Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868

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Capítulo II

Janeiro - O Espiritismo - Ante a história e a igreja, sua origem, sua natureza, sua certeza, seus perigos

Janeiro
Esta obra é uma refutação do Espiritismo do ponto de vista religioso. É, sem contradita, uma das mais completas e mais bem elaboradas que conhecemos. É escrita com moderação e conveniência, e não se suja pelos epítetos grosseiros a que nos habituaram, na sua maior parte, os contestadores do mesmo partido. Nela, nada de declarações furibundas, nada de personalismos ultrajantes. É o princípio que é discutido. Podemos não estar de acordo com o autor; achar que as conclusões que ele tira de suas premissas são de uma lógica contestável; dizer, por exemplo, depois de ele haver demonstrado, com as provas na mão, que o sol brilha ao meio-dia, que ele está errado ao concluir que deve ser noite, mas não se lhe reprochará a falta de urbanidade na forma.

A primeira parte da obra é consagrada ao histórico do Espiritismo na Antiguidade e na 1dade Média. Essa parte é rica em documentos tirados dos autores sacros e profanos, que atestam laboriosas pesquisas e um estudo sério. É um trabalho que nos propúnhamos fazer um dia e nos sentimos feliz por nos haver o Sr. Abade Poussin poupado esse esforço.

Na segunda parte, intitulada Parte doutrinária, o autor, discutindo os fatos que acaba de citar, inclusive os fatos atuais, conclui, segundo a infalibilidade da Igreja e seus próprios argumentos, que todos os fenômenos magnéticos e espíritas são obra do demônio. É uma opinião como qualquer outra, e respeitável quando sincera. Ora, nós cremos na sinceridade das convicções do Sr. Poussin, embora não tenhamos a honra de conhecê-lo. O que se lhe pode reprochar é não invocar em favor de sua tese senão a opinião dos adversários conhecidos do Espiritismo, assim como as doutrinas e alegações que ele desaprova. Em vão procuraríamos nesse livro a menção das obras fundamentais, assim como qualquer refutação direta das respostas que foram dadas às alegações contraditórias.

Numa palavra, ele não discute a doutrina propriamente dita; ele não toma os seus argumentos corpo a corpo, para esmagá-los sob o peso de uma lógica mais rigorosa.

Além disso, podemos estranhar que o Sr. Abade Poussin, para combater o Espiritismo, se apoie na opinião de homens conhecidos por suas ideias materialistas, tais como os Srs. Littré e Figuier. Ele faz numerosas citações, sobretudo deste último, que mais brilhou por suas contradições do que por sua lógica. Esses senhores, combatendo o princípio do Espiritismo, negando a causa dos fenômenos psíquicos, por isto mesmo negam o princípio da espiritualidade; então, sapam a base da religião, pela qual não professam, como se sabe, uma grande simpatia. Invocando a sua opinião, a escolha não é feliz; poder-se-ia mesmo dizer que é desastrosa, pois é excitar os fiéis a ler escritos que não são nada ortodoxos. Vendo-o beber em tais fontes, poder-se-ia crer que ele não julgou os outros bastante preponderantes.

O Sr. Abade Poussin não contesta nenhum dos fenômenos espíritas; ele virtualmente prova a sua existência pelos fatos autênticos que cita, e que colhe indiferentemente na história sagrada e na história pagã. Aproximando uns dos outros, não pode deixar de reconhecer a sua analogia. Ora, em boa lógica, da similitude dos efeitos deve concluir-se pela similitude das causas. Entretanto, o Sr. Poussin conclui que os mesmos fatos são miraculosos e de fonte divina em certos casos, e diabólicos em outros.

Os homens que professam as mesmas crenças que o Sr. Figuier também têm sobre esses mesmos fatos duas opiniões: negam-nos simplesmente e os atribuem à charlatanice; quanto aos que são verificados, esforçam-se para ligá-los apenas às leis da matéria. Perguntai-lhes o que pensam dos milagres do Cristo: eles vos dirão que são fatos lendários, contos inventados para as necessidades da causa ou produtos de imaginações superexcitadas e em delírio.

É verdade que o Espiritismo não reconhece nos fenômenos psíquicos um caráter sobrenatural; ele os explica pelas faculdades e atributos da alma, e como a alma está na Natureza, os considera como efeitos naturais, que se produzem em virtude de leis especiais, até agora desconhecidas, que o Espiritismo dá a conhecer. Realizando-se esses fenômenos aos nossos olhos, em condições idênticas, acompanhados das mesmas circunstâncias, e por intermédio de indivíduos que nada têm de excepcional, daí concluiu pela possibilidade dos que se passaram em tempos mais remotos, e isto pela mesma causa natural.

O Espiritismo não se dirige às pessoas convictas da existência desses fenômenos, e que são perfeitamente livres de neles ver milagres, se tal é sua opinião, mas aos que os negam precisamente por causa do caráter miraculoso que lhes querem dar. Provando que esses fatos não têm de sobrenatural senão a aparência, ele os faz aceitos pelas mesmas pessoas que os repeliam. Os espíritas foram recrutados, em imensa maioria, entre os incrédulos, contudo, hoje não há um só que negue os fatos realizados pelo Cristo. Ora, vale mais crer na existência desses fatos sem o sobrenatural, ou neles não crer absolutamente? Aqueles que os admitem a um título qualquer não estão mais perto de vós do que aqueles que os rejeitam completamente? A partir do momento em que o fato é admitido, não resta senão provar a sua fonte miraculosa, o que deve ser mais fácil, caso a fonte seja real, do que quando o próprio fato é contestado.

Para combater o Espiritismo, apoiando-se o Sr. Poussin na autoridade dos que rejeitam até o princípio espiritual, seria ele dos que pretendem que a incredulidade absoluta é preferível à fé adquirida pelo Espiritismo?

Citamos integralmente o prefácio do livro do Sr. Poussin, seguindo-o de algumas reflexões:

“O Espiritismo, é preciso mesmo reconhecê-lo, envolve como numa imensa rede a Sociedade inteira, e por seus profetas, por seus oráculos, por seus livros e por seu jornalismo, esforça-se por minar surdamente a Igreja católica. Se ele nos prestou o serviço de derrubar as teorias materialistas do século dezoito, dá-nos em troca uma revelação nova, que sapa pela base todo o edifício da revelação cristã. Contudo, por um fenômeno estranho, ou melhor, por força da ignorância e da fascinação que excita a curiosidade, quantos católicos brincam diariamente com o Espiritismo, sem preocupar-se absolutamente com os seus perigos! É bem verdade que os espíritos ainda estão divididos quanto à essência e mesmo quanto à realidade do Espiritismo, e é provavelmente devido a essas incertezas que a maioria acredita que pode formar a própria consciência e usar o Espiritismo como um curioso divertimento. Não obstante, no fundo das almas timoratas e delicadas manifesta-se uma grande ansiedade. Quantas vezes não temos ouvido estas perguntas interessantes: ‘Dizei-nos a verdade. Que é o Espiritismo? Qual a sua origem? Credes nessa genealogia que queria ligar os fenômenos do Espiritismo à magia antiga? Admitis os fatos estranhos do magnetismo e das mesas girantes? Credes na intervenção dos Espíritos e na evocação das almas; no papel dos anjos e dos demônios? É permitido interrogar as mesas girantes e consultar os espiritistas? Que pensam sobre todas essas questões os teólogos, os bispos?... A Igreja Romana tomou algumas decisões, etc, etc.’

“Estas perguntas, que ainda retinem aos nossos ouvidos, inspiraram o pensamento deste livro, que tem por objetivo responder a todas, nos limites de nossas forças. Assim, para estar mais seguro e mais convincente, jamais afirmamos nada sem uma autoridade grave, e nada decidimos que os bispos e Roma não tenham decidido.

“Entre os que estudaram especialmente estas matérias, uns rejeitam em massa todos os fatos extraordinários que o Espiritismo se atribui. Outros, concedendo larga margem às alucinações e ao charlatanismo, reconhecem que é impossível deixar de admitir certos fenômenos inexplicáveis e não explicados, tão inconciliáveis com os ensinamentos gerais das ciências naturais quanto desconcertantes para a razão humana; entretanto, eles procuram interpretá-los, ou por certas leis misteriosas da Fisiologia, ou pela intervenção da grande alma da Natureza, da qual a nossa é simples emanação, etc.

“Vários escritores católicos, forçados a admitir os fatos, achando a solução natural por vezes impossível e a explicação panteísta absurda, não hesitam em reconhecer em certos fatos do Espiritismo a intervenção direta do demônio. Para estes, o Espiritismo não é senão a continuação dessa magia pagã que aparece em toda a História, desde os mágicos do Faraó, da pitonisa de Endor, dos oráculos de Delfos, das profecias das sibilas e dos adivinhos, até as possessões demoníacas do Evangelho e os fenômenos extraordinários e constatados do magnetismo contemporâneo.

“A Igreja não se pronunciou sobre as discussões especulativas; ela abandona a questão histórica das origens do Espiritismo e a questão psicológica de seus agentes misteriosos à vã disputa dos homens. Teólogos sérios, bispos e doutores particulares têm sustentado essas últimas opiniões, oficialmente; Roma não os aprova nem os censura. Mas se a Igreja prudentemente guardou silêncio sobre as teorias, levantou a voz nas questões práticas, e, em presença das incertezas da razão, ela assinala perigos para a consciência. Uma ciência curiosa e até mesmo inocente em si pode tornar-se, por causa dos abusos frequentes, uma fonte de perigos; assim, Roma condenou como perigosas para os costumes, certas práticas e certos abusos do magnetismo, cujos graves inconvenientes os próprios espíritas não dissimulam. Ainda mais, os bispos julgaram dever interditar aos seus diocesanos, e em qualquer hipótese, como supersticiosos e perigosos para os costumes e para a fé, não só os abusos do magnetismo, mas o uso de interrogar mesas girantes.

“Para nós, na questão especulativa, posta em presença dos que veem o demônio em toda parte e dos que não o veem em parte alguma, quisemos, mantendo-nos à distância dos dois escolhos, estudar as origens históricas do Espiritismo; examinar a certeza dos fatos e discutir imparcialmente os sistemas psicológicos e panteístas pelos quais eles tudo querem interpretar. Evidentemente, quando refutamos vários desses sistemas, a ninguém pretendemos impor os nossos próprios pensamentos, embora as autoridades sobre as quais nos apoiamos nos pareçam da mais alta gravidade. Separando das opiniões livres tudo o que é de fé, como a existência dos anjos e dos demônios, as possessões e as obsessões demoníacas do Evangelho, a legitimidade e a força dos exorcismos na 1greja etc., deixamos a cada um o direito, não de negar o comércio voluntário dos homens com o demônio, o que seria temerário, segundo o Padre Perronne, e conduziria ao pirronismo histórico, mas reconhecemos a todo católico o direito de não ver no Espiritismo a intervenção do demônio, se os nossos argumentos parecerem mais especiosos do que sólidos, e se a razão e o estudo mais atento dos fatos provarem o contrário.

“Quanto à questão prática, não nos reconhecemos o direito de absolver o que Roma condena, e se algumas almas ainda hesitassem, nós as remeteríamos simplesmente às decisões romanas, às interdições episcopais, e mesmo às decisões teológicas que reproduzimos por inteiro.

