encontrados frustraram suas pretensões no processo, mas ele acreditava mais no dinheiro do que nas forças invisíveis.
Ele continua:
─ Com que direito eles se oporão? Esses tesouros me pertencem, porque estão na minha propriedade.
─ Não. Eles serão um dia descobertos sem dificuldade por aquele que deve desfrutá-los; mas não é a vós que estão destinados. Eis por que não o conseguireis. Repito, se persistirdes, virá a desgraça.
Eis o lado essencialmente moral, instrutivo e verdadeiro do relato. Essas palavras parecem tiradas do Livro dos Médiuns, no artigo sobre o concurso dos Espíritos para a descoberta dos tesouros: “Se a Providência destina tesouros ocultos a alguém, este os encontrará naturalmente, do contrário, não.” (Cap. XXVI, nº. 295). Com efeito, não há exemplo de que Espíritos ou sonâmbulos tenham facilitado semelhantes descobertas, assim como a recuperação de heranças, e todos os que, embalados por essa esperança, fizeram semelhantes tentativas, sofreram muito e gastaram um bom dinheiro. Tristes e cruéis decepções esperam os que baseiam a esperança de enriquecimento por semelhantes meios. Os Espíritos não têm por missão favorecer a cupidez e nos proporcionar riqueza sem trabalho, o que não seria justo nem moral. Sem dúvida o sonâmbulo lúcido vê, mas apenas o que lhe é permitido ver, e os Espíritos podem, conforme as circunstâncias, e por ordem superior, obliterar a sua lucidez, ou pôr obstáculos à realização de coisas que não estão nos desígnios da Providência. No caso de que se trata, foi permitido achar os papéis que deviam pôr um termo às dissensões de família; não foi achar tesouros, que não deviam servir senão para satisfazer a cupidez. Eis por que o velho avarento pereceu, vítima de sua obstinação.
As terríveis peripécias do drama imaginado pelo Sr. Élie Berthet não são tão fantásticas quanto se poderia crer. Elas lembram as mais reais, sofridas pelo Sr. Borreau, de Niort, em pesquisas da mesma natureza, e cujo relato comovente se acha em sua brochura Como e por que me tornei espírita. (Vide nosso relato na Revista de dezembro de 1864).
Uma outra instrução, não menos importante, ressalta do livro do Sr. Élie Berthet. A moça viu coisas positivas, e, em outra circunstância grave, ela se engana, atribuindo um crime a uma pessoa inocente. Que consequência daí tira o autor? A negação da faculdade? Não, pois que, ao lado disto, ele a prova; mas esta conclusão, justificada pela experiência, demonstra que a mais comprovada lucidez não é infalível e que nela não se poderia confiar de maneira absoluta, sem controle. A visão, pela alma, de coisas que o corpo não pode ver, prova a existência da alma. Já é um resultado muito importante. Mas ela não é dada para a satisfação das paixões humanas.
Por que, então, a alma, em seu estado de emancipação, não vê sempre claramente? É que, sendo o homem ainda imperfeito, sua alma não pode gozar das prerrogativas da perfeição. Embora isolada, ela participa das influências materiais, até sua completa depuração. Assim é com as almas desencarnadas ou Espíritos e, com mais forte razão, com as que ainda estão ligadas à vida corporal. Eis o que o Espiritismo ensina aos que se dão ao trabalho de estudá-lo.
Nos romances históricos, por exemplo, é de rigor a manutenção estrita da cor local, e há anacronismos que não seriam toleráveis. O leitor deve poder transportarse pelo pensamento para o tempo e para os lugares de que se fala e deles fazer uma ideia justa. Aí estava o grande talento de Walter Scott. Lendo-o, encontramo-nos em plena 1dade Média. Se ele tivesse atribuído os fatos e gestos de Francisco I a Luís XI, ou mesmo se tivesse feito este e os personagens de sua corte falarem como no tempo da Renascença, o mais belo estilo não poderia tê-lo absolvido de tais erros.
Dá-se o mesmo nos romances de costumes. Seu mérito está na verdade dos quadros, porque seria extremamente ridículo emprestar a um súdito espanhol os hábitos e o caráter dos ingleses.
Para começar, o romance parece ser o gênero mais fácil. Consideramo-lo mais difícil que a História, apesar de ser menos sério. O historiador tem o seu quadro traçado pelos fatos, dos quais não pode afastar-se uma linha; o romancista deve tudo criar; mas muitos pensam que basta um pouco de imaginação e de estilo para fazer um bom romance. É um grave erro: é necessária muita erudição. Para fazer a sua Nossa Senhora de Paris, Victor Hugo devia conhecer sua velha Paris arqueológica tão bem quanto a sua Paris moderna.
