Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

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Capítulo IV

Janeiro - Os romances espíritas

Janeiro


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Os romances espíritas

L'Assassinat Du Pont-Rouge (1) Por Ch. Barbara

O romance pode ser uma maneira de exprimir pensamentos espíritas sem se comprometer, porque o autor temeroso pode sempre responder à crítica trocista que apenas pretendeu fazer uma obra de fantasia, o que é certo para a maioria. Ora, à fantasia tudo é permitido. Mas, fantasia ou não, não deixa de ser uma das formas graças à qual a ideia espírita pode penetrar nos meios onde não seria aceita sob uma forma séria.

O Espiritismo ainda é muito pouco, ou melhor, muito mal conhecido pela literatura, para ter fornecido assunto a muitas obras deste gênero. A principal, como se sabe, é a que Théophile Gautier publicou sob o nome de Spirite, e ainda se pode censurar o autor por se haver afastado, em vários pontos, da ideia verdadeira.

Uma outra obra de que igualmente falamos, e que sem ter sido feita especialmente em vista do Espiritismo a ele se liga de certo modo, é a do Sr. Elie Berthet, publicada em folhetim no Siècle, em setembro e outubro de 1865, sob o título de La double vue[1].

Aqui o autor dá provas de um conhecimento aprofundado dos fenômenos de que fala, e o seu livro junta a este mérito, o do estilo e de um interesse contínuo. Ele é, ao mesmo tempo, moral e instrutivo.

La seconde vie[2] de X.-B. SAINTINE, publicada em folhetim no grande Moniteur, em fevereiro de 1864, é uma série de novelas que não têm nem o fantástico impossível nem o caráter lúgubre dos contos de Edgard Poe, mas a doce e graciosa simplicidade das cenas íntimas entre os habitantes deste mundo e os do outro, nos quais o Sr. Saintine acreditava firmemente. Embora sejam histórias de fantasia, elas em geral pouco se afastam dos fenômenos dos quais muitas pessoas puderam ser testemunhas. Ademais, sabemos que em vida o autor, que conhecemos pessoalmente, não era incrédulo nem materialista. As ideias espíritas lhe eram simpáticas, e o que escrevia era reflexo de seu próprio pensamento.

Séraphita, de Balzac, é um romance filosófico baseado na doutrina de Swedenborg. Em Consuelo e na Comtesse de Rudolfstadt, da Sra. George Sand, o princípio da reencarnação representa papel capital. O Drag, da mesma autora, é uma comédia representada há alguns anos no Vaudeville, cujo enredo é inteiramente espírita. É fundamentada numa crença popular entre os marinheiros da Provence. Drag é um Espírito brincalhão, mais levado do que mau, que se diverte em pregar peças. Ele é visto sob a figura de um jovem que exerce sua influência para constranger um indivíduo a escrever contra sua própria vontade. A imprensa, de ordinário tão benevolente com essa escritora, mostrou-se severa a respeito dessa peça, que merecia melhor acolhimento.

A França não tem o monopólio exclusivo deste gênero de produções. O Progrès Colonial, da ilha Maurício, publicou em 1865, sob o título de Histoires de l’autre monde, racontées par des Esprits[3], um romance que não ocupou menos de vinte e oito folhetins, cuja intriga era toda feita pelo Espiritismo, e no qual o autor, Sr. de Germonville, deu provas de perfeito conhecimento do assunto.

Nalguns outros romances, a ideia espírita apenas fornece o tema de episódios. O Sr. Aurélien Scholl, nos seus Nouveaux Mystères de Paris[4], publicados pelo Petit Journal, faz intervir um magnetizador que interroga uma mesa pela tiptologia, depois é posta em sonambulismo uma moça cujas revelações deixam alguns assistentes em dificuldades. A cena é bem apresentada e perfeitamente verossímil (Petit Journal, 23 de outubro de 1866).

A reencarnação é uma das ideias mais fecundas para os romancistas, e que pode oferecer efeitos empolgantes pelo fato de em nada se afastar das possibilidades da vida material. O Sr. Charles Barbara, jovem escritor falecido há alguns meses numa casa de saúde, dela fez aplicações das mais felizes em seu romance intitulado O Assassinato da Ponte Vermelha, que o Événement ultimamente reproduziu em folhetim.

O protagonista é um agente de câmbio que se escondia no estrangeiro, levando a fortuna de seus clientes. Atraído por um indivíduo a uma casa miserável, sob pretexto de favorecer-lhe a fuga, ele ali é assassinado, despojado e depois atirado ao Sena, com o auxílio de uma mulher chamada Rosália, que morava com esse homem. O assassino agiu com tal prudência e soube tão bem tomar precauções, que todos os vestígios do crime desapareceram e toda suspeita de assassinato foi afastada. Pouco depois ele casou-se com sua cúmplice Rosália e ambos puderam, daí por diante, viver na abastança, sem temer qualquer perseguição, a não ser a do remorso, quando uma circunstância veio pôr termo às suas angústias. Eis como ele próprio a conta:

“Essa quietude foi perturbada desde os primeiros dias do nosso casamento. A não ser que houvesse intervenção direta de um poder oculto, temos que convir que o acaso aqui se mostrou estranhamente inteligente. Por maravilhoso que pareça o fato, não pensareis em pô-lo em dúvida, tanto mais porque dele tendes a prova viva em meu filho. Aliás, muitas pessoas não deixarão de aí ver um fato puramente físico e fisiológico e de o explicar racionalmente. Seja como for, de repente notei os traços de tristeza no rosto de Rosália. Perguntei-lhe a razão. Ela fugiu à resposta.

“A partir do dia seguinte, sua melancolia crescia, e eu convidei-a a me tirar a inquietação. Ela acabou me confessando uma coisa que não deixou de me comover no mais alto grau. Na primeira noite de nossas núpcias, em meu lugar, embora estivéssemos no escuro, ela tinha visto, visto mesmo, pretendia ela, como eu vos vejo, o rosto pálido do agente de câmbio. Inutilmente ela havia esgotado suas forças em expulsar o que tomava a princípio por simples lembrança. O fantasma não saiu de seus olhos senão aos primeiros clarões da madrugada. Além disso, o que de certo era de natureza a justificar o seu pavor, a mesma visão a tinha perseguido com uma tenacidade análoga durante várias noites seguidas.

“Simulei um profundo desdém e tratei de convencê-la que ela simplesmente era vítima de uma alucinação. Compreendi, pela mágoa que dela se apoderou e se transformou insensivelmente nesse langor em que a vistes, que eu não tinha conseguido inculcar-lhe o meu sentimento. Uma gravidez penosa, agitada, equivalente a uma doença longa e dolorosa piorou ainda mais esse mal-estar de espírito; e se um parto feliz, cumulando-a de alegria, teve uma influência salutar sobre o seu moral, foi de curta duração. Além disso, vi-me forçado a privá-la da felicidade de ter o filho ao seu lado, porque, tendo em vista os meus recursos oficiais, uma ama morando em minha casa teria parecido uma despesa superior aos meus meios.

“Comovidos pelos sentimentos de figurar dignamente numa pastoral, nós íamos ver nosso filho de quinze em quinze dias. Rosália o amava até a paixão, e eu mesmo não estava longe de amá-lo com frenesi; porque, coisa singular, nas ruínas amontoadas em mim, só os instintos da paternidade ainda restavam de pé. Eu me abandonava a sonhos inefáveis; me prometia proporcionar uma educação sólida ao meu filho; prometia a mim mesmo preservá-lo, se possível, de meus vícios, de minhas faltas, de minhas torturas. Ele era minha consolação, minha esperança. “Quando digo eu, falo igualmente da pobre Rosália, que se sentia feliz à simples ideia de ver esse filho crescer ao seu lado. Quais não foram as nossas inquietações e ansiedades quando, à medida que o menino se desenvolvia, percebemos em seu rosto as linhas que lembravam o de uma pessoa que desejaríamos esquecer para sempre. A princípio foi apenas uma dúvida, sobre a qual guardamos silêncio, mesmo quando estávamos um diante do outro. Depois a fisionomia do menino aproximou-se a tal ponto da de Thillard, que Rosália me falou com espanto, e que eu mesmo não pude ocultar senão em parte as minhas cruéis apreensões. Enfim, a semelhança nos pareceu tal, que nos pareceu realmente que o agente de câmbio tivesse renascido em nosso filho.