“O plano deste livro é muito simples. A primeira parte, ou parte histórica, depois de haver dado o ensino das santas Escrituras e a tradição de todos os povos sobre a existência e o papel dos Espíritos, nos inicia aos fatos mais salientes do Espiritismo ou da magia, desde a origem do mundo até os nossos dias.

“A segunda parte, ou parte doutrinal, expõe e discute os diversos sistemas imaginados para descobrir o agente verdadeiro do Espiritismo; após ter precisado da melhor forma possível o ensino da teologia católica sobre a intervenção geral dos Espíritos, e dado livre curso a opiniões livres sobre o agente misterioso da magia moderna, assinalamos aos fiéis os perigos do Espiritismo para a fé, para os costumes e mesmo para a saúde ou para a vida.

“Possam estas páginas, mostrando o perigo, concluir o bem que outros começaram!... Inútil acrescentar que, filhos dóceis da Igreja, condenamos por antecipação tudo quanto Roma pudesse desaprovar.”

O abade Poussin reconhece duas coisas: 1º ─ que o Espiritismo envolve, como numa imensa rede, a Sociedade inteira; 2º ─ que prestou à Igreja o serviço de derrubar as teorias materialistas do século dezoito. Vejamos que consequências decorrem destes dois fatos.

Como dissemos, a grande maioria dos adeptos do Espiritismo é recrutada entre os incrédulos. Com efeito, perguntai aos adeptos do Espiritismo em que eles acreditavam antes de ser espíritas, e 90% deles responderão que não acreditavam em nada ou, pelo menos, que duvidavam de tudo. Para eles, a existência da alma era uma hipótese, sem dúvida desejável, mas incerta; a vida futura era uma quimera; o Cristo era um mito ou, no máximo, um filósofo; Deus, se ele existia, devia ser injusto, cruel e parcial, razão pela qual eles tanto gostavam de crer que ele não existisse.

Hoje eles creem, e sua fé é inabalável, porque ela está fundamentada na evidência e na demonstração e satisfaz à sua razão; o futuro não mais é uma esperança, mas uma certeza, porque eles veem a vida espiritual manifestar-se aos seus olhos; dela não duvidam mais do que duvidam do nascer do sol. É verdade que eles não acreditam nem nos demônios nem nas chamas eternas do inferno, mas em compensação acreditam firmemente num Deus soberanamente justo, bom e misericordioso; eles não creem que o mal venha dele, que é a fonte de todo o bem, nem dos demônios, mas das próprias imperfeições do homem; que se o homem se reformar, o mal não existirá mais; vencer-se a si mesmo é vencer o demônio. Tal é a fé dos espíritas, e a prova de sua força é que se esforçam por se tornarem melhores, por dominar seus maus pendores e por colocar em prática as máximas do Cristo, olhando todos os homens como irmãos, sem acepção de raças, de castas, nem de seitas, perdoando aos seus inimigos, retribuindo o mal com o bem, a exemplo do divino modelo.

Sobre quem devia o Espiritismo ter mais fácil acesso? Não é sobre os que tinham fé e a quem esta bastava; que nada pediam e de nada necessitavam, mas sobre aqueles a quem faltava a fé. Como o Cristo, ele foi aos doentes e não aos que tinham saúde; aos que têm fome e não aos saciados. Ora, os doentes são os que se acham torturados pelas angústias da dúvida e da incredulidade.

E o que foi que ele fez para trazê-los a si? Foram grandes reforços de reclames? Indo pregar a doutrina em praças públicas? Violentando as consciências? Absolutamente, porque estes são os meios da fraqueza, e se ele os tivesse usado, teria mostrado que duvidava do poder de sua moral. Ele tem como regra invariável, conforme a lei da caridade ensinada pelo Cristo, não constranger ninguém, respeitar todas as convicções; contentou-se em anunciar os seus princípios, em desenvolver em seus escritos as bases sobre as quais estão assentadas as suas crenças, e deixou virem a si os que quisessem. Se vieram muitos, é que a muitos conveio e muitos nele acharam o que não haviam achado alhures. Como ele recrutou principalmente entre os incrédulos, se, em alguns anos, ele envolveu o mundo, isto prova que os incrédulos e os que não estão satisfeitos com o que lhes dão são numerosos, porque não se é atraído senão para onde se encontra algo melhor do que o que se tem. Dissemos centenas de vezes: Querem combater o Espiritismo? Que deem algo melhor que ele dá.

Reconheceis, senhor abade, que o Espiritismo prestou à Igreja o serviço de derrubar as teorias materialistas. Sem dúvida é um grande feito, do qual ele se glorifica. Mas como o conseguiu? Precisamente com o auxílio desses meios que chamais diabólicos, das provas materiais que ele dá da alma e da vida futura; foi com a manifestação dos Espíritos que ele confundiu a incredulidade e que triunfará definitivamente. E dizeis que tal serviço é obra de Satã? Mas então não deveríeis querê-lo tanto, porquanto ele próprio destrói a barreira que retinha os que ele havia açambarcado. Lembrai-vos da resposta do Cristo aos Fariseus, que lhe falavam exatamente na mesma linguagem, acusando-o de curar os doentes e de expulsar os demônios pelos demônios. Lembrai-vos, também, das palavras de Monsenhor Frayssinous, bispo de Hermópolis, sobre este mesmo tema, em suas conferências sobre a religião: “Certamente, um demônio que procurasse destruir o reino do vício para estabelecer o da virtude, seria um demônio esquisito, porque se destruiria a si próprio.”

Se esse resultado obtido pelo Espiritismo é obra de Satã, como é que a Igreja lhe deixou o mérito e não o obteve ela própria? Como deixou a incredulidade invadir a Sociedade? Entretanto, não foram os meios de ação que lhe faltaram. Não tem ela um pessoal e recursos materiais imensos; as pregações, desde as capitais até as menores aldeias; a pressão que exerce sobre as consciências através da confissão; o terror das penas eternas; a instrução religiosa que acompanha a criança durante todo o curso da sua educação; o prestígio das cerimônias do culto e o de sua ancianidade? Como é que uma doutrina apenas desabrochada, que não tem sacerdotes nem templos nem culto nem pregações; que é combatida sistematicamente pela Igreja, caluniada, perseguida como o foram os primeiros cristãos, em tão pouco tempo conduziu à fé e à crença na imortalidade da alma um tão grande número de incrédulos? Entretanto, a coisa não era muito difícil, pois bastou à maioria ler alguns livros para ver se esvaírem suas dúvidas.

Tirai daí todas as consequências que quiserdes, mas concordai que se isto é obra do diabo, ele fez o que vós mesmos não pudestes fazer e que ele desempenhou a vossa tarefa.

Sem dúvida direis que o que depõe contra o Espiritismo é que ele não emprega, para convencer, os mesmos argumentos que vós, e que se triunfa da incredulidade, não conduz completamente à vós.

Mas o Espiritismo não tem a pretensão de marchar nem convosco nem com ninguém. Ele mesmo faz os seus trabalhos, e como entende. De boa-fé, acreditais que se a incredulidade foi refratária aos vossos argumentos, o Espiritismo teria triunfado servindo-se dos mesmos? Se um médico não cura um doente com um remédio, outro médico o curará empregando o mesmo remédio?

O Espiritismo não procura mais trazer os incrédulos ao regaço absoluto do Catolicismo mais do que ao de qualquer outro culto.

Em lhes fazendo aceitar as bases comuns a todas as religiões, ele destrói o principal obstáculo, e os leva a fazer a metade do caminho; a cada uma cabe fazer o resto, no que lhe concerne; aquelas que fracassam dão uma prova manifesta de impotência.

A partir do instante em que a Igreja reconhece a existência de todos os fatos de manifestações sobre os quais se apoia o Espiritismo; que ela os reivindica para si mesma, a título de milagres divinos; que há entre os fatos que se passam nos dois campos uma analogia completa quanto aos efeitos, analogia que o Sr. Poussin demonstra com a última evidência e peças de apoio, pondo-as à vista, toda a questão se reduz, então, em saber se é Deus que age de um lado e o diabo do outro. É uma questão de pessoa. Ora, quando duas pessoas fazem exatamente a mesma coisa, daí se conclui que uma é tão poderosa quanto a outra. Todo o argumento do Sr. Poussin termina, assim, por demonstrar que o diabo é tão poderoso quanto Deus.

De duas, uma: ou os efeitos são idênticos, ou não o são; se são idênticos, é que provêm de uma mesma causa, ou de duas causas equivalentes; se não o são, mostrai em que diferem. É nos resultados? Mas, então a comparação seria em favor do Espiritismo, porque ele conduz a Deus os que nele não acreditavam.

Fica bem entendido, portanto, conforme a decisão formal das autoridades competentes, que os Espíritos que se manifestam não são e nem podem ser senão demônios. Concordai, entretanto, senhor abade, que se esses mesmos Espíritos, em vez de contradizer a Igreja sobre alguns pontos, tivessem sido em tudo da sua opinião, se tivessem vindo apoiar todas as suas pretensões temporais e espirituais, aprovar sem restrição tudo quanto ela diz e tudo o que faz, ela não os chamaria de demônios, mas de Espíritos angélicos.

O Sr. Abade Poussin escreveu seu livro, diz ele, tendo em vista premunir os fiéis contra os perigos que pode correr sua fé, pelo estudo do Espiritismo. É testemunhar pouca confiança na solidez das bases sobre as quais está assente essa fé, pois pode desmoronar tão facilmente. O Espiritismo não tem o mesmo receio. Tudo quanto puderam dizer e fazer contra ele não lhe fez perder uma polegada de terreno, pois ele o ganha todos os dias; entretanto, não faltou talento a mais de um de seus adversários. As lutas empenhadas contra ele, longe de enfraquecê-lo, fortaleceramno; elas contribuíram poderosamente para difundi-lo mais rapidamente do que terse-ia difundido sem isso, de tal sorte que essa rede que em alguns anos envolveu a Sociedade inteira, é, em grande parte, obra de seus antagonistas. Sem nenhum dos meios materiais de ação que fazem os sucessos neste mundo, ele não se propagou senão pelo poder da ideia. Considerando-se que os argumentos com a ajuda dos quais o combateram não o derrubaram, é que, aparentemente, os julgaram menos convincentes que os seus. Quereis ter o segredo de sua fé? Ei-lo: É que antes de crer, eles compreendem.

O Espiritismo não teme a luz; ele a chama sobre suas doutrinas, porque quer ser aceito livremente e pela razão. Longe de temer que os espíritas percam sua fé pela leitura de obras que o combatem, ele lhes diz: Lede tudo, o pró e o contra, e escolhei com conhecimento de causa. É por isto que assinalamos à sua atenção a obra do Sr. Abade Poussin[1].


Transcrevemos, a seguir, sem comentários, alguns fragmentos tirados da primeira parte.

1. ─ Certos católicos, mesmo piedosos, em matéria de fé têm ideias singulares, resultado inevitável do ceticismo ambiente que, malgrado seu, os domina e dos quais sofrem a influência deletéria. Falai de Deus, de Jesus Cristo, e eles aceitam tudo imediatamente; mas se tentardes falar do demônio e sobretudo da intervenção diabólica na vida humana, não mais vos entendem. Como os nossos racionalistas contemporâneos, de boa vontade eles tomariam o demônio por um mito ou uma personificação fantástica do gênio do mal; os êxtases dos santos por fenômenos de catalepsia e as possessões diabólicas, mesmo as do Evangelho, senão por epilepsia, ao menos por parábolas. Santo Tomás, em sua linguagem precisa, responde em duas palavras a esse perigoso ceticismo: “Se a facilidade de ver falar o demônio procede da ignorância das leis da Natureza e da credulidade, a tendência geral a não ver sua ação em parte alguma procede da irreligião e da incredulidade.” Negar o demônio é negar o Cristianismo e negar Deus.

