Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866

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Capítulo XIV

Fevereiro - Os ratos de Équihen

Fevereiro
Os ratos de Équihen

Um dos nossos assinantes de Boulogne-sur-Mer manda-nos o seguinte, em data de 24 de dezembro de 1865:


“Há alguns dias soube que em Équihen, aldeia de pescadores perto de Boulogne, em casa de um tal L..., fazendeiro muito rico, passavam-se coisas com o caráter de manifestações físicas espontâneas, e que lembram as de Grandes-Ventes, perto de Dieppe, de Poitiers, de Marselha, etc. Todos os dias, pelas sete horas da noite, se ouvem pancadas e muito barulho de objetos rolando no soalho. Um armário fechado à chave se abre de repente e as roupas que ele contém são lançadas no meio do quarto; as camas, sobretudo a da filha da casa, são bruscamente desfeitas por várias vezes.

“Embora a população estivesse longe de se ocupar de Espiritismo, e mesmo de saber o que é isto, pensaram que o autor dessa desordem, cuja causa todas as pesquisas e vigilância muito minuciosa não tinham podido descobrir, bem poderia ser um irmão do tal L..., antigo militar, falecido há dois anos na Argélia. Parece que ele tinha recebido dos parentes a promessa que, se morresse em serviço, mandariam trazer o corpo para Équihen. Essa promessa não foi cumprida, por isso supunham que era o Espírito desse irmão que vinha diariamente, há seis semanas, comover a casa e, em consequência, toda a aldeia.

“O clero abalou-se com os fenômenos. Quatro curas da localidade e dos arredores, depois cinco redentoristas e três ou quatro religiosas vieram e exorcizaram o Espírito, mas inutilmente. Vendo que não conseguiam fazer cessar o barulho, aconselharam o tal L... a partir para a Argélia à procura do corpo de seu irmão, o que ele fez sem delongas. Antes da partida, esses senhores fizeram com que toda a família se confessasse e comungasse; depois disseram que havia necessidade de rezar missas, sobretudo uma missa cantada, depois missas rezadas diariamente. Houve a primeira e os redentoristas foram encarregados das outras. Recomendaram às senhoras L..., expressamente, que abafassem os ruídos e dissessem a quem viesse indagar se a coisa continuava, que todo o barulho era produzido pelos ratos. E acrescentavam que elas deveriam abster-se de divulgar esses rumores, pois isso seria uma grave ofensa a Deus, porque existe uma seita que procura destruir a religião; que se ela soubesse o que se passa, não deixaria de prevalecerse, a fim de prejudicá-la, pelo que a família seria responsável perante Deus; que era uma infelicidade que a coisa já se tivesse espalhado.

A partir desse momento, as portas foram trancadas com barricadas, a entrada do pátio cuidadosamente fechada a chave e a entrada interdita a todos aqueles que vinham todas as noites ouvir o barulho.

Mas, se puseram chave em todas as portas, não puderam trancar todas as línguas, e os ratos agiram tão bem que eram ouvidos num raio de dez léguas. Piadistas disseram ter visto os ratos roendo as roupas íntimas, mas não atirá-las para fora dos quartos, nem abrir portas fechadas a chave. É que, diziam eles, provavelmente são ratos de uma nova espécie, importados por algum navio estrangeiro. Esperamos com impaciência que os mostrem ao público.”

O mesmo fato nos é relatado por dois outros correspondentes.

Disso tudo ressalta uma primeira consideração, é que esses senhores do clero, que eram numerosos e interessados em descobrir uma causa vulgar, não teriam deixado de revelá-la, caso existisse, e sobretudo não teriam prescrito a pequena mentira dos ratos, sob pena de incorrer no desagrado de Deus. Então reconheceram a intervenção de um poder oculto. Mas, por que o exorcismo é sempre impotente em semelhantes casos? Para isto há, de saída, uma primeira razão peremptória: é que o exorcismo se dirige aos demônios; ora, os Espíritos obsessores e batedores não são demônios, mas seres humanos; assim, o exorcismo não os atinge. Em segundo lugar, o exorcismo é um anátema e uma ameaça que irrita o Espírito malfeitor, e não uma instrução capaz de tocá-lo e conduzi-lo ao bem.

Na circunstância presente, aqueles senhores reconheceram que podia ser o Espírito do irmão morto em Argélia, do contrário não teriam aconselhado que fossem buscar o seu corpo, a fim de cumprir a promessa que lhe fora feita; não teriam recomendado missas, que não poderiam ser ditas em favor dos demônios. O que se torna, pois, a doutrina dos que pretendem que somente os demônios se manifestam e que tal poder é negado às almas dos homens? Se um Espírito humano pôde fazê-lo no caso de que se trata, por que não poderia fazê-lo em outros? Por que um Espírito bom e benevolente não se comunicaria por outros meios além da violência, para ser lembrado por aqueles que ele amou e lhes dar sábios conselhos?

É preciso ser consequente consigo mesmo. Dizei com todas as letras, de uma vez por todas, que são sempre os demônios, sem exceção: a gente acreditará no que quiser. Ou então reconhecei que os Espíritos são as almas dos homens, e que, entre eles, há Espíritos bons e maus que podem manifestar-se.

Aqui se apresenta uma questão especial, do ponto de vista espírita. Como Espíritos podem importarse com o fato de seus corpos estarem num lugar e não em outro? Os Espíritos de uma certa elevação a isso não ligam absolutamente, mas os menos avançados não são tão desprendidos da matéria, a ponto de não ligarem importância às coisas terrestres, de que o Espiritismo oferece numerosos exemplos.

Mas aqui o Espírito pode ser solicitado por outro motivo, o de lembrar ao irmão que ele faltou à sua promessa, negligência que este não podia desculpar por falta de recursos, pois ele era rico. Talvez ele tivesse pensado com seus botões: “Bah! Meu irmão está morto, ele não virá fazer a sua reclamação, e será uma grande despesa a menos.” Ou, suponhamos que o irmão, fiel à palavra, logo tivesse ido à Argélia, mas não tivesse encontrado o corpo, ou que, dada a confusão da guerra, tivesse trazido outro corpo, que não o do irmão; este último não teria ficado menos satisfeito, porque o dever moral teria sido cumprido. Os Espíritos nos dizem sem cessar: “O pensamento é tudo. A forma nada é. Não nos prendamos a ela.”



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