“O fenômeno teria destroçado um cérebro menos sólido que o meu. Ainda muito firme para ter medo, pretendi ficar insensível ao golpe dado em minha afeição paternal e fazer Rosália partilhar de minha indiferença. Sustentei que nisto havia apenas um acaso; acrescentei que nada havia de mais mutável que o rosto das crianças e que provavelmente a semelhança desapareceria com a idade. Finalmente, na pior das hipóteses, sempre nos seria fácil manter esta criança afastada. Falhei completamente. Ela se obstinou em ver na identidade dos dois rostos um fato providencial, o germe de um castigo horroroso, que mais cedo ou mais tarde devia esmagar-nos e, sob o império desta convicção, seu repouso ficou definitivamente destruído.

“Por outro lado, sem falar do menino, o que era a nossa vida? Vós mesmos pudestes ver a perturbação permanente, as agitações, os abalos a cada dia mais violentos. Quando todos os vestígios do meu crime tinham desaparecido, quando eu não tinha absolutamente mais nada a temer dos homens, quando a opinião a meu respeito se tinha tornado unanimemente favorável, em vez de uma segurança fundada na razão, eu sentia crescerem minhas inquietações, minhas angústias, meus terrores. Eu mesmo me inquietava com as fábulas mais absurdas; no gesto, na voz, no olhar do primeiro que chegasse eu via uma alusão ao meu crime.

“As alusões me mantiveram incessantemente no cavalete do carrasco. Lembraivos da noite em que o Sr. Durosoir detalhou uma de suas instruções. Dez anos de dores lancinantes que jamais equivalerão ao que senti no momento em que, saindo do quarto de Rosália, encontrei-me cara à cara com o juiz, que me fitava no rosto. Eu era de vidro; ele lia no fundo de meu peito. Por um instante entrevi o cadafalso. Lembrai-vos do ditado: “Em casa de enforcado não se fala em corda”, e vinte outros detalhes desse gênero. Era um suplício de todos os dias, de todas as horas, de todos os segundos. De qualquer maneira, uma devastação horrorosa acontecia no meu espírito.

“O estado de Rosália era muito mais doloroso: ela vivia literalmente em chamas. A presença do menino em casa acabou por tornar intolerável a permanência ali. Incessantemente, dia e noite, vivemos em meio às mais cruéis cenas. O menino me gelava de horror. Vinte vezes quase que o sufoquei. Além disso, Rosália, que se sentia morrer, que cria na vida futura, nos castigos, aspirava reconciliar-se com Deus. Eu a escarnecia, a insultava, ameaçava bater-lhe. Entrava em furores para assassiná-la. Ela morreu a tempo de me preservar de um segundo crime. Que agonia! Ela jamais me sairá da memória.

“Depois não mais vivi. Eu me tinha gabado de não ter consciência: esses remorsos cresceram ao meu lado, em carne e osso, sob a forma de meu filho. Esse menino, de quem, malgrado a imbecilidade, consinto em ser o guarda e o escravo, não cessa de me torturar por seu ar, seus olhares estranhos, pelo ódio instintivo que me vota. Não importa onde eu vá, ele me segue passo a passo, caminha ou se senta ao meu lado. À noite, após um dia de fadiga, sinto-o ao meu lado, e seu contacto basta para tirar-me o sono ou, pelo menos, perturbar-me com pesadelos. Temo que de repente a razão lhe venha, que sua língua se solte e que ele fale e me acuse.

“A Inquisição, com seu talento para as torturas, o próprio Dante, na sua Suppliciomanie, jamais imaginaram algo de tão espantoso. Isto me torna monomaníaco. Surpreendo-me desenhando a pena o quarto onde cometi o crime; escrevo em baixo esta legenda:

Neste quarto envenenei o agente de câmbio Thillard-Dacornet, e assino. Foi assim que nas minhas horas de febre detalhei em meu jornal mais ou menos palavra por palavra tudo o que vos contei.

“Não é tudo. Consegui subtrair-me ao suplício com que os homens castigam o assassino, e eis que este suplício se renova para mim quase todas as noites.


“Sinto uma mão em minha espádua e ouço uma voz que me murmura ao ouvido: “Assassino!” Sou levado diante das túnicas vermelhas; um rosto pálido se ergue à minha frente e exclama: “Ei-lo!” É o meu filho. Eu nego. Meu desenho e minhas próprias memórias me são apresentados com minha assinatura. Como vedes, a realidade se mistura ao sonho e aumenta o meu espanto. Assisto, enfim, a todas as peripécias de um processo criminal. Ouço a minha condenação: “Sim, é culpado.” Conduzem-me a uma sala escura, onde os ajudantes vêm juntar-se ao carrasco. Quero fugir, ferros me detém e uma voz me grita: “Não há mais misericórdia para ti!”Experimento até a sensação do frio das lâminas no pescoço.

“Um sacerdote ora ao meu lado e por vezes convida-me ao arrependimento. Eu o repilo com mil blasfêmias. Semimorto, sou sacudido pelos movimentos de uma charrete no pavimento da cidade; ouço os murmúrios da multidão, comparáveis aos das vagas do mar e, no alto, imprecações de mil vozes. Chego à vista do cadafalso. Subo os degraus. Desperto exatamente no momento em que a lâmina desliza entre as ranhuras, quando, entretanto, meu sonho não continua, quando não sou arrastado à presença daquele que eu quis negar, do próprio Deus, para aí ter os olhos queimados pela luz, para mergulhar no abismo de minhas iniquidades, para aí ser supliciado pelo sentimento de minha própria infâmia. Sufoco, o suor me inunda, o horror enche-me a alma. Não sei mais quantas vezes já sofri este suplício.”

A ideia de fazer reviver a vítima no próprio filho do assassino e que aí está como a imagem viva de seu crime, ligada aos seus passos, é ao mesmo tempo engenhosa e muito moral. O autor quis mostrar que se o criminoso sabe escapar às perseguições dos homens, não poderia subtrair-se às da Providência. Há aqui mais que remorso: é a vítima que se ergue sem cessar à sua frente, não sob a aparência de um fantasma ou de uma aparição que poderia ser considerada como efeito da imaginação ferida, mas sob os traços de seu filho; é o pensamento que essa criança pode ser a própria vítima, pensamento corroborado pela instintiva aversão ao menino, embora idiota, por seu pai; é a luta da ternura paterna contra esse pensamento que o tortura, luta horrível que não permite ao culpado gozar pacificamente o fruto de seu crime, como ele havia imaginado.

O quadro tem o mérito de ser verdadeiro, ou melhor, perfeitamente verossímil, isto é, nada se afasta das leis naturais que, como hoje sabemos, regem as relações dos seres humanos entre si. Aqui nada de fantástico nem de maravilhoso; tudo é possível e justificado pelos numerosos exemplos que temos de indivíduos renascendo no meio onde já viveram, em contato com os mesmos indivíduos, para ter ocasião de reparar os erros ou cumprir deveres de reconhecimento.

Admiremos aqui a sabedoria da Providência que lança, durante a vida, um véu sobre o passado, sem o qual os ódios se perpetuariam, ao passo que acabam por se apaziguar nesse novo contacto e sob o império dos bons procedimentos recíprocos.

É assim que, pouco a pouco, o sentimento da fraternidade acaba substituindo o da hostilidade. No caso de que se trata, se o assassino tivesse tido uma certeza absoluta sobre a identidade de seu filho, teria podido buscar a segurança num novo crime. A dúvida o deixava em luta com a voz da Natureza que nele falava pela da paternidade; mas a dúvida era um suplício cruel, uma ansiedade perpétua, pelo medo que essa fatal semelhança levasse à descoberta do crime.

Por outro lado, o agente de câmbio, ele próprio culpado, tinha, senão como encarnado, mas como Espírito, a consciência de sua posição. Se ele servia de instrumento para o castigo de seu assassino, sua posição era um suplício também para ele. Assim, esses dois indivíduos, ambos culpados, se castigavam reciprocamente, detidos em seus ressentimentos mútuos pelos deveres impostos pela Natureza. Essa justiça distributiva que castiga por meios naturais, pela consequência da própria falta, mas que sempre deixa a porta aberta ao arrependimento e à reabilitação, que coloca o culpado no caminho da reparação, não é mais digna da bondade de Deus que a condenação irremissível às chamas eternas? Porque o Espiritismo repele a ideia do inferno tal qual o representam, pode dizer-se que tire todo freio às más paixões? Compreendemos esse gênero de punição e o aceitamos porque é lógico; ele impressiona tanto mais quanto o sentimos equitativo e possível. Esta crença é um freio muito mais poderoso do que a perspectiva de um inferno em que não creem, e do qual riem.