2. ─ A crença na existência dos Espíritos e sua intervenção no domínio de nossa vida, mais ainda, o próprio Espiritismo ou a prática da evocação dos Espíritos, almas, anjos ou demônios, remontam à mais alta Antiguidade, e são tão antigas quanto o mundo. ─ Sobre a existência e o papel dos Espíritos, interroguemos, para começar, nossos livros sagrados, os mais antigos e os mais incontestados livros de História, que são, ao mesmo tempo, o código divino de nossa fé. O demônio seduzindo sob uma forma sensível Adão e Eva no Paraíso; os querubins que guardavam a sua entrada; os anjos que visitam Abraão e discutem com ele a questão da salvação de Sodoma; os anjos insultados na cidade imunda, arrancando Loth ao incêndio; o anjo de Isaac, de Jacob, de Moisés e de Tobias; o demônio que mata os sete maridos de Sara; o que tortura a alma e o corpo de Job; o anjo exterminador dos egípcios sob Moisés, e dos israelitas sob David; a mão invisível que escreve a sentença Baltazar; o anjo que fere Heliodoro; o anjo da Encarnação, Gabriel, que anuncia São João e Jesus Cristo; que mais é preciso para mostrar a existência dos Espíritos e a crença na intervenção desses Espíritos, bons ou maus, nos atos da vida humana? Deus fez dos Espíritos seus embaixadores, diz o salmista; são os ministros de Deus, diz São Paulo; São Pedro nos ensina que os demônios rondam sem cessar em torno de nós, como leões rugidores; São Paulo, tentado por eles, nos declara que o ar está cheio deles.

3. ─ Notamos aqui que as tradições pagãs estão em perfeita harmonia com as tradições judias e cristãs. O mundo, segundo Tales e Pitágoras, está cheio de substâncias espirituais. Todos esses autores os dividem em Espíritos bons e maus; Empédocles diz que os demônios são punidos pelas faltas que cometeram; Platão fala de um príncipe, de natureza malfazeja, preposto desses Espíritos expulsos pelos deuses e caídos do céu, diz Plutarco. Todas as almas, acrescenta Porfírio, que têm por princípio a alma do Universo, governam os grandes países situados em baixo da Lua: são os bons demônios (Espíritos); e, fiquemos bem convencidos, eles não agem senão no interesse de seus administrados, seja com o cuidado que dedicam aos animais, seja quando velam pelos frutos da terra, seja quando presidem às chuvas, aos ventos moderados, ao bom tempo. É preciso ainda colocar na categoria dos bons demônios, segundo Platão, aqueles que são encarregados de levar aos deuses as preces dos homens, e que trazem aos homens as advertências, as exortações, os oráculos dos deuses.

4. ─ Os árabes chamam o chefe dos demônios Iba; os caldeus enchem com eles o ar; Confúcio, enfim, ensina absolutamente a mesma doutrina: “Como são sublimes as virtudes dos Espíritos! dizia ele; nós os olhamos e não os vemos; escutamo-los e não os ouvimos; unidos à substância das coisas, eles não podem delas separar-se; eles são a causa de que todos os homens em todo o Universo se purifiquem e se revistam de roupas de gala para oferecer sacrifícios; estão espalhados como as ondas do oceano acima de nós, à nossa esquerda e à nossa direita.” O culto dos Manitôs, espalhado entre os selvagens da América, não é senão o culto dos Espíritos.

5. ─ Por seu lado, os Pais da Igreja interpretaram admiravelmente a doutrina das Escrituras sobre a existência e a intervenção dos Espíritos: “Nada há no mundo visível que não seja regido e disposto pela criatura invisível”, diz São Gregório. “Cada ser vivo tem, neste mundo, um anjo que o dirige”, acrescenta Santo Agostinho. “Os anjos, diz São Gregório de Nazianza, são os ministros da vontade de Deus; eles têm, naturalmente e por comunicação, uma força extraordinária; eles percorrem todos os lugares e se acham em toda parte, tanto pela prontidão com que exercem seu ministério, quanto pela leveza de sua natureza. Uns são encarregados de velar sobre alguma parte do Universo que lhes é designada por Deus, de quem dependem em todas as coisas; outros estão na guarda das cidades e das igrejas; ajudam-nos em tudo quanto fazemos de bem.

6. ─ Em relação à razão fundamental, Deus governa imediatamente o Universo; mas relativamente à execução, há coisas que ele governa por intermediários.

7. ─ Quanto à própria evocação dos Espíritos, almas, anjos ou demônios, e a todas as práticas da magia, de que o Espiritismo não passa de uma forma mais ou menos desenvolvida de charlatanismo, é uma prática tão antiga quanto a crença nos próprios Espíritos.

8. ─ Assim explica São Cipriano os mistérios do Espiritismo pagão: “Os demônios se introduzem nas estátuas e nos simulacros que o homem adora; são eles que animam as fibras das vítimas, que inspiram com seu sopro o coração dos adivinhos e dão uma voz aos oráculos. Mas como podem eles curar? Loedunt primo, diz Tertuliano, postque laedere desinunt, et curasse creduntur. Primeiro ferem e, cessando de ferir, passam por curar. Na Índia, são os Lamas e os bramanistas que, desde a mais alta Antiguidade, têm o monopólio dessas mesmas evocações, que ainda continuam. “Eles faziam comunicar-se o Céu com a Terra, o homem com a Divindade, absolutamente como os nossos médiuns atuais. A origem desse privilégio parece remontar à própria gênese dos hindus e pertencer à casta sacerdotal desses povos. Saída do cérebro de Brahma, a casta sacerdotal deve ficar mais perto da natureza desse deus criador e entrar mais facilmente em comunicação com ele do que a casta guerreira, nascida de seus braços e, com mais forte razão, que a casta dos párias, formada da poeira de seus pés.”

9. ─ Mas o fato mais interessante e mais autêntico da História, é, sem dúvida, a evocação de Samuel pelo médium da Pitoniza de Endor, que interroga Saul: “Samuel tinha morrido, diz a Escritura; toda Israel o tinha chorado e ele tinha sido enterrado na cidade de Ramatha, lugar de seu nascimento. E Saul havia expulsado os magos e os adivinhos de seu reino. Estando então reunidos, os Filisteus vieram acampar em Sunam; por seu lado, Saul reuniu todas as tropas de Israel e veio para Gilboé. E tendo visto o exército dos Filisteus, foi tomado de espanto e o medo o tomou até o fundo do coração. Ele consultou o Senhor, mas o Senhor não lhe respondeu, nem em sonhos, nem pelos sacerdotes, nem pelos profetas. Então ele disse aos seus oficiais: “Procurai-me uma mulher que tenha um Espírito de Píton, para que eu vá encontrála e que, por meio dela, eu possa consultá-lo.” Seus servidores lhe disseram: “Há em Endor uma mulher que tem um Espírito de Píton.” Então Saul se disfarçou, trocou de roupas e lá foi, acompanhado por apenas dois homens. Ele foi à noite à casa da mulher e lhe disse: “Consultai para mim o Espírito de Píton e evocai-me aquele que eu vos disser.” Essa mulher lhe respondeu: “Vós sabeis tudo o que fez Saul e de que maneira exterminou os magos e os adivinhos de todas as suas terras. Por que, então, armais uma cilada para me perder?” Saul jurou pelo Senhor e lhe disse: “Viva o Senhor! Deste não vos virá nenhum mal.” A mulher lhe disse: “Quem quereis ver?” Ele respondeu: “Fazei-me vir Samuel.” A mulher, tendo visto Samuel, soltou um grande grito, e disse a Saul: “Por que me enganastes? Porque sois Saul.” O rei lhe disse: “Não temais. Que vistes?” ─ Eu vi, disse-lhe ela, um deus que saía da terra. Saul lhe disse: “Como era ele feito?” ─ “É, disse ela, um velho coberto com um manto”. Saul reconheceu, então, que era Samuel, e lhe fez uma profunda reverência, curvando-se até o chão. Samuel disse a Saul: “Por que perturbastes o meu repouso, fazendo-me evocar?” Saul lhe respondeu: “Estou numa situação extrema. Os Filisteus me fazem guerra e Deus se afastou de mim: ele não me quis responder nem pelos profetas, nem em sonhos. Eis por que vos fiz evocar, a fim de que ensineis o que devo fazer.” Samuel lhe disse: “Por que vos dirigis a mim, se o Senhor vos abandonou e passou ao vosso rival? Porque o Senhor vos tratará como eu disse de sua parte. Ele estraçalhará o vosso reino por vossas mãos, para dá-lo a David, vosso genro, porque não obedecestes à voz do Senhor, nem executastes a sentença de sua cólera contra os amalacitas. É por isto que o Senhor vos envia hoje aquilo que sofreis. Ele entregará Israel convosco nas mãos dos Filisteus. Amanhã estareis comigo, vós e o vosso filho, e o Senhor abandonará aos filisteus o campo de Israel.” Saul caiu imediatamente e ficou estendido no chão, porque as palavras de Samuel o tinham apavorado, e as forças lhe faltavam, porque ainda não tinha comido nada naquele dia. A maga veio a ele na perturbação em que ele estava e lhe disse: ‘Vedes que vossa serva vos obedeceu, que expus minha vida por vós e que me entreguei ao que desejáveis de mim.’ “Eis que há quarenta anos faço profissão de evocar os mortos a serviço de estranhos, disse Philon após essa história, mas jamais vi semelhante aparição. O Eclesiastes encarregou-se de nos provar que se trata de uma verdadeira aparição e não de uma alucinação de Saul: “Samuel, depois de sua morte, falou ao rei, diz o Espírito Santo, predisse o fim de sua vida e, saindo da terra, ergueu sua voz para profetizar a ruína de sua nação, por causa de sua impiedade.”


[1] Um vol. in-12; preço, 3 francos. No livreiro Sarlit, Rua Saint-Sulpice, 23. Paris.


Dezembro I

Dezembro

I. Considerações preliminares. II. Extrato do relatório da Caixa do Espiritismo. — III. Dos cismas. — IV. O chefe do Espiritismo. — V. Comissão central. — Departamentos da Comissão central. — VI. Obras fundamentais da Doutrina. — VII. Atribuições do Comitê. — VIII. Vias e meios. — IX. Conclusão.


I.


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram. Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora se exporem a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos.

Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas.

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá.

Se bem não haja ele dito ainda sua última palavra sobre todos os pontos, aproxima-se do seu complemento e soou a hora de se lhe oferecer uma base forte e durável, susceptível, contudo, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias ulteriores comportem e que ofereça toda a segurança aos que inquiram quem, depois de nós, lhe tomará as rédeas.

A Doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa nas leis da Natureza e porque, melhor do que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações dos homens. Entretanto, a sua difusão e a sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias várias, algumas das quais subordinadas à marcha geral das coisas, outras inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização. É destas que nos vamos ocupar especialmente neste momento.

Conquanto a questão de substância seja preponderante em tudo e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui importância capital; poderia mesmo sobrepujar momentaneamente e suscitar embaraços e atrasos, conforme a maneira por que fosse resolvida.