Podem fazer-se romances sobre o Espiritismo, como sobre todas as coisas. Dizemos até que quando for conhecido e compreendido em sua essência, ele fornecerá às letras e às artes fontes inesgotáveis de deslumbrante poesia. Mas não seria certamente para os que só o vissem nas mesas girantes, nas cordas dos irmãos Davenport ou nas artes dos charlatães. Como nos romances históricos ou de costumes, é indispensável conhecer a fundo a talagarça sobre a qual se quer bordar, a fim de não produzir contra-sensos, que seriam outras tantas provas de ignorância. Assim se dá com o músico que faz variações sobre um tema que se deve sempre reconhecer através das adições da fantasia. Aquele, pois, que não estudou a fundo o Espiritismo em seu espírito, em suas tendências, em suas máximas, tão bem quanto em suas formas materiais, também é tão inapto para fazer um romance espírita de algum valor, quanto teria sido Lesage para fazer Gil Blas, se não tivesse conhecido a história e os costumes da Espanha.
Para isto é, pois, necessário ser espírita crente e fervoroso? Absolutamente não. Basta ser verídico, e não se pode sê-lo sem conhecimento de causa. Para fazer um romance árabe, certamente não é necessário ser muçulmano, mas é indispensável conhecer bastante a religião muçulmana, seu caráter, seus dogmas e suas práticas, bem como os costumes daí decorrentes, para não fazer os africanos falarem como cavaleiros franceses. Mas há aqueles que acham que é suficiente, para dar o cunho da raça, prodigalizar a torto e a direito os Allah! os nomes de Fátima e de Zulema, pois é quase tudo o que eles sabem do Islamismo. Numa palavra, se não é preciso ser muçulmano, é preciso impregnar-se do espírito muçulmano, como para fazer uma obra espírita, mesmo fantástica, é necessário impregnar-se do espírito do Espiritismo. Enfim, é preciso que, lendo um romance espírita, os espíritas possam reconhecer-se, como os árabes deverão reconhecer-se num romance árabe e poderem dizer: é isto; mas nem uns nem outros reconhecer-se-ão se eles forem deturpados, e o autor terá feito uma obra informe, como se um pintor pintasse damas francesas em trajes chineses.
Essas reflexões nos são sugeridas a propósito do romance-folhetim que neste momento o Sr. Théophile Gautier publica no grande Moniteur, com o título de Espírita. Não temos a honra de conhecer pessoalmente o autor e não sabemos quais são as suas convicções ou seus conhecimentos acerca do Espiritismo. Sua obra, que está no começo, ainda não permite ver a conclusão. Diremos apenas que se ele não encarasse o seu assunto senão de um só ponto de vista, o das manifestações, desprezando o lado filosófico e moral da Doutrina, não responderia à ideia geral e complexa que o seu título abarca, embora o nome Espírita seja o de um de seus personagens. Se os fatos que ele imagina, pela necessidade da ação, não se encerrassem nos limites traçados pela experiência; se os apresentasse como se passando em condições admissíveis, sua obra falsearia a verdade e faria supor que os espíritas creem nas maravilhas dos contos das Mil e Uma Noites. Se ele atribuísse aos espíritas práticas e crenças que estes desautorizam, ela não seria imparcial e, sob tal ponto de vista, não seria uma obra literária séria.
A Doutrina Espírita não é secreta como a da maçonaria. Não tem mistérios para ninguém e se mostra à luz da publicidade. Não é mística nem abstrata nem ambígua, mas clara e ao alcance de todos; nada tendo de alegórico, não pode dar lugar a equívocos nem a falsas interpretações; diz claramente o que admite e o que não admite. Os fenômenos cuja possibilidade reconhece, não são sobrenaturais nem maravilhosos, mas fundados nas leis da Natureza, de sorte que ela não faz milagres nem prodígios. Aquele, pois, que não a conhece, ou que se engana quanto às suas tendências, é porque não se quer dar ao trabalho de conhecê-la. Essa clareza e essa vulgarização dos princípios espíritas, que contam com adeptos em todos os países e em todas as camadas sociais, são a mais peremptória refutação às diatribes de seus adversários, porque não há uma só de suas alegações erradas que não encontre uma resposta categórica. O Espiritismo, portanto, não pode senão ganhar em ser conhecido, e é no que trabalham, sem querer, os que julgam arruiná-lo por ataques desprovidos de qualquer argumento sério. Os desvios da conveniência na linguagem produzem efeito absolutamente contrário ao que se propõem. O público os analisa e não é favorável aos que a tal se permitem. Quanto mais violenta a agressão, tanto mais gente é levada a buscar a verdade, até mesmo nas fileiras da literatura hostil. A calma dos espíritas diante desse levante; o sangue-frio e a dignidade que conservaram em suas respostas, fazem com a acrimônia dos antagonistas um contraste que choca até os indiferentes, e lançaram a incerteza nas fileiras opostas, que hoje registram mais de uma deserção.