Eis um exemplo real da influência desta doutrina, para um caso que, embora menos grave, não prova menos o poder de sua ação.

Um senhor de nosso conhecimento pessoal, espírita fervoroso e esclarecido, vive com um parente muito próximo, que diversos indícios, com todas as características de probabilidade, lhe fazem crer tenha sido seu pai. Ora, esse parente nem sempre age para com ele como deveria. Sem esse pensamento, aquele senhor, em muitas circunstâncias, em questões de interesse, teria usado de um rigor que estava em seu direito e provocado uma ruptura. No entanto, a ideia de que podia ser seu pai o deteve. Ele mostrou-se paciente e moderado; suportou o que não teria tolerado da parte de uma pessoa que tivesse considerado como estranha. Não havia, em vida do pai, uma grande simpatia entre ele e seu filho, mas a conduta do filho, em tal circunstância, não era de natureza a aproximá-los espiritualmente e a destruir as prevenções que os afastavam um do nutro? Se eles se reconhecessem de maneira incontestável, sua posição respectiva seria muito falsa e constrangedora; a dúvida em que está o filho basta para impedi-lo de agir mal, entretanto lhe deixa todo o livre-arbítrio. Tenha ou não o parente sido o seu pai, o filho não tem menos mérito pelo sentimento de piedade filial; se eles não têm parentesco, ser-lhe-á sempre levado em conta de seu bom procedimento e o verdadeiro Espírito de seu pai lhe será grato.


Vós que troçais do Espiritismo porque não o conheceis, se soubésseis o que ele encerra de poder para a moralização, compreenderíeis tudo o que a Sociedade ganhará com a sua propagação e seríeis os primeiros a aplaudi-lo. Vós a veríeis transformada sob o império das crenças que conduzem, pela própria força das coisas e pelas próprias leis da Natureza, à fraternidade e a verdadeira igualdade; compreenderíeis que só ele pode triunfar dos preconceitos que são a pedra de tropeço do progresso social, e em vez de ridicularizar os que o propagam, os encorajaríeis, porque sentiríeis que é do vosso próprio interesse, de vossa segurança. Mas, paciência! Isto virá, ou melhor, isto já tem vindo. Cada dia as prevenções se apaziguam, a ideia se propaga, infiltra-se sem ruído e começamos a ver que existe aí algo de mais sério do que imaginávamos. Não está longe o tempo em que os moralistas, os apóstolos do progresso, aí verão a mais poderosa alavanca que jamais tiveram nas mãos.

Lendo o romance do Sr. Charles Barbara, poder-se-ia crer que fosse espírita fervoroso, mas não era. Como dissemos, ele morreu numa casa de saúde, atirando-se pela janela num acesso de febre ardente. Era um suicídio, mas atenuado pelas circunstâncias. Evocado pouco tempo depois na Sociedade de Paris, e interrogado quanto às suas ideias em relação ao Espiritismo, eis a comunicação que ele deu a respeito:

(Paris, 19 de outubro de 1866 ─ Médium, Sr. Morin)

Permiti, senhores, a um pobre Espírito infeliz e sofredor, vos pedir autorização para vir assistir às vossas sessões, repletas de instrução, de devotamento, de fraternidade e de caridade. Sou o infeliz que tinha o nome de Barbara, e se vos peço esta graça, é que o Espírito despojou-se do homem velho, e não se crê mais tão superior em inteligência como se julgava em vida.

Agradeço-vos a vossa chamada e, tanto quanto estiver em minhas possibilidades, vou tentar responder à pergunta motivada por uma página de uma de minhas obras. Mas eu vos peço permissão para primeiramente informar sobre o meu estado atual, que se ressente fortemente da perturbação, aliás muito natural, que se experimenta ao passar bruscamente de uma a outra vida.

Estou perturbado por duas causas principais: a primeira é devida à minha provação, que era de suportar as dores físicas que experimentei, ou melhor, que meu corpo experimentou, quando me suicidei. ─ Sim, senhores, não temo dizê-lo, eu me suicidei, porque se meu Espírito estava perdido por momentos, eu o possuia antes de me arrebentar na calçada, e... eu disse: tanto melhor!... Que falta e que fraqueza!... As lutas da vida material estavam terminadas para mim, meu nome era conhecido, eu não tinha mais senão que avançar pelo caminho que estava aberto para mim e que era tão fácil de seguir!... Tive medo!... Entretanto, nas horas de incerteza e de desencorajamento, tinha lutado apesar de tudo. A miséria e suas consequências não me tinham desanimado e foi quando tudo estava acabado para mim que exclamei: O passo está dado; tanto melhor!... Não terei mais que sofrer! Egoísta e ignorante!...


A segunda é que depois de terdes andado a esmo pela vida, entre a convicção do nada e o pressentimento de um Deus que não podia ser senão uma força única, grande, justa, boa e bela, vos encontrais na presença de uma inumerável multidão de seres ou Espíritos que vos conheceram e que amastes; reencontrais vivas vossas afeições, vossas ternuras e vossos amores, então vos apercebeis, numa palavra, que apenas mudastes de domicílio. Então concebeis, senhores, que é muito natural que um pobre ser que viveu entre o bem e o mal, entre a crença e a incredulidade sobre uma outra vida, é muito natural, como eu dizia, que fique perturbado... de felicidade, de alegria, de emoção, um pouco de vergonha, vendo-se obrigado a confessar a si mesmo que, em seus escritos, o que ele atribuía à sua imaginação laboriosa, era uma poderosa realidade, e que muitas vezes o homem de letras se enche de orgulho vendo que são lidas e aplaudidas as páginas que julga obra sua, ao passo que às vezes ele não passa de um instrumento que escreve sob a influência dessas mesmas potências ocultas cujo nome lança ao acaso da pena num livro.

Quantos grandes autores de todos os tempos escreveram, sem conhecer todo o seu valor filosófico, páginas imortais, balizas do progresso colocadas por eles e por ordem de um poder superior, para que, num dado tempo, a reunião de todo esse material esparso formasse um todo, tanto mais sólido quanto é o produto de várias inteligências, porque a obra coletiva é a melhor: é, aliás, o que Deus determinará ao homem, porque a grande lei da solidariedade é imutável.

Não, senhores, eu não conhecia absolutamente o Espiritismo quando escrevia esse romance, e confesso que eu mesmo notei com surpresa o profundo modo de dizer de algumas linhas que lestes, sem compreender-lhes todo o alcance que hoje vejo claramente. Depois de havê-las escrito, aprendi a rir do Espiritismo, para fazer como os meus esclarecidos colegas, e não querer parecer mais adiantado no ridículo do que eles próprios queriam ser. Eu ri e agora choro, mas também espero, porque me ensinaram aqui que todo arrependimento sincero é um progresso, e todo progresso leva ao bem.

Não duvideis, senhores, que muitos escritores são, muitas vezes, instrumentos inconscientes para a propagação das ideias que as forças invisíveis julgam úteis ao progresso da Humanidade. Não vos admireis, pois, de vê-los escrever sobre o Espiritismo sem nele crer. Para eles é um assunto como qualquer outro que se presta ao efeito, e não suspeitam que a ele sejam levados malgrado seu. Todos esses pensamentos espíritas que vedes emitidos por aqueles que, a par disso, fazem oposição, lhes são sugeridos, e eles não deixam de fazer o seu caminho. Eu fui um desses.

Orai por mim, senhores, porque a prece é um bálsamo inefável. A prece é a caridade que se deve fazer aos infelizes do outro mundo, dos quais sou um.


BARBARA



[1] A dupla vista. N. do T.


[2] A segunda vida. N. do T.


[3] Histórias do outro mundo, contadas pelos Espíritos.


[4] Novos mistérios de Paris.


Novembro NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

Novembro


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1. — Quando apareceu o romance Mireta, os Espíritos disseram estas palavras notáveis na Sociedade de Paris:


“O ano de 1866 apresenta a filosofia nova sob todas as formas; mas ainda é o talo verde que encerra a espiga de trigo e, para a mostrar, espera que o calor da primavera a tenha amadurecido e feito desabrochar. 1866 preparou, 1867 amadurecerá e realizará. O ano se abre sob os auspícios de Mireta e não se escoará sem ver aparecerem novas publicações do mesmo gênero e mais sérias ainda, no sentido de que o romance tornar-se-á filosofia e a filosofia se fará história.” (Revista de fevereiro de 1867).

Anteriormente eles já haviam dito que se preparavam diversas obras sérias sobre a filosofia do Espiritismo, nas quais o nome da doutrina não seria timidamente dissimulado, mas confessado e proclamado em voz alta por homens cujo nome e posição social dariam peso à sua opinião; e acrescentaram que o primeiro apareceria provavelmente pelo fim do presente ano.