Houvéramos, pois, feito coisa incompleta e deixado grandes dificuldades para o futuro, se não prevíssemos as que podem surgir. Com o intuito de evitá-las foi que, com o concurso dos bons Espíritos que nos assistem em nossos trabalhos, elaboramos um plano de organização, pondo em jogo a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais se chocaram a maioria das doutrinas que apareceram no mundo. Podendo este plano prestar-se a todos os desenvolvimentos que reserva o futuro, demos, por isto mesmo, a esta constituição a qualificação de transitória.

O plano aqui exposto concebemo-lo há longo tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo, é certo, mas o bastante para mostrar que não é esta, hoje, uma concepção nova e que, trabalhando na parte teórica da obra, não nos descuidávamos do lado prático.

Antes de abordar a fundo a questão, parece-nos útil lembrar algumas passagens do relatório que apresentamos à Sociedade de Paris, no dia 5 de maio de 1865, a propósito da caixa do Espiritismo, e que foi publicado na Revista de junho de 1865. As considerações que ele encerra se ligam diretamente ao nosso assunto, do qual elas são as preliminares indispensáveis.


II.


EXTRATO DO RELATÓRIO DA CAIXA DO ESPIRITISMO, FEITO A SOCIEDADE DE PARIS, EM 5 DE MAIO DE 1865.

Muito se há falado dos proventos que eu retirava de minhas obras. Certamente, nenhuma pessoa séria acredita realmente em meus milhões, a despeito da afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca, tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. (Revista de junho de 1862). Além disso, não obstante o que disse o autor de uma brochura que conheceis, provando, por cálculos hiperbólicos, que o meu orçamento de receita ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porquanto, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários (Revista de junho de 1863), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém, ninguém me deu algo para mim pessoalmente; numa palavra, não vivo a expensas de ninguém, porquanto, das somas que me foram voluntariamente confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito.

As minhas imensas riquezas proviriam, pois, das minhas obras espíritas. Conquanto estas obras tenham alcançado inesperado êxito, basta ter um pouco de familiaridade com os negócios de livraria, para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns centavos por exemplar. Mas, avultado ou mínimo, sendo esse lucro fruto do meu trabalho, ninguém tem o direito de intrometer-se no emprego que lhe dou; ainda mesmo que se elevasse a milhões, ninguém tem nada a ver com isto, desde que a compra de livros, assim como a assinatura da Revista, é facultativa e não se impõe em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade. Falando comercialmente, estou na posição de todo homem que recolhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor, que tanto pode triunfar, quanto fracassar.

Mesmo não tendo, neste particular, nenhuma conta a prestar, creio útil à própria causa a que me devotei, dar algumas explicações.

Antes de mais, direi que minhas obras não são propriedade exclusiva minha, o que me obriga a comprá-las de meu editor e pagá-las como um livreiro, à exceção da Revista; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas dívidas incobráveis e pelas distribuições gratuitas, feitas no interesse da Doutrina, a pessoas que, sem isto, delas estariam privadas. Um cálculo muito fácil prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, é suficiente para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. Somando tudo e feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes; o que faço dela? Isto é o que mais preocupa certa gente.

Quem quer que outrora tenha visto a nossa habitação e a veja hoje poderá atestar que nada mudou na nossa maneira de viver, desde que entrei a ocupar-me com o Espiritismo; é tão simples agora como o era antigamente. Então é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Teria eu, então, a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Creio que meu caráter e meus hábitos jamais permitiram que se fizesse tal suposição. O que pretendem? Desde que isto não me aproveita, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia saberão a cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os fazedores de histórias pouparão a imaginação; hoje eu me limito a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto devo entrar nalguns detalhes íntimos, mas que são necessários, e para os quais vos peço perdão.

Sempre tivemos do que viver, muito modestamente é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo e o de um modesto emprego, que me vi forçado a deixar quando os trabalhos da Doutrina absorveram todo o meu tempo.

Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho; em pouco tempo vi-me arrastado por um movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr de modo algum em evidência e permanecer desconhecido; mas, prontamente ultrapassado, isto não me foi possível: tive de renunciar ao meu gosto pelo insulamento, sob pena de abdicar da obra empreendida e que crescia de dia para dia; foi preciso seguir seu impulso e tomar-lhe as rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, seguramente não fui eu que o procurei, pois é notório que nem a devo à propaganda, nem à camaradagem da imprensa, e que jamais aproveitei de minhas relações para me lançar no mundo, quando isto me teria sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto se desdobrava à minha frente, recuando os seus limites; compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorarem, as dificuldades e os obstáculos redobraram as minhas energias; vi o objetivo e resolvi atingi-lo com a assistência dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas; foi a obra de minha vida: a ela dei todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe meu repouso, minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrecusáveis.

Sem nos afastarmos do nosso gênero de vida, nem por isso essa posição excepcional deixou de nos criar menos necessidades a que só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiriam prover. Seria difícil a outrem imaginar a multiplicidade das despesas que aquela posição acarreta e que, sem ela, eu teria evitado.

Pois bem, senhores! o que me proporcionou suprimento aos meus recursos foi o produto das minhas obras. E o digo com satisfação, pois foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Assim, eu trouxe uma larga cota-parte à caixa do Espiritismo. Os que ajudam a propagação das obras não poderão, pois, dizer que trabalham para me enriquecer, porque o produto da venda de todo livro, de toda assinatura da Revista, redunda em proveito da Doutrina e não do indivíduo.

Mas, prover ao presente não era tudo: importava também pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse auxiliar aquele que me substituísse na grande tarefa que terá de desempenhar Esta fundação, a cujo respeito ainda devo guardar silêncio, se prende à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico, em melhorá-la, uma parte do que ganho. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, e a despeito de minhas economias, duvido muito que meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria destinar. Uma vez, porém, que a sua realização está nos desígnios dos meus guias espirituais, se eu mesmo não o fizer, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. Enquanto aguardo, vou elaborando os projetos no papel.

Longe de mim, senhores, o pensamento de me envaidecer, ainda que de leve, com o que acabo de expor-vos. Foi necessária a pertinácia de certas diatribes, para que eu me decidisse, embora a contragosto, a quebrar o silêncio acerca de alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que à malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por meio de documentos autênticos; mas o tempo dessas explicações ainda não chegou. A única coisa que por enquanto me importava era que ficásseis esclarecidos com relação ao destino dos fundos que a Providência faz que passem pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero mais do que um depositário, até mesmo do que ganho e, com mais forte razão, daquilo que me é confiado.

Alguém me perguntava certo dia, sem curiosidade, é claro, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que houvera sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isso seria inútil, pois os nossos adversários se encarregaram de custeá-la. Não me pondo então à disposição grandes recursos, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo só devia seus triunfos à sua própria força.

Hoje, que o horizonte se ampliou, sobretudo que o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de ordem completamente diversa. Um capital como o que supondes receberia um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes, que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte se destinaria a converter a minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra constituiria uma renda inalienável, destinada: 1º a manter o estabelecimento; 2º a assegurar uma existência a quem me suceder e aos que o ajudarem em sua missão; 3º a prover às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de auxílios eventuais, como sou obrigado a fazer, já que a maior parte de seus recursos decorrem do meu trabalho, que terá termo.

Eis o que eu faria; mas se esta satisfação não me é dada, sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo oportuno. Eis por que absolutamente não me inquieto com isto e só me ocupo com o que, para mim, é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.


III.


DOS CISMAS.

Uma questão que logo se apresenta é a dos cismas que poderão nascer no seio da Doutrina. Estará preservado deles o Espiritismo?

Não, certamente, porque terá, sobretudo no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, refratárias a se amalgamarem com as ideias dos demais; e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, se empenham por ligar seus nomes a uma inovação qualquer; dos que criam novidades só para poderem dizer que não pensam ou agem como os outros; ou porque o seu amor-próprio sofre, por não ocuparem senão uma posição secundária; ou, enfim, porque veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar. Mas, como lhes temos dito centenas de vezes: “Quem vos barra o caminho? Quem vos impede de trabalhar por vosso lado? Quem vos proíbe de publicar as vossas obras? A publicidade vos está aberta como a todo o mundo; dai algo de melhor do que o que está, ninguém, a isto se opõe; sede mais apreciados pelo público, e ele vos dará a preferência.”

Se, porém, o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia neutralizar-lhes as consequências e isto é o essencial.

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de' uma teoria racional. Hoje, raros partidários ainda contam esses primitivos sistemas. É este um, fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências se apagarão com a elucidação integral de todas as partes da Doutrina. Mas, haverá sempre os dissidentes, de ânimo prevenido e interessados, por um motivo ou por outro, a constituir bando à parte. Contra a pretensão desses é que cumpre se premunam os demais.

Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. Quando for dito peremptoriamente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém pode pretender que se quis dizer que dois e dois fazem cinco.

Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância.

O segundo ponto está em não se sair do âmbito das ideias práticas. Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.

Se, portanto, uma seita se formar à ilharga do Espiritismo, fundada ou não em seus princípios, de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como já sucedeu a tantas outras, através dos séculos; se suas ideias forem acertadas, mesmo que com relação a um único ponto, a Doutrina, que apenas procura o bem e o verdadeiro onde quer que se encontrem, as assimilará, de sorte que, em vez de ser absorvida, absorverá. Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela os imitará; se fizerem maior bem, ela se esforçará por fazer outro tanto ou mais, se possível; se fizerem mais mal, ela os deixará fazer, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem sobrepuja o mal e o verdadeiro predominará sobre o que é falso. Esta a única luta em que se empenhará.

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da moral espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros; não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo, invariável. Mas, quem poderá lisonjear-se de possuí-la toda? No estado de imperfeição em que se acham os nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdadeiro, em consequência da descoberta de novas leis, e isso tanto na ordem moral, quanto na ordem física. Contra essa eventualidade, a Doutrina nunca deverá estar desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade Em vez de ser uma força, a imobilidade se torna uma causa de fraqueza e de ruína, para quem não acompanha o movimento geral; quebra a unidade, porque os que querem avançar se separam dos que se obstinam em ficar atrás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, cumpre fazê-lo com prudência e evitar ir de cabeça baixa ao encontro dos devaneios da utopia e dos sistemas. É preciso fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Compreende-se que uma doutrina assente sobre tais bases tem que ser realmente forte; ela desafia toda concorrência e neutraliza as pretensões de seus competidores. É para este ponto que os nossos esforços tendem a conduzir a Doutrina Espírita.

Aliás, a experiência já comprovou o acerto desta previsão. Tendo marchado sempre por esse caminho desde a sua origem, a Doutrina avança constantemente, mas sem precipitação, verificando sempre se é sólido o terreno onde pisa e medindo seus passos pelo estado da opinião. Fez como o navegante que não prossegue sem ter na mão a sonda e sem consultar os ventos.


IV.


O CHEFE DO ESPIRITISMO.

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa senda? Quem terá mesmo a força? Quem disporá do tempo e da perseverança necessários para se consagrar ao trabalho incessante que semelhante tarefa exige? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não será de temer que se desvie da sua rota? e que a malevolência, com a qual ainda estará por longo tempo em luta, não procure desfigurar-lhe o espírito? É essa, com efeito, uma questão vital e cuja solução se reveste do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é tão evidente, que já causa inquietação o não ser visto, a surgir no horizonte, o seu condutor. Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar a impulsão, de estimular os zelos, de defender os fracos, de sustentar os ânimos vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de caminhar ao léu. Não somente essa direção é necessária, como também preciso se faz que preencha condições de força e de estabilidade suficientes para afrontar as tempestades.