O romance espírita pode ser considerado como uma transição passageira entre a negação e a afirmação. É preciso coragem real para enfrentar e desafiar o ridículo que se liga às ideias novas, mas essa coragem vem com a convicção. Mas tarde ─ estamos convencido ─ das camadas dos nossos adversários da imprensa sairão campeões sérios da doutrina.
Quando as tendências da obra do Sr. Théophile Gautier estiverem melhor desenhadas, nós faremos a nossa apreciação do ponto de vista da verdade espírita.
As reflexões acima naturalmente se aplicam às obras do mesmo gênero sobre o magnetismo e o sonambulismo. Ultimamente a dupla vista forneceu ao Sr. Élie Berthet assunto para um romance muito interessante publicado pelo Siècle, e que, ao talento do escritor, alia o mérito da exatidão. Incontestavelmente, o autor deve ter feito um estudo sério dessa faculdade. Para descrevê-la como o faz, é preciso ter visto e observado bem. Contudo, poder-se-ia censurar-lhe um pouco de exagero na extensão que lhe dá, em certos casos. Outro erro, em nossa opinião, é o de apresentá-la como uma doença. Ora, uma faculdade natural, seja qual for, pode coincidir com um estado patológico, mas, por si mesma, não é uma doença, e a prova é que uma porção de pessoas dotadas da dupla vista no mais alto grau, gozam de perfeita saúde. A heroína é aqui uma jovem tuberculosa e cataléptica: eis o seu verdadeiro mal. A faculdade de que ela goza causou infelicidades pelos enganos que se seguiram, razão pela qual ela deplora o dom funesto que recebeu. Mas esse dom só foi funesto por ignorância, inexperiência e imprudência dos que dele se serviram incorretamente. Deste ponto de vista, não há uma só de nossas faculdades que não possa tornar-se um presente funesto, pelo mau uso ou falsas aplicações que dela possam ser feitas.
Feitas estas reservas, diremos que o fenômeno é perfeitamente descrito. Ele descreve judiciosamente essa visão da alma desprendida que não conhece distâncias, que penetra a matéria como um raio de luz penetra os corpos transparentes, e que é a prova patente e visível da existência e da independência do princípio espiritual; judiciosamente descreve também o quadro da estranha transfiguração que se opera no êxtase, dessa prodigiosa lucidez que confunde por sua precisão em certos casos, e que desconcerta pelas ilusões que às vezes produz. Para os personagens do drama, é o quadro mais verdadeiro dos sentimentos que agitam os crentes, os incrédulos, os incertos e os espantados. Há aí um médico que flutua entre o ceticismo e a crença mas, como homem de bom-senso, ele não acredita que a Ciência tenha dito a última palavra. Ele observa, estuda e constata os fatos. Sua conduta durante as crises da moça atesta a sua prudência. Há também o desânimo dos exploradores, que aí são justamente fustigados.
O autor teria feito obra incompleta, se tivesse negligenciado o lado moral da questão. Seu objetivo não é açular a curiosidade com fatos extraordinários, mas deduzir-lhes as consequências úteis e práticas. Entre outros, um episódio prova que ele compreendeu perfeitamente esta parte de seu programa.
A jovem vidente descobre num subterrâneo importantes papéis que devem pôr termo a um grave processo de família. Ela descreve minuciosamente os lugares e as circunstâncias. As escavações, feitas conforme suas indicações, provam que ela viu muito bem. Eles encontram os papéis e o processo é anulado. Notemos, de passagem, que ela fez tal descoberta espontaneamente, solicitada pelo interesse que tem pela família, e não por solicitações. A peça principal consistia de uma carta em estilo antigo, da qual ela faz a leitura textual e completa com tanta facilidade quanto se a tivesse sob os olhos. É aí, sobretudo, que sua faculdade nos parece levada ao exagero.