A obra que anunciamos realiza completamente esta previsão. É a primeira publicação deste gênero na qual a questão é encarada em todas as suas partes e em toda a sua grandeza. Pode-se, pois, dizer que inaugura uma das fases da existência do Espiritismo. O que a caracteriza é que não é uma adesão banal aos princípios da doutrina, uma simples profissão de fé, mas uma demonstração rigorosa, onde os próprios adeptos encontrarão novas ideias. Lendo esta argumentação cerrada, levada, a bem dizer, até a minúcia, e por um encadeamento lógico das ideias, perguntar-se-á, sem dúvida, por que singular extensão do vocábulo se poderia aplicar ao autor o epíteto de louco. Se é um louco que assim discute, poder-se-á dizer que às vezes os loucos tapam a boca de gente que se diz sensata. É uma defesa exemplar, onde se reconhece o advogado que quer reduzir a réplica aos seus últimos limites; mas aí se reconhece, também, aquele que estudou a causa seriamente e a perscrutou nos seus mais minuciosos detalhes. O autor não se limita a emitir a sua opinião: ele a motiva e dá a razão de ser de cada coisa. É por isso que, com toda justiça, intitulou seu livro de A Razão do Espiritismo.

Publicando esta obra, sem cobrir a sua personalidade com o menor véu, o autor prova que tem a verdadeira coragem de sua opinião, e o exemplo que dá é um título ao reconhecimento de todos os espíritas. O ponto de vista em que se colocou é principalmente o das consequências filosóficas, morais e religiosas, as que constituem o objetivo essencial do Espiritismo e dele faz uma obra humanitária.

Aliás, eis como ele se expressa no prefácio.


2. — “Está nas vicissitudes das coisas humanas, ou, melhor dizendo, parece fatalmente reservado a toda ideia nova ser mal acolhida ao seu aparecimento. Como, as mais das vezes, tem por missão derrubar ideias que a precederam, encontra resistência muito grande da parte do entendimento humano.

“O homem que viveu com preconceitos não acolhe senão com desconfiança a recém-chegada, que tende a modificar, a destruir mesmo combinações e ideias fixas em seu espírito, a forçá-lo, numa palavra, a meter mãos à obra, para correr atrás da verdade. Aliás, sente-se humilhado em seu orgulho, por ter vivido no erro.

“A repulsa que inspira a ideia nova é muito mais acentuada ainda quando traz consigo obrigações, deveres; quando impõe uma linha de conduta mais severa.

“Ela encontra enfim ataques sistemáticos, ardentes, obstinados, quando ameaça posições conquistadas, e sobretudo quando se defronta com o fanatismo ou com opiniões profundamente arraigadas na tradição dos séculos.

“As doutrinas novas, pois, sempre têm numerosos detratores; muitas vezes elas têm mesmo que sofrer perseguição, o que levou Fontenelle a dizer: “Que se tivesse todas as verdades na mão, teria o cuidado de não a abrir.”

“Tais eram o desfavor e os perigos que esperavam o Espiritismo quando do seu aparecimento no mundo das ideias. Os insultos, a zombaria, a calúnia não lhe foram poupados; e, talvez, também venha o dia da perseguição. Os adeptos do Espiritismo foram tratados de iluminados, alucinados, patetas e loucos, e a essa enxurrada de epítetos que, todavia, pareciam contradizer-se e excluir-se, acrescentaram os de impostores, charlatães e, finalmente, de partidários de Satã.

“A qualificação de louco é a que parece mais especialmente reservada a todo promotor ou propagador de ideias novas. É assim que trataram de louco o primeiro que se atreveu a dizer que a Terra girava em torno do Sol.

“Também era louco o célebre navegador que descobriu um novo mundo. Ainda era louco, para o areópago da Ciência, o que descobriu a força do vapor. E a douta assembleia acolheu, com sorriso desdenhoso, a sábia dissertação de Franklin sobre as propriedades da eletricidade e a teoria do pára-raios.

“Ele também, o divino regenerador da Humanidade, o reformador autorizado da lei de Moisés, não foi tratado de louco? Não expiou por um suplício ignominioso a propagação dos benefícios da moral divina na Terra?

“Galileu não expiou como herético, num sequestro cruel e em amargas perseguições morais, a glória de ter sido o primeiro a ter a iniciativa do sistema planetário cujas leis Newton devia promulgar?

“São João Batista, o precursor do Cristo, também tinha sido sacrificado à vingança dos culpados, cujos crimes condenara.

“Os apóstolos, depositários dos ensinamentos do divino Messias, tiveram que selar com sangue a santidade de sua missão. E a religião reformada por sua vez não foi perseguida e, após os massacres de São Bartolomeu, não teve que sofrer as dragonadas?

“Enfim, remontando até o ostracismo inspirado por outras paixões, vemos Aristides exilado e Sócrates condenado a beber cicuta.

“Sem dúvida, graças aos costumes suaves que caracterizam nosso século, sob o império de nossas instituições e das luzes que põem um freio à intolerância fanática, as fogueiras não mais se erguerão para purificar com suas chamas as doutrinas espíritas, cuja paternidade pretendem fizer remontar a Satã. Mas elas também devem esperar um levante dos mais hostis e ataque de ardentes adversários.

“Entretanto, este estado militante não poderia debilitar a coragem dos que estão animados por uma convicção profunda, dos que têm a certeza de ter nas mãos uma dessas verdades fecundas, que constituem, em seus desdobramentos, um grande benefício para a Humanidade.

“Mas, seja como for o antagonismo das ideias ou das doutrinas que o Espiritismo suscitar; sejam quais forem os perigos que deva abrir sob os passos dos adeptos, o espírita não poderia deixar esta luz sob o alqueire e se recusar a lhe dar todo o brilho que ela comporta, o apoio de suas convicções e o testemunho sincero de sua consciência.

“O Espiritismo, revelando ao homem a economia de sua organização, iniciando-o no conhecimento de seus destinos, abre um campo imenso às suas meditações. Assim o filósofo espírita, chamado a levar suas investigações a esses novos e esplêndidos horizontes só tem por limites o infinito. Assiste, de certo modo, ao conselho supremo do Criador. Mas o entusiasmo é o escolho que deve evitar, sobretudo quando lança suas vistas sobre o homem, tornado tão grande e que, no entanto, por orgulho se faz tão pequeno. Não é senão quando esclarecido pelas luzes de uma prudente razão, e tomando por guia a fria e severa lógica, que deve dirigir suas peregrinações no domínio da ciência divina, cujo véu foi erguido pelos Espíritos.

“Este livro é o resultado de nossos próprios estudos e de nossas meditações sobre este assunto que, desde o começo, nos pareceu de importância capital e ter consequências da mais alta gravidade. Reconhecemos que essas ideias têm raízes profundas e nelas entrevimos a aurora de uma nova era para a sociedade. A rapidez com que se propagam é um indício de sua próxima admissão no número das crenças aceitas. Em razão mesmo de sua importância, não nos contentamos com afirmações e argumentos da doutrina; não só nos asseguramos da realidade dos fatos, mas perscrutamos com minuciosa atenção os princípios deles decorrentes; buscamos a sua razão com fria imparcialidade, sem negligenciar o estudo não menos consciencioso das objeções que opõem os antagonistas; como um juiz que escuta as duas partes contrárias, pesamos maduramente os prós e os contras. Só depois de haver adquirido a convicção de que as alegações contrárias nada destroem; que a doutrina repousa sobre bases sérias, numa lógica rigorosa, e não em devaneios quiméricos; que contém o gérmen de uma renovação salutar do estado social, minado secretamente pela incredulidade; que é, enfim, uma poderosa barreira contra a invasão do materialismo e da desmoralização, é que julgamos dever dar nossa apreciação pessoal, e as deduções que tiramos de um estudo atento.

“Assim, tendo encontrado uma razão de ser nos princípios desta nova ciência, que tem lugar reservado entre os conhecimentos humanos, intitulamos nosso livro A Razão do Espiritismo. Este título é justificado pelo ponto de vista sob o qual encaramos o assunto, e os que nos lerem reconhecerão sem dificuldade que este trabalho não é produto de um entusiasmo leviano, mas de um exame maduramente e friamente reflexivo.

“Estamos convictos de que, quem quer que, sem partido preconcebido de oposição sistemática, fizer, como nós fizemos, um estudo consciencioso da Doutrina Espírita, a considerará como uma das coisas que interessam no mais alto grau o futuro da Humanidade.