Os que nenhuma autoridade admitem não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar toda direção, a maioria, os que não se creem infalíveis e não depositam confiança absoluta em suas próprias luzes, se sentem necessitados de um ponto de apoio, de um guia, ainda que apenas para ajudá-los a caminhar com segurança. (Vide a Revista de abril de 1866: O Espiritismo Independente).

Reconhecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados no mundo inteiro? É coisa impraticável. Se se impuser por sua própria autoridade, uns o aceitarão, enquanto que outros o recusarão, e podem surgir vinte pretendentes, levantando bandeira contra bandeira. Fora ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso e ninguém conviria menos do que um ambicioso, por isso mesmo orgulhoso, para chefiar uma doutrina que se baseia na abnegação, no devotamento, no desinteresse, na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, outra coisa não poderia fazer, senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente se daria, se de antemão se não adotassem medidas eficazes a prevenir esse inconveniente.

Admitamos, no entanto, houvesse um homem com todas as qualidades necessárias ao desempenho do seu mandato e que, por uma senda qualquer, chegasse à direção suprema. Os homens se sucedem e não se assemelham; depois de um bom, poderia vir um mau. Com o indivíduo, pode mudar o espírito da direção; sem maus desígnios, pode ele ter modos de ver mais ou menos justos; se entender de fazer que prevaleçam suas ideias pessoais, pode levar a Doutrina a transviar-se, suscitar dissidências e as mesmas dificuldades se renovarão a cada mudança. É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força. Do ponto de vista da organização, é uma criança que mal começa a andar. Insta, pois, sobretudo no princípio, premuni-lo contra os obstáculos do caminho.

Mas, dir-se-á, não virá estar à frente do Espiritismo um dos Espíritos que, segundo foi anunciado, tem que tomar parte na obra da regeneração? É provável; todavia, como esses Espíritos não trarão na fronte um sinal para serem reconhecidos; como não se afirmarão senão por seus atos, e, na maioria, só serão reconhecidos depois de terem morrido, conformemente ao que houverem produzido durante a vida; como, ao demais, não serão perpétuos, mister se torna prever todas as eventualidades.

É sabido que eles terão uma missão multíplice; que serão de todos os graus da escala espiritual e se encontrarão nos diversos ramos da economia [organização] social, onde um exercerá influência a favor das novas ideias, conforme a particularidade da sua posição; que todos, pois, trabalharão pelo ascendente da Doutrina, aqui e ali, uns como chefes de Estado, outros como legistas, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc.; que cada um dará provas de si onde lhe caiba exercer sua atividade, desde o proletário até o soberano, sem que qualquer coisa os distinga do comum dos homens, a não serem suas obras. Se a um deles couber tomar parte na direção, é provável que seja posto providencialmente na posição apropriada a fazê-lo chegar lá pelos meios legais que forem adotados; circunstâncias aparentemente fortuitas até lá o conduzirão, sem que de sua parte haja desígnio premeditado, sem mesmo ter ele consciência de sua missão. (Revista Espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868.)

Em tal caso, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias têm que ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, a só pretensão de ser um messias constituiria a negação dessas qualidades essenciais; provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou tola presunção, em havendo boa-fé, ou insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pseudo-espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou cupidez; outros que alardeiam pretensas revelações com o auxílio das quais procurem salientar-se e fascinar as imaginações por demais crédulas. É também de prever que, sob falsas aparências, indivíduos haja que tentem apoderar-se do leme, com a ideia preconcebida de fazerem soçobrar o navio, desviando-o de sua rota. O navio não soçobrará, mas poderia sofrer prejudiciais atrasos que se devem evitar.

São esses, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo precisa preservar-se. Quanto maior consistência ele adquirir, tanto mais ciladas lhe armarão seus adversários. É, portanto, dever de todos os espíritas sinceros anular as manobras da intriga que se possam urdir, assim nos pequenos, como nos grandes centros. Deverão eles, em primeiro lugar, repudiar, do modo mais absoluto, todo aquele que por si mesmo se apresente qual messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Pelo fruto é que se conhece a árvore; espere-se, pois, que a árvore dê seu fruto, para decidir se ela é boa e veja-se também se os frutos têm sabor. (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XXI, nº 9, “Caracteres do verdadeiro profeta”.)

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer que os candidatos fossem designados pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além de que este meio não obviaria a todos os inconvenientes, apresentaria outros, peculiares a semelhante modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que fora supérfluo lembrar aqui. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos consiste em nos instruir, para que nos melhoremos, porém não em se sobreporem ao nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem ideias, ajudam com seus conselhos, principalmente no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso raciocínio o encargo da execução das coisas materiais, encargo a que não lhes cabe poupar-nos. Em seu mundo eles têm atribuições que não são as da Terra; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições é expor-se às falcatruas dos Espíritos levianos. Contentem-se os homens com o serem assistidos e protegidos por Espíritos bons; não descarreguem, porém, sobre eles, a responsabilidade que incumbe ao encarnado.

Esse meio, aliás, suscitaria maiores embaraços do que se poderia supor, pela dificuldade de fazer-se que todos os grupos participassem de semelhante eleição. Seria uma complicação nas engrenagens e estas tanto menos susceptíveis se mostrarão de desarranjar-se, quanto mais simplificadas forem.

O problema é, pois, o de constituir-se uma direção central, em condições de força e estabilidade, que a ponham ao abrigo de todas as flutuações; que correspondam a todas as necessidades da causa e oponham intransponível barreira às tramas da intriga e da ambição. Tal o objetivo do plano de que vamos dar um rápido esboço.


V.


COMISSÃO CENTRAL.

Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, saídos, no estado de embriões, de uma multidão de focos, se dirigissem para um centro comum, a fim de serem aí examinados e cotejados, de sorte que um só pensamento presidisse à coordenação deles, a fim de ' estabelecer-se a unidade no conjunto e a harmonia entre todas as partes: Se não fosse assim, a Doutrina ter-se-ia assemelhado a esses edifícios híbridos, projetados por vários arquitetos, ou a um mecanismo cujas rodas não se engrenam com precisão umas nas outras.

Já o temos dito, por ser verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina não podia sair, de um único centro, completamente estruturada, da mesma maneira que toda a ciência astronômica não poderia sair, inteiramente constituída, de um único observatório. Qualquer centro que tentasse erguê-la exclusivamente sobre as suas observações faria coisa incompleta e se acharia, com relação a uma infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer cada um a sua doutrina, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo quanto aos fundamentos, difeririam inevitavelmente quanto à forma. Ora, como há muita gente que atenta mais na forma do que na substância, tantas seriam as seitas quantas as formas diferentes. Somente do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais podia resultar a unidade. Por isso é que era necessária a concentração dos trabalhos. (A Gênese, capítulo I, “Caráter da revelação espírita”, nº 51 e seguintes.)

Mas, o que era de vantagem por um certo tempo mais tarde se tornaria inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração se acha concluído, no que concerne às questões fundamentais, que estabelecidos se encontram os princípios gerais da Ciência, a direção, de individual que houve de ser em começo, tem que se tornar coletiva, primeiramente, porque um momento há de vir em que o seu peso excederá as forças de um homem e, em segundo lugar, porque maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos, a cada um dos quais caiba apenas um voto e que nada podem sem o concurso mútuo, do que um só indivíduo, capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será confiada a uma comissão central ou conselho superior permanente — pouco importa o nome — cuja organização e atribuições se definam de maneira a não dar azo ao arbítrio. Essa comissão se comporá, no máximo de doze membros titulares, que deverão, para tal efeito, preencher certas condições indispensáveis, e de igual número de conselheiros. Ela se completará a si mesma, segundo regras igualmente determinadas, de modo a evitar todo favoritismo, à medida que em seu seio se derem vagas por falecimentos ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá o modo por que serão nomeados os doze primeiros.

Cada membro presidirá por sua vez durante um ano, e aquele que preencher esta função será designado por sorteio.

Puramente administrativa será a autoridade do presidente. Ele dirigirá as deliberações da comissão, velará pela execução dos trabalhos e pelo expediente; mas, fora das atribuições que os estatutos constitutivos lhe conferirem, nenhuma decisão poderá tomar sem o concurso da comissão. Portanto, não haverá possibilidade de abusos, nem alimentos para a ambição, nem pretextos para intrigas ou ciúmes, nem supremacia chocante.

A comissão central, ou conselho superior, será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia-geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer por meio da discussão, não será bastante para que haja confusão.

Os congressos serão constituídos por delegados das sociedades particulares, regularmente constituídas, e colocadas sob o patrocínio da comissão por sua adesão e pela conformidade de seus princípios.

Para a comunidade dos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, em suma, de um corpo constituído, representando opinião coletiva, forçosamente terão uma autoridade que jamais teriam, se emanassem de um só indivíduo, que apenas representa uma opinião pessoal. É frequente uma pessoa rejeitar a opinião de outra, por entender que se humilharia, caso se submetesse a essa opinião, e acatar sem dificuldades a de muitos.

Fica bem entendido que aqui se trata de autoridade moral, no que respeita à interpretação e aplicação dos princípios morais da Doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma academia, em matéria de Ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem maior ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, apresenta uma força de resistência e dispõe de meios de ação com que um indivíduo não poderia contar; aquele luta com vantagens infinitamente maiores. Uma individualidade está sujeita a ser atacada e aniquilada; o mesmo já não se dá com uma entidade coletiva.

Há, igualmente, numa entidade coletiva, uma garantia de estabilidade, que não existe, quando tudo recai sobre uma cabeça única. Desde que o indivíduo se ache impedido por uma causa qualquer, tudo fica paralisado. A entidade coletiva, ao contrário, se perpetua incessantemente. Embora perca um ou vários de seus membros, nada periclita.

A dificuldade, dirão, consistirá em reunir, de modo permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que sejam acordes no tocante aos princípios fundamentais. Ora, isso constituirá uma condição absoluta para que sejam admitidas à direção, como para a de todos os que desta hajam de participar. Sobre as questões pendentes de detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto a opinião da maioria é que prevalecerá. Àquele cuja maneira de ver for acertada, não faltarão razões boas com que a justifique. Se algum, contrariado por não conseguir que suas ideias predominem, se retirar, nem por isso deixariam as coisas de seguir o seu curso e motivo não haveria para se lhe deplorar a saída, pois que teria dado prova de uma susceptibilidade orgulhosa, pouco espírita, e que poderia tornar-se origem de perturbações.

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, do momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião. É esta uma questão de minúcia prevista na organização.

Admitamos que entre os membros da comissão haja um irmão falso, um traidor, que os inimigos da causa tenham ganho para si: que logrará ele fazer, não dispondo senão do seu voto nas decisões? Suponhamos que, por impossível, toda a comissão enverede por mau caminho: aí estarão os congressos para reconduzi-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração pertencerá aos congressos, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra a comissão central, por infração do seu mandato, por violação dos princípios estabelecidos, ou por medidas prejudiciais à Doutrina. Por isso é que se apelará da comissão para o congresso, nas circunstâncias em que se julgue que a responsabilidade da primeira está gravemente comprometida.