Mais adiante ela vê um outro subterrâneo, onde estão imensos tesouros, cuja origem explica. Para lá chegar há que atravessar outra caverna, cheia de restos humanos, de numerosas vítimas dos tempos do feudalismo. Até aí, nada que não seja provável; o que absolutamente não é provável é que as almas dessas vítimas aí tenham ficado encerradas há séculos e possam erguer-se ameaçadoras ante os que venham perturbar seu sombrio repouso, à cata de um tesouro. Aí está o fantástico. Se fossem os carrascos, nada haveria de surpreendente. Sabemos, por numerosos exemplos, que tal é, muitas vezes, o castigo temporário dos culpados, condenados a ficar no mesmo lugar e em presença de seus crimes, até que, tocados pelo arrependimento, elevem o pensamento a Deus para implorar sua misericórdia. Mas aqui são as vítimas inocentes que seriam punidas, o que não é racional.
O dono do castelo, velho avarento, atraído pela descoberta dos papéis, quer continuar as escavações. Elas são difíceis, perigosas para os operários, mas nada o detém. A vidente lhe suplica em vão que renuncie; prediz que, se ele persistir, virá a desgraça.
─ Além do mais, acrescenta ela, não o conseguireis.
─ Então esses tesouros não existem? pergunta o velho avaro.
─ Existem tais quais os descrevi, eu garanto; mas, ainda uma vez, lá não chegareis.
─ E quem me impedirá?
─ As almas que estão na caverna que é preciso atravessar.
O velho avarento, cético endurecido, admitia a visão extracorpórea da moça, sem compreender muito bem, porque acabara de ter uma prova disso em seu prejuízo, porquanto os papéis encontrados frustraram suas pretensões no processo, mas ele acreditava mais no dinheiro do que nas forças invisíveis.
Ele continua:
─ Com que direito eles se oporão? Esses tesouros me pertencem, porque estão na minha propriedade.
─ Não. Eles serão um dia descobertos sem dificuldade por aquele que deve desfrutá-los; mas não é a vós que estão destinados. Eis por que não o conseguireis. Repito, se persistirdes, virá a desgraça.
Eis o lado essencialmente moral, instrutivo e verdadeiro do relato. Essas palavras parecem tiradas do Livro dos Médiuns, no artigo sobre o concurso dos Espíritos para a descoberta dos tesouros: “Se a Providência destina tesouros ocultos a alguém, este os encontrará naturalmente, do contrário, não.” (Cap. XXVI, nº. 295). Com efeito, não há exemplo de que Espíritos ou sonâmbulos tenham facilitado semelhantes descobertas, assim como a recuperação de heranças, e todos os que, embalados por essa esperança, fizeram semelhantes tentativas, sofreram muito e gastaram um bom dinheiro. Tristes e cruéis decepções esperam os que baseiam a esperança de enriquecimento por semelhantes meios. Os Espíritos não têm por missão favorecer a cupidez e nos proporcionar riqueza sem trabalho, o que não seria justo nem moral. Sem dúvida o sonâmbulo lúcido vê, mas apenas o que lhe é permitido ver, e os Espíritos podem, conforme as circunstâncias, e por ordem superior, obliterar a sua lucidez, ou pôr obstáculos à realização de coisas que não estão nos desígnios da Providência. No caso de que se trata, foi permitido achar os papéis que deviam pôr um termo às dissensões de família; não foi achar tesouros, que não deviam servir senão para satisfazer a cupidez. Eis por que o velho avarento pereceu, vítima de sua obstinação.
As terríveis peripécias do drama imaginado pelo Sr. Élie Berthet não são tão fantásticas quanto se poderia crer. Elas lembram as mais reais, sofridas pelo Sr. Borreau, de Niort, em pesquisas da mesma natureza, e cujo relato comovente se acha em sua brochura Como e por que me tornei espírita. (Vide nosso relato na Revista de dezembro de 1864).
Uma outra instrução, não menos importante, ressalta do livro do Sr. Élie Berthet. A moça viu coisas positivas, e, em outra circunstância grave, ela se engana, atribuindo um crime a uma pessoa inocente. Que consequência daí tira o autor? A negação da faculdade? Não, pois que, ao lado disto, ele a prova; mas esta conclusão, justificada pela experiência, demonstra que a mais comprovada lucidez não é infalível e que nela não se poderia confiar de maneira absoluta, sem controle. A visão, pela alma, de coisas que o corpo não pode ver, prova a existência da alma. Já é um resultado muito importante. Mas ela não é dada para a satisfação das paixões humanas.
Por que, então, a alma, em seu estado de emancipação, não vê sempre claramente? É que, sendo o homem ainda imperfeito, sua alma não pode gozar das prerrogativas da perfeição. Embora isolada, ela participa das influências materiais, até sua completa depuração. Assim é com as almas desencarnadas ou Espíritos e, com mais forte razão, com as que ainda estão ligadas à vida corporal. Eis o que o Espiritismo ensina aos que se dão ao trabalho de estudá-lo.
Acima, está sendo listado apenas o item do capítulo 89.
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