“Dando a nossa adesão a esta doutrina, usamos do direito de liberdade de consciência, que a ninguém pode ser contestado, seja qual for a sua crença. Com mais forte razão esta liberdade deve ser respeitada, quando tem por objetivo princípios da mais alta moralidade, que conduzem os homens à prática dos ensinamentos do Cristo e, por isso mesmo, são a salvaguarda da ordem social.

“O escritor que consagra sua pena em fixar no espírito a impressão que tais ensinamentos deixaram no santuário de sua consciência, deve guardar-se bem de confundir as elucubrações brotadas no seu horizonte terrestre com os raios luminosos partidos do céu. Se restam pontos obscuros ou ocultos às suas explicações, pontos que ainda não lhe é dado conhecer, é que, aos olhos da sabedoria divina, ficam reservados para um grau superior na escala ascendente de sua depuração progressiva e de sua perfectibilidade.

“Todavia, apressemo-nos em dizê-lo, todo homem convicto e consciencioso, consagrando suas meditações à difusão de uma verdade fecunda para a felicidade da Humanidade, mergulha sua pena na atmosfera celeste, onde nosso globo está imerso, e recebe incontestavelmente a centelha da inspiração.”


3. — A indicação do título dos capítulos dará a conhecer o quadro abarcado pelo autor.


1. Definição do Espiritismo. – 2. Princípio do bem e do mal. – 3. União da alma com o corpo. – 4. Reencarnação. – 5. Frenologia. – 6. Pecado original. – 7. O inferno. – 8. Missão do Cristo. – 9. O purgatório. – 10. O céu. – 11. Pluralidade dos globos habitados. – 12. – A caridade. – 13. – Deveres do homem. – 14. Perispírito. – 15. Necessidade da revelação. – 16. Oportunidade da revelação. – 17. Os anjos e os demônios. – 18. Os tempos preditos. – 19. A prece. – 20. A fé. – 21. Resposta aos insultadores. – 22. Resposta aos incrédulos, ateus ou materialistas. – 23. Apelo ao clero.


4. — Lamentamos que a falta de espaço não nos permita reproduzir tantas passagens quanto desejaríamos. Limitar-nos-emos a algumas citações.


Cap. III, pág. 41. – “A utilidade recíproca e indispensável da alma e do corpo para sua cooperação respectiva constitui, pois, a razão de ser de sua união. Ela constitui, a mais, para o Espírito, as condições militantes na via do progresso, onde está chamado a conquistar sua personalidade intelectual e moral.

“Como esses dois princípios realizam normalmente, no homem, o fim de sua destinação? Quando o Espírito é fiel às suas aspirações divinas, restringe os instintos animais e sensuais do corpo e os reduz à sua ação providencial na obra do Criador; desenvolve-se, cresce. É a perfeição mesma da obra que se realiza. Chega à felicidade, cujo último termo é inerente ao grau supremo da perfectibilidade.

“Se, ao contrário, abdicando da soberania que é chamado a exercer no corpo, cede ao arrastamento dos sentidos, e se aceita suas condições de prazeres terrestres como único objetivo de suas aspirações, falseia a razão de ser de sua existência e, longe de realizar os seus destinos, fica estacionário; ligado a esta vida terrestre que, entretanto, não deveria ter sido para ele senão uma condição acessória, pois não poderia ser o seu fim, o Espírito, de chefe que era, torna-se subordinado; como insensato, aceita a felicidade terrena que os sentidos lhe fazem experimentar e que lhe propõem satisfazer, assim abafando nele a intuição da felicidade verdadeira que lhe está reservada. Eis a sua primeira punição.”


No capítulo XII, do inferno, pág. 99, encontramos esta notável apreciação da morte e dos flagelos destruidores:

“Seria enumerando os flagelos que espalham sobre a Terra o terror e o pânico, o sofrimento e a morte, que acreditariam poder dar a prova das manifestações da cólera divina?

“Sabei, pois, temerários evocadores das vinganças celestes, que os cataclismos que assinalais, longe de ter o caráter exclusivo de um castigo infligido à Humanidade, são, ao contrário, um ato da misericórdia divina, que fecha a esta o abismo onde a precipitavam suas desordens, e lhe abre as vias do progresso, que a levarão ao caminho que deve seguir para assegurar a sua regeneração.

“Que são esses cataclismos, senão uma nova fase na existência do homem, uma era feliz, marcando para os povos e a Humanidade inteira o ponto providencial de seu adiantamento?

“Sabei, pois, que a morte não é um mal. Farol da existência do Espírito, ela é sempre, quando vem de Deus, o sinal de sua misericórdia e de sua assistência benfazeja. A morte é apenas o fim do corpo, o termo de uma encarnação e, nas mãos de Deus, é o aniquilamento de um meio corruptor e vicioso, a interrupção de uma corrente funesta, à qual, num momento solene, a Providência arranca o homem e os povos.

“A morte não é senão uma interrupção na prova terrestre. Longe de prejudicar o homem, ou antes, o Espírito, ela o chama a se recolher no mundo invisível, seja para reconhecer suas faltas e as lamentar, seja para se esclarecer e se preparar, por firmes e salutares resoluções, para retomar a prova da vida terrestre.

“A morte só gela o homem de pavor porque, muito identificado com a Terra, não tem fé em seu augusto destino, do qual este globo não passa de dolorosa oficina, na qual se deve realizar a sua depuração.

“Cessai, pois, de crer que a morte seja um instrumento de cólera e de vingança nas mãos de Deus; sabei, ao contrário, que ela é ao mesmo tempo a expressão de sua misericórdia e de sua justiça, seja detendo o mau na vida da iniquidade, seja abreviando o tempo de provas ou de exílio do justo sobre a Terra.

“E vós, ministros do Cristo, que do alto do púlpito da verdade proclamais a cólera e a vingança de Deus, e pareceis, por vossas eloquentes descrições da fantástica fornalha, atiçar as chamas inextinguíveis para devorar o infeliz pecador; vós que, de vossos lábios tão autorizados, deixais cair esta aterradora epígrafe: “Jamais! — Sempre!” então esquecestes as instruções de vosso divino Mestre?

Ainda citaremos as seguintes passagens, extraídas do capítulo sobre o pecado original.

“Em vez de criar a alma perfeita, quis Deus que não fosse senão por longos e constantes esforços que ela chegaria a se desprender deste estado de inferioridade nativa e gravitar para seus augustos destinos.

“Para chegar a esses fins, deve ela, pois, romper os laços que a prendem à matéria, resistir ao arrastamento dos sentidos, com a alternativa de sua supremacia sobre o corpo, ou da obsessão exercida sobre ela pelos instintos animais.

“São destes laços terrestres que lhe importa libertar-se e que nela constituem as condições mesmas de sua inferioridade; eles não são outros senão o suposto pecado original, o alvéolo que cobre a sua essência divina. O pecado original constitui, assim, o ascendente primitivo que os instintos animais devem ter exercido, inicialmente, sobre as aspirações da alma. Tal é o estado do homem que o Gênesis quis representar sob a figura simples da árvore da ciência do bem e do mal. A intervenção da serpente tentadora não é outra coisa senão os desejos da carne e a solicitação dos sentidos; o Cristianismo consagrou esta alegoria como um fato real, ligando-se à existência do primeiro homem; e é sobre este fato que fundou o dogma da redenção.

“Colocado deste ponto de vista, é preciso reconhecê-lo, o pecado original deve ter sido, com efeito, e realmente foi, o de toda a posteridade do primeiro homem, e assim o será durante uma longa sucessão de séculos, até a libertação completa do Espírito das opressões da matéria, libertação que, sem dúvida, tende a se realizar, mas que ainda não se fez em nossos dias.

“Numa palavra, o pecado original constitui as condições da natureza humana trazendo os primeiros elementos de sua existência, com todos os vícios que ela gerou.

“O pecado original é o egoísmo, é o orgulho que presidem a todos os atos da vida do homem;

“É o demônio da inveja e do ciúme que roem o seu coração;

“É a ambição que perturba seu sono;

“É a cupidez, que não pode saciar a avidez do lucro;

“É o amor e a sede de ouro, este elemento indispensável para dar satisfação a todas as exigências do luxo, do conforto e do bem-estar, que persegue o século com tanto ardor.

“Eis o pecado original proclamado pelo Gênesis, e que o homem sempre ocultou em si; ele só será apagado no dia em que, compenetrado de seus altos destinos, o homem abandonar, conforme a lição do bom La Fontaine, a sombra pela presa; o dia em que renunciar à miragem da felicidade terrena, para voltar todas as suas aspirações para a felicidade real, que lhe está reservada.