Sendo os congressos um freio para a comissão, na aprovação deles haure esta última novas forças. É assim que o chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem risco para si próprio, afastar-se do caminho reto.

Quando a comissão estiver organizada, dela faremos parte como simples membro seu, dando-lhe a nossa colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.


[DEPARTAMENTOS DA COMISSÃO CENTRAL.]


Às atribuições gerais da comissão serão anexados, como dependências locais:

1º Uma biblioteca, onde se encontrem reunidas todas as obras que interessem o Espiritismo e que possam ser consultadas no local, ou cedidas para leitura fora;

2º Um museu, onde se achem colecionadas as primeiras obras de arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos a quem a causa muito deva pelo devotamento que tenham demonstrado, os dos homens a quem o Espiritismo renda homenagens, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da Humanidade, grandes gênios missionários do progresso, etc.

3º Um dispensário destinado às consultas médicas gratuitas e ao tratamento médico de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4º Uma caixa de socorros e de previdência, em condições práticas;

5º Um asilo;

6º Uma sociedade de adeptos, que celebre sessões regulares.


VI.


OBRAS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA.

Muitas pessoas lamentam que as obras fundamentais da Doutrina tenham um preço tão elevado para grande número de leitores, e pensam, com razão, que se fossem feitas edições populares a baixo custo, estariam muito mais espalhadas, com o que ganharia a Doutrina.

Estamos completamente de acordo; mas, no estado atual das coisas, as condições em que são editadas não permitem que o sejam de outro modo. Esperamos chegar um dia a esse resultado, com o auxílio de uma nova combinação que se ligue ao plano geral de organização. Mas essa operação não pode ser realizada senão empreendida em vasta escala; só de nossa parte exigiria capitais que não possuímos, e trabalhos materiais que os nossos trabalhos, que reclamam todas as nossas meditações, não nos permitem dar. É por isto que a parte comercial propriamente dita foi negligenciada ou, melhor dizendo, sacrificada ao estabelecimento da parte doutrinária. O que importava, antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da Doutrina.

Em se achando organizado pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que as gerirá e cuidará da publicação delas, pelos meios mais apropriados a popularizá-las. Ela também deverá cuidar de que sejam traduzidas nas principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário que conservasse seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade.

Fomos, por diversas vezes, solicitados a fazê-la circular mais amiúde; por muito lisonjeiro, porém, que nos fosse esse desejo, não pudemos atendê-lo, primeiramente, porque o tempo material não nos consentia esse acréscimo de trabalho e, em segundo lugar, porque importava não perdesse ela o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima do seu termo, as necessidades já não são as mesmas; a Revista se tornará, como as nossas outras obras, feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior vantagem do Espiritismo, sem que, por isso, renunciemos a lhe prestar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, falta-nos publicar vários trabalhos, que não formam a parte menos difícil, nem menos penosa. Conquanto já disponhamos de todos os elementos para o executar e o programa de cada um esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dispensar-lhes mais acurada atenção e ativá-los, se, por instituída a comissão central, estivéssemos livres de outros cuidados que absorvem grande parte do nosso tempo.


VII.


ATRIBUIÇÕES DO COMITÊ.

Serão estas as atribuições principais da comissão central:

1º Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propagação; manter-lhe a unidade, pela conservação da integridade dos princípios firmados; prover ao desenvolvimento de suas consequências;

2º O estudo dos novos princípios, susceptíveis de entrar no corpo da Doutrina;

3º A concentração, em seu poder, de todos os documentos e informações que interessem ao Espiritismo;

4º A correspondência;

5º A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos diversos países;

6º A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo e à qual se poderá juntar outra publicação periódica;

7º O exame e apreciação das obras, dos artigos de jornais e de todos os escritos que interessem à Doutrina; a refutação dos ataques, se aparecerem;

8º A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais favoráveis à sua vulgarização; a elaboração e publicação das de que daremos o plano e que não teremos tempo de executar em nossa atual existência; o apoio de que precisem as publicações que sejam de proveito para a causa;

9º A fundação e conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10º A administração da caixa de socorros, do dispensário e do asilo;

11º A administração dos negócios materiais;

12º A direção das sessões da Sociedade;

13º O ensino oral;

14º As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob o seu patrocínio;

15º A convocação dos congressos e assembleias gerais.


Estas atribuições os membros da comissão as distribuirão entre si, conforme a especialidade de cada um, sendo eles, se for preciso, assistidos por certo número de auxiliares ou de simples empregados.

Em consequência, entre os membros da comissão haverá:

Um secretário-geral para a correspondência e as atas das sessões da comissão;

Um redator-chefe para Revista e as outras publicações;

Um bibliotecário-arquivista, encarregado, além disso, do exame e das apreciações criticas das obras e artigos de jornais;

Um diretor da caixa de socorros, também encarregado da direção do dispensário, das visitas aos doentes e necessitados e de tudo o que se refere à beneficência. Será secundado por uma comissão de beneficência escolhida no seio da Sociedade, e formada de pessoas caridosas de boa vontade;

Um administrador-contador, encarregado dos negócios e dos interesses materiais;

Um diretor especial para os negócios concernentes às publicações;

Oradores para o ensino oral, encarregados, ademais, de visitar as sociedades dos Departamentos e aí dar instruções. Poderão ser tomados entre os membros auxiliares e os adeptos de boa vontade que, para tanto, receberão um mandato especial.

Seja qual for a extensão ulterior dos negócios e do pessoal administrativo, a comissão será sempre limitada ao mesmo número de membros titulares.

Até agora tivemos de nos bastar mais ou menos sozinhos a este programa. Por isso mesmo, algumas de suas partes foram negligenciadas ou apenas puderam ser esboçadas, e as que são mais especialmente da nossa alçada, tiveram que sofrer inevitáveis atrasos, pela necessidade de nos ocupar de tantas coisas, quando o tempo e as forças têm limites e uma só absorveria o tempo de um homem.


VIII.


VIAS E MEIOS.

É de lastimar, sem dúvida, que tenhamos de entrar em considerações de ordem material, para alcançarmos um objetivo todo espiritual. Cumpre, porém, observemos, que a espiritualidade mesma da obra se prende à questão da Humanidade terrena e do seu bem-estar; que já não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e de durável, para a extensão e a consolidação da Doutrina, à qual é preciso fazer produzir os frutos de que é susceptível de dar. Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com um bastão de viagem, sem cogitarem de saber onde pousariam, nem do que comeriam, fora alimentar uma ilusão que bem depressa amarga decepção destruiria. Para alguém fazer qualquer coisa de sério, tem que se submeter às necessidades impostas pelos costumes da época em que vive e essas necessidades são muito diversas da dos tempos da vida patriarcal. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que se apreciem os meios de ação, para não ser forçoso parar a meio do caminho. Apreciemo-los, portanto, uma vez que estamos num século em que é preciso calcular tudo.

São em grande número, como se vê, as atribuições da comissão central, para necessitarem de uma verdadeira administração. Tendo cada um de seus membros funções ativas e assíduas, se apenas a constituíssem homens de boa vontade, os trabalhos seriam prejudicados, porquanto ninguém teria o direito de censurar os negligentes. Para regularidade dos trabalhos e normalidade do expediente, necessário se torna contar com homens de cuja assiduidade se possa estar certo e que não considerem suas funções como simples atos de comprazer. De quanto mais independência eles forem senhores, pelos seus recursos pessoais, tanto menos se deixarão prender por ocupações assíduas; se não dispuserem de tempo, não poderão consagrá-lo àquelas funções. Importa, pois, que sejam retribuídos, assim como o pessoal administrativo. Com isso a Doutrina ganhará em força, em estabilidade, em pontualidade, do mesmo passo que constituirá um meio de prestar serviços a pessoas que dela necessitem.

Ponto essencial, na economia de toda administração previdente, é que sua existência não dependa de produtos eventuais que possam fazer falta, mas de recursos certos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não seja embaraçada. Insta, pois, que as pessoas que forem chamadas a lhe prestar concurso, não se sintam inquietas quanto ao futuro que as aguarde. Ora, a experiência demonstra que se devem considerar essencialmente aleatórios os recursos que apenas tenham por base o produto de cotas ou contribuições, sempre facultativas, quaisquer que sejam os compromissos contraídos, e de cobrança sempre difícil. Assentar despesas permanentes e regulares sobre recursos eventuais, implicaria falta de previdência, que mais tarde se haveria de deplorar. Menos graves são, sem dúvida, as consequências, quando se trate de fundações temporárias, destinadas a durar quanto possam; aqui, porém, é uma questão de futuro. A sorte de uma administração como esta não pode ficar subordinada aos azares de um negócio comercial; precisa ser, desde o seu início, se não tão florescente, pelo menos tão estável quanto o será daqui a um século. Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em tal caso a mais vulgar prudência manda se capitalizem, de forma inalienável, os recursos, à proporção que vão sendo obtidos, a fim de constituir-se uma renda perpétua, a coberto de todas as eventualidades. Regulando a administração a sua despesa pela renda que aufira, não pode a sua existência, em nenhum caso, achar-se comprometida, pois que disporá sempre de meios para funcionar. Pode, no começo, organizar-se em menor escala; o número de membros da comissão poderá ser limitado provisoriamente a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, salvo para proporcionar o desenvolvimento pelo acréscimo dos recursos e das necessidades da causa, considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora membro ativo da comissão central, não pesaremos de forma alguma no seu orçamento, nem por honorários, nem por despesas de viagens, nem por outra causa qualquer. Se nunca a ninguém nada pedimos para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância. Nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parcela dos recursos de que dispuser a comissão será desviada em proveito nosso.

Dar-lhe-emos, ao contrário, a nossa contribuição:

1º Abrindo mão, em seu favor, do que produzam as nossas obras, feitas e por fazer;

2º Doando-lhe valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da Doutrina, e não para aí conquistarmos uma posição da qual não necessitamos. Foi para preparar as vias desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de haver posto a primeira pedra.

Figuremos então que, de um modo ou de outro, a comissão central, em dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe uma renda de 25 a 30.000 francos. Restringindo, em começo, as suas despesas, os recursos de toda espécie de que disponha, em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que será objeto de uma contabilidade rigorosa. Reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda irá aumentar o capital comum. Proporcionalmente, com os recursos desse capital é que a comissão proverá às diversas despesas proveitosas ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais faça dele aplicação pessoal, nem fonte de especulação para qualquer de seus membros: Ao demais, o emprego dos fundos e escrituração serão submetidos à verificação de comissários especiais, designados, para esse efeito, pelos congressos ou assembleias gerais.

A comissão terá por um de seus primeiros cuidados ocupar-se com as publicações, desde que seja possível, sem esperar que o possa fazer com o auxílio das rendas. Os fundos a isso destinados não serão, em realidade, mais que um adiantamento, pois que voltarão à caixa, em virtude da venda das obras, cujo produto reverterá ao capital comum. É um negócio de administração.

Para dar a esta instituição uma existência legal, ao abrigo de toda contestação, dar-lhe, além disso, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se for julgado necessário, por ato autêntico, sob forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos, prorrogável indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se de seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias da comissão, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas ligamos; queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

A criação de uma caixa geral de socorros é impraticável e apresenta sérios inconvenientes, como já o demonstramos em artigo especial. (Revista de julho de 1866). A comissão não deve, pois, tomar um caminho que teria de abandonar ao cabo de pouco tempo, nem empreender coisa alguma que não esteja certa de poder realizar. Ela precisa ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas. Esse o meio de caminhar longo tempo e com segurança. Para isso, cumpre-lhe ficar sempre dentro dos limites do possível.