“Que o homem aprenda, pois, a se tornar digno de seu título de chefe entre todos os seres criados, e da essência etérea emanada do próprio seio de seu Criador e de que está repleto. Que seja forte para lutar contra as tendências de seu envoltório terrestre, cujos instintos são estranhos às suas aspirações divinas e não poderiam constituir sua personalidade espiritual; que seu objetivo único seja sempre gravitar para a perfeição de seu último fim, e o pecado original não existirá mais para ele.”


5. — O Sr. Bonnamy já é conhecido de nossos leitores, que puderam apreciar a firmeza, a independência de seu caráter e a elevação de seus sentimentos, pela notável carta que publicamos na Revista de março de 1866, no artigo intitulado: O Espiritismo e a Magistratura. Ele vem hoje, por um trabalho de alto alcance, emprestar resolutamente o apoio e a autoridade de seu nome a uma causa que, na sua consciência, considera como a da Humanidade.

Entre os adeptos já numerosos que o Espiritismo conta na magistratura, o Sr. Jaubert, vice-presidente do tribunal de Carcassonne, e o Sr. Bonnamy, juiz de instrução em Villeneuve-sur-Lot, são os primeiros que abertamente arvoraram a bandeira. E o fizeram, não no dia seguinte à vitória, mas no momento da luta, quando a doutrina é alvo dos ataques de seus adversários, e quando seus aderentes ainda estão sob o golpe da perseguição. Os espíritas atuais e os do futuro saberão apreciá-lo e não o esquecerão. Quando uma doutrina recebe os sufrágios de homens tão justamente considerados, é a melhor resposta às diatribes de que ela possa ser objeto.

A obra do Sr. Bonnamy marcará nos anais do Espiritismo, não só como a primeira em data no seu gênero, mas, sobretudo, por sua importância filosófica. O autor aí examina a doutrina em si mesma, discute os seus princípios, dos quais tira a quintessência, fazendo abstração completa de todo personalismo, o que exclui qualquer pensamento corporativista.





Julho 4 EPIDEMIA DA ILHA MAURÍCIO

Julho


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1. — Há alguns meses um dos nossos médiuns, o Sr. T…, que frequentemente cai em sonambulismo espontâneo, sob a magnetização dos Espíritos, nos disse que naquele momento a ilha Maurício estava sendo devastada por uma terrível epidemia, que dizimava a população. Esta previsão realizou-se, até com circunstâncias agravantes. Acabamos de receber de um dos nossos correspondentes da ilha Maurício uma carta, datada de 8 de maio, da qual extraímos as passagens seguintes.

“Vários Espíritos nos anunciaram, uns claramente, outros em termos proféticos, um flagelo destruidor prestes a nos fulminar. Tomamos estas revelações do ponto de vista moral, e não do ponto de vista físico. De repente uma moléstia estranha irrompe nesta pobre ilha; uma febre sem nome, que reveste todas as formas, começa suavemente, hipocritamente, depois aumenta e derruba a todos os que pode atingir. É agora uma verdadeira peste; os médicos não a entendem; até agora, nenhum dos que foram atingidos se curaram. São terríveis acessos que vos prostram e vos torturam durante doze horas no mínimo, atacando, cada um por sua vez, cada órgão importante; depois o mal cessa durante um ou dois dias, deixando o doente acabrunhado até o próximo acesso, e assim se vai, mais ou menos rapidamente, para o termo fatal.

“Para mim, vejo em tudo isto um desses flagelos anunciados, que devem retirar do mundo uma parte da geração presente, e destinados a operar uma renovação tornada necessária. Vou dar-vos um exemplo das infâmias que aqui se passam.

“O quinino em dose muito forte detém os acessos apenas por alguns dias; é o único específico capaz de interromper, pelo menos momentaneamente, os progressos da cruel moléstia que nos dizima.

“Os negociantes e os farmacêuticos o tinham em certa quantidade, e lhes custava cerca de 7 fr. a onça. Ora, como esse remédio era forçosamente comprado por todo o mundo, aqueles senhores aproveitaram a ocasião para elevar o preço da poção de um indivíduo, de 1 fr., preço ordinário, até 15 fr. Depois o quinino veio a faltar; isto é, os que o tinham, ou o recebiam pelo correio, o vendiam ao preço fabuloso de 2 fr. 50 c. o grão, a retalho, e a 675 e 800 fr. a onça, no atacado. Numa poção entram pelo menos 30 grãos, totalizando 75 fr. a poção. Assim, só os ricos podiam comprar e aqueles negociantes viam com indiferença milhares de infelizes morrendo ao seu redor, por falta do dinheiro necessário para adquirir o medicamento.

“Que dizeis disto? Ah! é história! Ainda neste momento o quinino chega em quantidade; as farmácias o têm em abundância, mas não querem vender a dose por menos de 12 fr. 50 c. Por isso os pobres morrem sempre, olhando desolados esse tesouro que não podem alcançar!

“Eu mesmo fui atingido pela epidemia e estou na quarta recaída. Arruíno-me com o quinino. Isto prolonga a minha existência, mas, como receio, se as recaídas continuarem, caro senhor, palavra de honra! é muito provável que em pouco tempo terei o prazer de assistir como Espírito às vossas sessões parisienses e nelas tomar parte, se Deus o permitir. Uma vez no mundo dos Espíritos, estarei mais perto de vós e da Sociedade do que estou na ilha Maurício. Num pensamento transporto-me às vossas sessões, sem fadiga e sem temer o mau tempo. Aliás, não tenho o menor receio, eu vo-lo juro; sou muito sinceramente espírita para isto. Todas as minhas precauções estão tomadas; e se vier a deixar este mundo, sereis avisado.

“Enquanto espero, caro senhor, tende a bondade de pedir aos meus irmãos da Sociedade Espírita que unam as suas às nossas preces pelas infelizes vítimas da epidemia, pobres Espíritos muito materiais, na maioria, e cujo desprendimento dever ser penoso e longo. Oremos também por aqueles, muito mais infelizes que, ao flagelo da moléstia, juntam o da desumanidade.

“Nosso pequeno grupo está disperso há três meses; todos os membros foram mais ou menos atingidos, mas, até agora, nenhum morreu.

“Recebei, etc.”


2. — É preciso ser espírita de verdade para encarar a morte com este sangue-frio e essa indiferença, quando ela estende seus malefícios em redor de nós e quando se sentem os seus ataques. É que, em semelhante caso, a fé séria no futuro, tal qual só o Espiritismo pode dar, proporciona uma força moral que, ela mesma, é um poderoso preservativo, como foi dito a propósito da cólera. (Revista de novembro de 1865). Isto não quer dizer que nas epidemias os espíritas sejam necessariamente poupados, mas, em tais casos eles têm sido, até agora, os menos atingidos. Escusado dizer que se trata de espíritas de coração, e não dos que só o são em aparência.

Os flagelos destruidores, que devem causar danos à Humanidade, não sobre um ponto do globo, mas em toda parte, são em toda parte pressentidos pelos Espíritos.


3. — A seguinte comunicação, verbal e espontânea, foi dada sobre o assunto, logo após a leitura da carta acima:


(Sociedade de Paris, 21 de junho de 1867. — Médium: Sr. Morin, em sonambulismo espontâneo.)

“Avança a hora, a hora marcada no grande e perpétuo relógio do infinito, a hora na qual vai começar a operar-se a transformação de vosso globo, para o fazer gravitar rumo à perfeição. Muitas vezes vos foi dito que os mais terríveis flagelos dizimariam as populações; não é preciso que tudo morra para se regenerar? Mas, o que é isto? A morte não é senão a transformação da matéria; o Espírito não morre, apenas muda de habitação. Observai e vereis começar a realização de todas essas previsões. Oh! como são felizes aqueles que nessas terríveis provações foram tocados pela fé espírita sincera! Permanecem calmos no meio da tormenta, como o marinheiro aguerrido em meio à tempestade.

“Eu, neste momento personalidade espiritual, muitas vezes sou acusado de brutalidade, de dureza e de insensibilidade pelas personalidades terrestres!… É verdade, contemplo com calma todos esses flagelos destruidores, todos esses terríveis sofrimentos físicos. Sim, atravesso sem me comover todas essas planícies devastadas, juncadas de restos humanos! Mas se o posso fazer, é que minha visão espiritual vai além desses sofrimentos e, antecipando-se ao futuro, ela se apoia no bem-estar geral que será a consequência desses males passageiros para a geração futura, para vós mesmos, que fareis parte dessa geração e que, então, recolhereis os frutos que tiverdes semeado.

“Espírito de conjunto, olhando do alto de uma esfera onde habita (muitas vezes ele fala de si na terceira pessoa), seu olhar fica em branco; entretanto, sua alma palpita, seu coração sangra em face de todas as misérias que a Humanidade deve atravessar, mas a visão espiritual repousa do outro lado do horizonte, contemplando o resultado que será a sua consequência certa.

“A grande emigração é útil e aproxima-se a hora em que deve efetuar-se… ela já começa… A quem será fatal ou proveitosa? Olhai bem, observadores; considerai os atos desses exploradores dos flagelos humanos, e distinguireis, mesmo com os olhos do corpo, os homens predestinados à decadência. Vede-os ávidos de honras, inflexíveis no ganho, presos, como sua vida, a todas as posses terrenas, e sofrendo mil mortes pela perda de uma parcela do que, entretanto, precisarão deixar… Como será terrível para eles a pena de talião, porquanto, no exílio que os espera, lhes recusarão um copo de água para estancar a sede!… Olhai-os e neles reconhecereis, sob as riquezas que acumulam à custa dos infelizes, os futuros humanos decaídos! Considerai seus trabalhos, e vossa consciência vos dirá se esses trabalhos devem ser pagos lá no alto, ou aqui embaixo! Olhai-os bem, homens de boa vontade, e vereis que o joio começa, desde esta Terra, a ser separado do bom grão.

“Minha alma é forte, minha vontade é grande! — Minha alma é forte porque sua força é o resultado de um trabalho coletivo de alma a alma; minha vontade é grande porque tem como ponto de apoio a imensa coluna formada por todos os sentimentos de justiça e de bem, de amor e de caridade. Eis por que sou forte, eis por que sou calmo para olhar; eis por que seu coração, que bate quase a estourar em seu peito, não se comove. Se a decomposição é o instrumento necessário da transformação, assiste ó minha alma, calma e impassível, a essa destruição!”


[Revista de novembro de 1868.]

4. EPIDEMIA DA ILHA MAURÍCIO.


Na Revista de julho de 1867 descrevemos a terrível doença que devasta a ilha Maurício (antiga Ilha de França) desde dois anos. O último correio nos traz cartas de dois dos nossos irmãos em crença daquele país. Numa se encontra a seguinte passagem:

“Peço que me desculpeis por ter ficado tanto tempo sem vos dar as minhas notícias. Certamente não era o desejo que me faltava, mas antes a possibilidade; como o meu tempo é dividido em duas partes — uma para o trabalho que me faz viver, e a outra para a doença que nos mata — tenho muito poucos instantes para o empregar segundo meus gostos. Contudo, estou um tanto mais tranquilo; há um mês que não tenho tido febre. É verdade que é nesta época que ela parece ceder um pouco, mas, ai! é recuar para subir mais, porque os próximos calores sem dúvida lhe vão restituir o vigor inicial. Assim, bem convencida da certeza dessa perspectiva, vivo como posso, desligando-me tanto quanto possível das vaidades humanas, a fim de facilitar minha passagem ao mundo dos Espíritos, onde, francamente, de modo algum eu lamentaria me encontrar, em boas condições, bem entendido.”

Certo dia um incrédulo dizia, a propósito de uma pessoa que exprimia um pensamento análogo, a respeito da morte: “É preciso ser espírita para ter semelhantes ideias!” Sem o querer, fazia o mais belo elogio do Espiritismo. Não é um grande benefício a calma com a qual ele faz considerar o termo fatal da vida, que tanta gente vê aproximar-se com pavor? Quantas angústias e tormentos são poupados aos que encaram a morte como uma transformação de seu ser, uma transição instantânea, sem interrupção da vida espiritual! Esperam a partida com serenidade, por que sabem para onde vão e o que serão; o que lhes aumenta a tranquilidade é a certeza não só de reencontrar os que lhes são caros, mas a de não ficarem separados dos que ficaram depois deles; de os ver e os ajudar mais facilmente e melhor do que quando vivos; não lamentam as alegrias deste mundo, porque sabem que terão outras maiores, mais suaves, sem mescla de tribulações. O que causa o temor da morte é o desconhecido. Ora, para os espíritas, a morte não tem mais mistérios.


5. — A segunda carta contém o que segue:

“É com um sentimento de profunda gratidão que venho agradecer-vos os sólidos princípios que inculcastes em meu espírito e que, sozinhos, me deram a força e a coragem de aceitar com calma e resignação as rudes provas que venho sofrendo de um ano para cá, pelo fato da terrível epidemia que dizima a nossa população. Sessenta mil almas já partiram!

“Como deveis imaginar, a maior parte dos membros do nosso grupo de Port-Louis, que já começava a funcionar tão bem, teve, como eu, de sofrer nesse desastre geral. Por uma comunicação espontânea de 25 de julho de 1866, foi-nos anunciado que íamos ser obrigados a suspender os nossos trabalhos; três meses depois fomos forçados a descontinuá-los, em consequência da moléstia de vários de nós e a morte de nossos pais e amigos. Até este momento não pudemos recomeçar, embora todos os nossos médiuns estejam vivos, bem como os principais membros do nosso grupo. Várias vezes tentamos reunir-nos novamente, mas não o conseguimos. Eis por que cada um de nós foi obrigado a tomar conhecimento isoladamente de vossa carta, datada de 26 de outubro de 1867, à senhora G…, na qual se encontra a comunicação do doutor Demeure, que nos dá grandes e muito justos ensinamentos sobre tudo quanto sucede conosco. Cada um de nós pôde apreciar a sua justeza, pelo que lhe concerne, porque é de notar que a doença tomou tantas formas múltiplas, que os médicos jamais puderam chegar a um acordo. Cada um seguiu um método particular.

“Entretanto, o jovem doutor Labonté parece ser o que melhor definiu a doença. Quero crer que esteja certo do ponto de vista material, pois passou por todos os sofrimentos de que se fiz narrador. Em nosso ponto de vista espiritualista, poderíamos aí ver uma explicação do prefácio de O Evangelho segundo o Espiritismo, porque o período nefasto que atravessamos foi marcado, no começo, por uma chuva extraordinária de estrelas cadentes, caída em Maurício na noite de 13 para 14 de novembro de 1866. Embora esse fenômeno fosse conhecido, por ter sido muito frequente de setembro a novembro, em certas épocas periódicas, não é menos admirável que, desta vez, as estrelas cadentes foram tão numerosas que impressionaram e fizeram estremecer os que as observaram. Esse imponente espetáculo ficará gravado em nossa memória, porque foi precisamente depois desse acontecimento que a doença tomou um caráter lamentável. Desde esse momento, tornou-se geral e mortal, o que hoje nos pode autorizar a pensar, como diz o doutor Demeure, que chegamos ao período da transformação dos habitantes da Terra, por seu adiantamento moral.

“A propósito dos calmantes recomendados pelo doutor Demeure, falastes de castanhas-da-índia, cujo emprego seria mais vantajoso que o quinino, que afeta os órgãos cerebrais. Aqui não conhecemos esta planta; mas depois da leitura de vossa carta, onde se faz menção dela, o nome de uma outra planta me veio ao espírito por intuição: é o Croton tiglium, vulgarmente chamado em Maurício pinhão-da-índia. Empreguei-o como sudorífero, com muito sucesso, mas apenas as folhas, pois o grão é um veneno violento. Peço-vos por obséquio perguntar ao doutor Demeure o que ele pensa desta planta, e se aprova o emprego que dela fiz, como calmante, porque partilho completamente de sua opinião sobre o caráter desta doença bizarra, que me parece uma variante do “ramannenzaa”, ou febre de Madagascar, salvo as manifestações exteriores.”

Se se pudesse duvidar, por um só instante, da vulgarização universal da Doutrina Espírita, a dúvida desapareceria vendo os que ela faz felizes, as consolações que proporciona, a força e a coragem que dá nos momentos mais penosos da vida, porque está na natureza do homem buscar o que possa garantir a sua felicidade e a sua tranquilidade. Aí está o mais poderoso elemento de propagação do Espiritismo, e que ninguém lho tirará, a menos que dê mais do que ele dá. Para nós é uma grande satisfação ver os benefícios que ele espalha; cada aflito consolado, cada coragem abatida levantada, cada progresso moral operado nos paga ao cêntuplo as nossas penas e as nossas fadigas; eis ainda uma satisfação que ninguém tem o poder de nos tirar.