Essa caixa de socorros não pode e não deve ser mais do que uma instituição local, de ação circunscrita e cuja prudente organização sirva de modelo às do mesmo gênero que as sociedades particulares venham a criar. Pela sua multiplicidade é que elas prestarão serviços eficazes e não pela centralização dos meios de ação.

Será alimentada: 1º pelas parcelas, que se lhe destinem, tiradas da renda da caixa geral do Espiritismo; 2º pelos donativos especiais que lhe forem feitos. Ela capitalizará as somas que receber, de maneira a constituir para si um rendimento. Com essa renda é que prestará os socorros temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações do seu mandato, estipuladas no regulamento da sua constituição.

O projeto de um asilo, na acepção completa do termo, não poderá ter execução logo de começo, pelos capitais que reclamaria semelhante fundação e, ao demais, porque é preciso dar à administração tempo de se firmar e de atuar com regularidade, antes de complicar suas atribuições com empreendimentos que possam malograr-se. Fora imprudência tentar muitas coisas, antes de estar certa de dispor dos meios de execução. É o que facilmente se compreenderá, desde que se pense em todos os pormenores inerentes a estabelecimentos desse gênero. Convém, sem dúvida, alimentar boas intenções, mas, antes de tudo, mister se faz poder realizá-las.


IX.


CONCLUSÃO.

Tais são as bases principais da organização que nos propomos dar ao Espiritismo, se as circunstâncias no-lo permitirem. Tivemos que desenvolver os motivos um tanto longamente, a fim de dar a conhecer o seu espírito. Os detalhes serão objeto de uma regulamentação minuciosa, na qual todos os casos serão previstos de maneira a levantar todas as dificuldades de execução.

Consequente com os princípios de tolerância e de respeito a todas as opiniões, que o Espiritismo professa, não pretendemos impor esta organização a ninguém, nem constranger quem quer que seja a se submeter a ela. Nosso objetivo é estabelecer um primeiro laço entre os espíritas, que o desejam desde muito tempo e se lastimam de seu isolamento. Ora, esse laço, sem o qual o Espiritismo, permanecendo no estado de opinião individual, sem coesão, só pode existir com a condição de se religar a um centro por uma comunhão de vistas e de princípios. Esse centro não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, agindo no interesse geral e na qual a autoridade pessoal se apaga.

Se ele não existisse, qual teria sido o ponto de ligação dos espíritas disseminados em diferentes países? Não podendo comunicar suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, eles também espalhados, e muitas vezes sem consistência, teriam ficado isolados e, com isto, sofrido a difusão da Doutrina. Era preciso, pois, um ponto aonde todos chegassem e de onde tudo pudesse irradiar. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar inútil esse centro, faria sentir melhor a sua necessidade, porque a necessidade de aproximação e de formação de um feixe será tanto maior quanto mais considerável for o número de adeptos.

Mas qual será a extensão do círculo de atividades desse centro? É destinado a reger o mundo e a tornar-se o árbitro universal da verdade? Se tivesse essa pretensão, seria compreender mal o espírito do Espiritismo que, por isso mesmo que proclama os princípios do livre-exame e da liberdade de consciência, repudia a ideia de se erigir em autocracia; desde o começo entraria numa senda fatal.

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da Natureza, e não sobre abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira, que os espíritas do mundo inteiro estarão sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder, que deverão esperar a luz de um ponto fixo, para o qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma única nação, governada por um só chefe, regida pelo mesmo código de leis e submetidas aos mesmos costumes. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos hábitos, aos caracteres e aos climas de cada uma.

Assim será com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo inteiro terão princípios comuns, que os ligarão à grande família pelo laço sagrado da fraternidade, mas cuja aplicação poderá variar conforme as regiões, sem que, por isto, seja rompida a unidade fundamental, sem formar seitas dissidentes que se atirem a pedra e o anátema, o que seria antiespírita em alto grau. Poderão, pois, se formar, e inevitavelmente se formarão, centros gerais em diferentes países, sem outro laço além da comunhão de crença e a solidariedade moral, sem subordinação de um ao outro, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de impor-se aos espíritas americanos e reciprocamente.

A comparação dos observatórios, que citamos acima, é perfeitamente justa. Há observatórios em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, estão baseados em princípios gerais e reconhecidos da Astronomia, o que, por isso, não os torna tributários uns dos outros; cada um regula seus trabalhos como entende; comunicam-se as suas observações, e cada um põe a serviço da Ciência as descobertas de seus confrades. Dar-se-á o mesmo com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão o que tiverem de bom e aplicável aos costumes das regiões onde estiverem estabelecidos, pois o seu objetivo é o bem da Humanidade, e não a satisfação das ambições pessoais. O Espiritismo é uma questão de fundo; prender-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os diversos centros, que estiverem no verdadeiro espírito do Espiritismo, deverão estender-se a mão fraterna e se unirem no combate aos seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.








Dezembro

I. Considerações preliminares. II. Extrato do relatório da Caixa do Espiritismo. — III. Dos cismas. — IV. O chefe do Espiritismo. — V. Comissão central. — Departamentos da Comissão central. — VI. Obras fundamentais da Doutrina. — VII. Atribuições do Comitê. — VIII. Vias e meios. — IX. Conclusão.


I.


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram. Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora se exporem a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos.

Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas.

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá.

Se bem não haja ele dito ainda sua última palavra sobre todos os pontos, aproxima-se do seu complemento e soou a hora de se lhe oferecer uma base forte e durável, susceptível, contudo, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias ulteriores comportem e que ofereça toda a segurança aos que inquiram quem, depois de nós, lhe tomará as rédeas.

A Doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa nas leis da Natureza e porque, melhor do que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações dos homens. Entretanto, a sua difusão e a sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias várias, algumas das quais subordinadas à marcha geral das coisas, outras inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização. É destas que nos vamos ocupar especialmente neste momento.

Conquanto a questão de substância seja preponderante em tudo e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui importância capital; poderia mesmo sobrepujar momentaneamente e suscitar embaraços e atrasos, conforme a maneira por que fosse resolvida.

Houvéramos, pois, feito coisa incompleta e deixado grandes dificuldades para o futuro, se não prevíssemos as que podem surgir. Com o intuito de evitá-las foi que, com o concurso dos bons Espíritos que nos assistem em nossos trabalhos, elaboramos um plano de organização, pondo em jogo a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais se chocaram a maioria das doutrinas que apareceram no mundo. Podendo este plano prestar-se a todos os desenvolvimentos que reserva o futuro, demos, por isto mesmo, a esta constituição a qualificação de transitória.

O plano aqui exposto concebemo-lo há longo tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo, é certo, mas o bastante para mostrar que não é esta, hoje, uma concepção nova e que, trabalhando na parte teórica da obra, não nos descuidávamos do lado prático.

Antes de abordar a fundo a questão, parece-nos útil lembrar algumas passagens do relatório que apresentamos à Sociedade de Paris, no dia 5 de maio de 1865, a propósito da caixa do Espiritismo, e que foi publicado na Revista de junho de 1865. As considerações que ele encerra se ligam diretamente ao nosso assunto, do qual elas são as preliminares indispensáveis.


II.


EXTRATO DO RELATÓRIO DA CAIXA DO ESPIRITISMO, FEITO A SOCIEDADE DE PARIS, EM 5 DE MAIO DE 1865.

Muito se há falado dos proventos que eu retirava de minhas obras. Certamente, nenhuma pessoa séria acredita realmente em meus milhões, a despeito da afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca, tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. (Revista de junho de 1862). Além disso, não obstante o que disse o autor de uma brochura que conheceis, provando, por cálculos hiperbólicos, que o meu orçamento de receita ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porquanto, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários (Revista de junho de 1863), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém, ninguém me deu algo para mim pessoalmente; numa palavra, não vivo a expensas de ninguém, porquanto, das somas que me foram voluntariamente confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito.

As minhas imensas riquezas proviriam, pois, das minhas obras espíritas. Conquanto estas obras tenham alcançado inesperado êxito, basta ter um pouco de familiaridade com os negócios de livraria, para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns centavos por exemplar. Mas, avultado ou mínimo, sendo esse lucro fruto do meu trabalho, ninguém tem o direito de intrometer-se no emprego que lhe dou; ainda mesmo que se elevasse a milhões, ninguém tem nada a ver com isto, desde que a compra de livros, assim como a assinatura da Revista, é facultativa e não se impõe em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade. Falando comercialmente, estou na posição de todo homem que recolhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor, que tanto pode triunfar, quanto fracassar.

Mesmo não tendo, neste particular, nenhuma conta a prestar, creio útil à própria causa a que me devotei, dar algumas explicações.

Antes de mais, direi que minhas obras não são propriedade exclusiva minha, o que me obriga a comprá-las de meu editor e pagá-las como um livreiro, à exceção da Revista; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas dívidas incobráveis e pelas distribuições gratuitas, feitas no interesse da Doutrina, a pessoas que, sem isto, delas estariam privadas. Um cálculo muito fácil prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, é suficiente para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. Somando tudo e feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes; o que faço dela? Isto é o que mais preocupa certa gente.

Quem quer que outrora tenha visto a nossa habitação e a veja hoje poderá atestar que nada mudou na nossa maneira de viver, desde que entrei a ocupar-me com o Espiritismo; é tão simples agora como o era antigamente. Então é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Teria eu, então, a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Creio que meu caráter e meus hábitos jamais permitiram que se fizesse tal suposição. O que pretendem? Desde que isto não me aproveita, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia saberão a cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os fazedores de histórias pouparão a imaginação; hoje eu me limito a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto devo entrar nalguns detalhes íntimos, mas que são necessários, e para os quais vos peço perdão.

Sempre tivemos do que viver, muito modestamente é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo e o de um modesto emprego, que me vi forçado a deixar quando os trabalhos da Doutrina absorveram todo o meu tempo.

Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho; em pouco tempo vi-me arrastado por um movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr de modo algum em evidência e permanecer desconhecido; mas, prontamente ultrapassado, isto não me foi possível: tive de renunciar ao meu gosto pelo insulamento, sob pena de abdicar da obra empreendida e que crescia de dia para dia; foi preciso seguir seu impulso e tomar-lhe as rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, seguramente não fui eu que o procurei, pois é notório que nem a devo à propaganda, nem à camaradagem da imprensa, e que jamais aproveitei de minhas relações para me lançar no mundo, quando isto me teria sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto se desdobrava à minha frente, recuando os seus limites; compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorarem, as dificuldades e os obstáculos redobraram as minhas energias; vi o objetivo e resolvi atingi-lo com a assistência dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas; foi a obra de minha vida: a ela dei todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe meu repouso, minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrecusáveis.

Sem nos afastarmos do nosso gênero de vida, nem por isso essa posição excepcional deixou de nos criar menos necessidades a que só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiriam prover. Seria difícil a outrem imaginar a multiplicidade das despesas que aquela posição acarreta e que, sem ela, eu teria evitado.