6. — Lidas na Sociedade de Paris, estas cartas provocaram as seguintes comunicações, que tratam da questão do duplo ponto de vista local e geral, material e moral.


(Sociedade de Paris, 16 de outubro de 1860.)

Em todos os tempos fizeram preceder os grandes cataclismos fisiológicos de sinais manifestos da cólera dos deuses. Fenômenos particulares precediam a irrupção do mal, como uma advertência para se preparar para o perigo. Com efeito, essas manifestações ocorreram não como um presságio sobrenatural, mas como sintomas da iminência da perturbação.

Como se teve razão para vos dizer, nas crises em aparência as mais anormais que, sucessivamente, dizimam as diferentes regiões do globo, nada é deixado ao acaso; elas são a consequência das influências dos mundos e dos elementos uns sobre os outros (outubro de 1868); elas são preparadas de longa data e sua causa é, por conseguinte, perfeitamente normal.

A saúde é o resultado do equilíbrio das forças naturais. Se uma doença epidêmica causa estragos num lugar qualquer, não pode ser senão a consequência de uma ruptura desse equilíbrio; daí o estado particular da atmosfera e os fenômenos singulares que aí podem ser observados.

Os meteoros conhecidos pelo nome de estrelas cadentes são compostos de elementos materiais, como tudo o que cai sob os nossos sentidos; não aparecem senão graças à fosforescência desses elementos em combustão, e cuja natureza especial por vezes desenvolve, no ar respirável, influências deletérias e morbíficas. As estrelas cadentes eram, para Maurício, não o presságio, mas a causa secundária do flagelo. Por que sua ação se exerceu em particular sobre aquela região? Primeiro porque, como disse muito bem o vosso correspondente, ela é um dos meios destinados a regenerar a Humanidade e a Terra propriamente dita, provocando a partida de encarnados e a modificação dos elementos materiais; e, também, porque as causas que determinam essas espécies de epidemia em Madagáscar, no Senegal e por toda parte onde a febre palustre e a febre amarela exercem sua devastação, não existindo na 1lha Maurício, a violência e a persistência do mal deveriam determinar a pesquisa séria de sua fonte, e atrair a atenção sobre a parte que aí pudessem tomar as influências de ordem psicológica.

Os que sobreviveram, em contato forçado com os doentes e os moribundos, foram testemunhas de cenas que a princípio não se deram conta, mas cuja lembrança lhes voltará com a calma, e que não podem ser explicadas senão pela ciência espírita. Os casos de aparições, de comunicações com os mortos, de previsões seguidas de realização, aí têm sido muito comuns. Apaziguado o desastre, a memória de todos esses fatos surgirá e provocará reflexões que, pouco a pouco, levarão a aceitar as nossas crenças.

Maurício vai renascer! o ano novo verá extinguir-se o flagelo de que foi a vítima, não por efeito dos remédios, mas porque a causa terá produzido o seu efeito; outros climas, por sua vez, sofrerão a opressão de um mal da mesma natureza, ou de outra qualquer, determinando os mesmos desastres e conduzindo aos mesmos resultados.

Uma epidemia universal teria semeado o pânico na Humanidade inteira e por muito tempo detido a marcha de todo progresso; uma epidemia restrita, atacando sucessivamente e sob múltiplas formas, cada centro de civilização, produzirá os mesmos efeitos salutares e regeneradores, mas deixará intactos os meios de ação de que a Ciência pode dispor. Os que morrem são feridos de impotência; mas os que veem a morte à sua porta buscam novos meios de a combater. O perigo torna inventivo; e, quando todos os meios materiais estiverem esgotados, cada um será mesmo constrangido a pedir a salvação aos meios espirituais.

Sem dúvida é apavorante pensar em perigos dessa natureza, mas, já que são necessários e não terão senão salutares consequências, é preferível, em vez de os esperar tremendo, preparar-se para os afrontar sem medo, sejam quais forem os seus resultados. Para o materialista, é a morte horrível e o nada depois; para o espiritualista e, em particular, para o espírita, que importa o que acontecer! Se escapar ao perigo, a prova o encontrará sempre inabalável; se morrer, o que conhece da outra vida o fará encarar a passagem sem empalidecer.

Preparai-vos, pois, para tudo, e sejam quais forem a hora e a natureza do perigo, compenetrai-vos desta verdade: a morte não passa de uma palavra vã e não há nenhum sofrimento que as forças humanas não possam dominar. Aqueles a quem o mal for insuportável, serão os únicos que o terão recebido com o riso nos lábios e a indiferença no coração, isto é, que se julgarão fortes em sua incredulidade. [incredulidade no sentido de sua pouca fé.]


Clélie Duplantier.


7 (Sociedade de Paris, 23 de outubro de 1868.)


O croton tiglium certamente pode ser empregado com sucesso, sobretudo em doses homeopáticas, para acalmar as cãibras e restabelecer a circulação normal do fluido nervoso; pode-se também usá-lo localmente, friccionando a pele com uma infusão leve, mas não seria prudente generalizar o seu uso. Não é aqui um medicamento aplicável a todos os doentes, nem a todas as fases da doença. Caso fosse de uso público, só deveria ser aplicado por indicação de pessoas que pudessem constatar a sua utilidade e lhe apreciar os efeitos; de outro modo, aquele que já tivesse experimentado a sua ação salutar, poderia, num dado caso, a ele ser completamente insensível, ou mesmo experimentar os seus inconvenientes. Não é um desses medicamentos neutros, que não fazem qualquer mal, quando não produzem o bem. Só deve ser empregado em casos especiais, e sob a direção de pessoas que possuam conhecimentos suficientes para dirigir a sua ação.

Aliás, espero que não seja necessário experimentar a sua eficácia, e que um período mais calmo se prepara para os infelizes habitantes de Maurício. Não é verdade que já estejam livres, mas, salvo exceção, em geral os ataques não são mortais, a menos que incidentes de outra natureza venham dar-lhes um caráter de gravidade particular. Em si mesma a doença toca o fim. A ilha entra no período de convalescença; pode haver algumas pequenas recrudescências, mas tenho razões para crer que a epidemia irá, de agora em diante, diminuindo até a completa extinção dos sintomas que a caracterizam.

Mas qual será a sua influência sobre os habitantes de Maurício que tiverem sobrevivido ao desastre? Que consequências deduzirão das manifestações de toda natureza, de que foram testemunhas involuntárias? As aparições, de que um grande número foi objeto, produzirão o efeito que delas se tem o direito de esperar? As resoluções tomadas sob o império do medo, do remorso e das censuras de uma consciência perturbada, não serão reduzidas a nada, quando voltar a tranquilidade?

Seria desejável que a lembrança dessas cenas lúgubres se gravasse de maneira indelével em seus espíritos, e os obrigasse a modificar a sua conduta, retificando suas crenças; porque devem estar bem persuadidos de que o equilíbrio não se restabelecerá de maneira completa senão quando os Espíritos estiverem tão despojados de sua iniquidade que a atmosfera seja purificada dos miasmas deletérios que provocaram o nascimento e o desenvolvimento do mal.

Entramos cada vez mais no período transitório, que deve levar à transformação orgânica da Terra e à regeneração de seus habitantes. Os flagelos são os instrumentos de que se serve o grande cirurgião do Universo para extirpar, do mundo, destinado a marchar para frente, os elementos gangrenados que nele provocam desordens incompatíveis como o seu novo estado. Cada órgão, ou melhor dizendo, cada região será, sucessivamente, dissecada por flagelos de diversas naturezas. Aqui, a epidemia sob todas as suas formas; ali, a guerra, a fome. Cada um deve, pois, preparar-se para suportar a prova nas melhores condições possíveis, melhorando-se e se instruindo, a fim de não ser surpreendido de improviso. Algumas regiões já foram provadas, mas seus habitantes se equivocariam redondamente se se fiassem na era de calma, que vai suceder à tempestade, para recaírem nos seus antigos erros. É uma pequena trégua que lhes é concedida, para entrarem num caminho melhor; se não o aproveitarem, o instrumento de morte os experimentará até os trazer ao arrependimento. Bem-aventurados aqueles a quem a prova feriu de começo, porque terão, para se instruírem, não só os males que sofreram, mas o espetáculo daqueles seus irmãos em humanidade, que por sua vez serão feridos. Esperamos que um tal exemplo lhes seja salutar, e que entrem, sem hesitar, na via nova, que lhes permitirá marchar de acordo com o progresso.

Seria desejável que os habitantes de Maurício não fossem os últimos a tirar proveito da severa lição que receberam.


Doutor Demeure.





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