Pois bem, senhores! o que me proporcionou suprimento aos meus recursos foi o produto das minhas obras. E o digo com satisfação, pois foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Assim, eu trouxe uma larga cota-parte à caixa do Espiritismo. Os que ajudam a propagação das obras não poderão, pois, dizer que trabalham para me enriquecer, porque o produto da venda de todo livro, de toda assinatura da Revista, redunda em proveito da Doutrina e não do indivíduo.

Mas, prover ao presente não era tudo: importava também pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse auxiliar aquele que me substituísse na grande tarefa que terá de desempenhar Esta fundação, a cujo respeito ainda devo guardar silêncio, se prende à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico, em melhorá-la, uma parte do que ganho. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, e a despeito de minhas economias, duvido muito que meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria destinar. Uma vez, porém, que a sua realização está nos desígnios dos meus guias espirituais, se eu mesmo não o fizer, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. Enquanto aguardo, vou elaborando os projetos no papel.

Longe de mim, senhores, o pensamento de me envaidecer, ainda que de leve, com o que acabo de expor-vos. Foi necessária a pertinácia de certas diatribes, para que eu me decidisse, embora a contragosto, a quebrar o silêncio acerca de alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que à malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por meio de documentos autênticos; mas o tempo dessas explicações ainda não chegou. A única coisa que por enquanto me importava era que ficásseis esclarecidos com relação ao destino dos fundos que a Providência faz que passem pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero mais do que um depositário, até mesmo do que ganho e, com mais forte razão, daquilo que me é confiado.

Alguém me perguntava certo dia, sem curiosidade, é claro, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que houvera sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isso seria inútil, pois os nossos adversários se encarregaram de custeá-la. Não me pondo então à disposição grandes recursos, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo só devia seus triunfos à sua própria força.

Hoje, que o horizonte se ampliou, sobretudo que o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de ordem completamente diversa. Um capital como o que supondes receberia um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes, que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte se destinaria a converter a minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra constituiria uma renda inalienável, destinada: 1º a manter o estabelecimento; 2º a assegurar uma existência a quem me suceder e aos que o ajudarem em sua missão; 3º a prover às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de auxílios eventuais, como sou obrigado a fazer, já que a maior parte de seus recursos decorrem do meu trabalho, que terá termo.

Eis o que eu faria; mas se esta satisfação não me é dada, sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo oportuno. Eis por que absolutamente não me inquieto com isto e só me ocupo com o que, para mim, é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.


III.


DOS CISMAS.

Uma questão que logo se apresenta é a dos cismas que poderão nascer no seio da Doutrina. Estará preservado deles o Espiritismo?

Não, certamente, porque terá, sobretudo no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, refratárias a se amalgamarem com as ideias dos demais; e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, se empenham por ligar seus nomes a uma inovação qualquer; dos que criam novidades só para poderem dizer que não pensam ou agem como os outros; ou porque o seu amor-próprio sofre, por não ocuparem senão uma posição secundária; ou, enfim, porque veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar. Mas, como lhes temos dito centenas de vezes: “Quem vos barra o caminho? Quem vos impede de trabalhar por vosso lado? Quem vos proíbe de publicar as vossas obras? A publicidade vos está aberta como a todo o mundo; dai algo de melhor do que o que está, ninguém, a isto se opõe; sede mais apreciados pelo público, e ele vos dará a preferência.”

Se, porém, o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia neutralizar-lhes as consequências e isto é o essencial.

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de' uma teoria racional. Hoje, raros partidários ainda contam esses primitivos sistemas. É este um, fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências se apagarão com a elucidação integral de todas as partes da Doutrina. Mas, haverá sempre os dissidentes, de ânimo prevenido e interessados, por um motivo ou por outro, a constituir bando à parte. Contra a pretensão desses é que cumpre se premunam os demais.

Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. Quando for dito peremptoriamente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém pode pretender que se quis dizer que dois e dois fazem cinco.

Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância.

O segundo ponto está em não se sair do âmbito das ideias práticas. Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.

Se, portanto, uma seita se formar à ilharga do Espiritismo, fundada ou não em seus princípios, de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como já sucedeu a tantas outras, através dos séculos; se suas ideias forem acertadas, mesmo que com relação a um único ponto, a Doutrina, que apenas procura o bem e o verdadeiro onde quer que se encontrem, as assimilará, de sorte que, em vez de ser absorvida, absorverá. Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela os imitará; se fizerem maior bem, ela se esforçará por fazer outro tanto ou mais, se possível; se fizerem mais mal, ela os deixará fazer, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem sobrepuja o mal e o verdadeiro predominará sobre o que é falso. Esta a única luta em que se empenhará.

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da moral espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros; não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo, invariável. Mas, quem poderá lisonjear-se de possuí-la toda? No estado de imperfeição em que se acham os nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdadeiro, em consequência da descoberta de novas leis, e isso tanto na ordem moral, quanto na ordem física. Contra essa eventualidade, a Doutrina nunca deverá estar desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade Em vez de ser uma força, a imobilidade se torna uma causa de fraqueza e de ruína, para quem não acompanha o movimento geral; quebra a unidade, porque os que querem avançar se separam dos que se obstinam em ficar atrás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, cumpre fazê-lo com prudência e evitar ir de cabeça baixa ao encontro dos devaneios da utopia e dos sistemas. É preciso fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Compreende-se que uma doutrina assente sobre tais bases tem que ser realmente forte; ela desafia toda concorrência e neutraliza as pretensões de seus competidores. É para este ponto que os nossos esforços tendem a conduzir a Doutrina Espírita.

Aliás, a experiência já comprovou o acerto desta previsão. Tendo marchado sempre por esse caminho desde a sua origem, a Doutrina avança constantemente, mas sem precipitação, verificando sempre se é sólido o terreno onde pisa e medindo seus passos pelo estado da opinião. Fez como o navegante que não prossegue sem ter na mão a sonda e sem consultar os ventos.


IV.


O CHEFE DO ESPIRITISMO.

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa senda? Quem terá mesmo a força? Quem disporá do tempo e da perseverança necessários para se consagrar ao trabalho incessante que semelhante tarefa exige? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não será de temer que se desvie da sua rota? e que a malevolência, com a qual ainda estará por longo tempo em luta, não procure desfigurar-lhe o espírito? É essa, com efeito, uma questão vital e cuja solução se reveste do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é tão evidente, que já causa inquietação o não ser visto, a surgir no horizonte, o seu condutor. Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar a impulsão, de estimular os zelos, de defender os fracos, de sustentar os ânimos vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de caminhar ao léu. Não somente essa direção é necessária, como também preciso se faz que preencha condições de força e de estabilidade suficientes para afrontar as tempestades.

Os que nenhuma autoridade admitem não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar toda direção, a maioria, os que não se creem infalíveis e não depositam confiança absoluta em suas próprias luzes, se sentem necessitados de um ponto de apoio, de um guia, ainda que apenas para ajudá-los a caminhar com segurança. (Vide a Revista de abril de 1866: O Espiritismo Independente).

Reconhecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados no mundo inteiro? É coisa impraticável. Se se impuser por sua própria autoridade, uns o aceitarão, enquanto que outros o recusarão, e podem surgir vinte pretendentes, levantando bandeira contra bandeira. Fora ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso e ninguém conviria menos do que um ambicioso, por isso mesmo orgulhoso, para chefiar uma doutrina que se baseia na abnegação, no devotamento, no desinteresse, na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, outra coisa não poderia fazer, senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente se daria, se de antemão se não adotassem medidas eficazes a prevenir esse inconveniente.

Admitamos, no entanto, houvesse um homem com todas as qualidades necessárias ao desempenho do seu mandato e que, por uma senda qualquer, chegasse à direção suprema. Os homens se sucedem e não se assemelham; depois de um bom, poderia vir um mau. Com o indivíduo, pode mudar o espírito da direção; sem maus desígnios, pode ele ter modos de ver mais ou menos justos; se entender de fazer que prevaleçam suas ideias pessoais, pode levar a Doutrina a transviar-se, suscitar dissidências e as mesmas dificuldades se renovarão a cada mudança. É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força. Do ponto de vista da organização, é uma criança que mal começa a andar. Insta, pois, sobretudo no princípio, premuni-lo contra os obstáculos do caminho.

Mas, dir-se-á, não virá estar à frente do Espiritismo um dos Espíritos que, segundo foi anunciado, tem que tomar parte na obra da regeneração? É provável; todavia, como esses Espíritos não trarão na fronte um sinal para serem reconhecidos; como não se afirmarão senão por seus atos, e, na maioria, só serão reconhecidos depois de terem morrido, conformemente ao que houverem produzido durante a vida; como, ao demais, não serão perpétuos, mister se torna prever todas as eventualidades.

É sabido que eles terão uma missão multíplice; que serão de todos os graus da escala espiritual e se encontrarão nos diversos ramos da economia [organização] social, onde um exercerá influência a favor das novas ideias, conforme a particularidade da sua posição; que todos, pois, trabalharão pelo ascendente da Doutrina, aqui e ali, uns como chefes de Estado, outros como legistas, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc.; que cada um dará provas de si onde lhe caiba exercer sua atividade, desde o proletário até o soberano, sem que qualquer coisa os distinga do comum dos homens, a não serem suas obras. Se a um deles couber tomar parte na direção, é provável que seja posto providencialmente na posição apropriada a fazê-lo chegar lá pelos meios legais que forem adotados; circunstâncias aparentemente fortuitas até lá o conduzirão, sem que de sua parte haja desígnio premeditado, sem mesmo ter ele consciência de sua missão. (Revista Espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868.)

Em tal caso, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias têm que ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, a só pretensão de ser um messias constituiria a negação dessas qualidades essenciais; provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou tola presunção, em havendo boa-fé, ou insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pseudo-espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou cupidez; outros que alardeiam pretensas revelações com o auxílio das quais procurem salientar-se e fascinar as imaginações por demais crédulas. É também de prever que, sob falsas aparências, indivíduos haja que tentem apoderar-se do leme, com a ideia preconcebida de fazerem soçobrar o navio, desviando-o de sua rota. O navio não soçobrará, mas poderia sofrer prejudiciais atrasos que se devem evitar.

São esses, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo precisa preservar-se. Quanto maior consistência ele adquirir, tanto mais ciladas lhe armarão seus adversários. É, portanto, dever de todos os espíritas sinceros anular as manobras da intriga que se possam urdir, assim nos pequenos, como nos grandes centros. Deverão eles, em primeiro lugar, repudiar, do modo mais absoluto, todo aquele que por si mesmo se apresente qual messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Pelo fruto é que se conhece a árvore; espere-se, pois, que a árvore dê seu fruto, para decidir se ela é boa e veja-se também se os frutos têm sabor. (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XXI, nº 9, “Caracteres do verdadeiro profeta”.)

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer que os candidatos fossem designados pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além de que este meio não obviaria a todos os inconvenientes, apresentaria outros, peculiares a semelhante modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que fora supérfluo lembrar aqui. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos consiste em nos instruir, para que nos melhoremos, porém não em se sobreporem ao nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem ideias, ajudam com seus conselhos, principalmente no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso raciocínio o encargo da execução das coisas materiais, encargo a que não lhes cabe poupar-nos. Em seu mundo eles têm atribuições que não são as da Terra; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições é expor-se às falcatruas dos Espíritos levianos. Contentem-se os homens com o serem assistidos e protegidos por Espíritos bons; não descarreguem, porém, sobre eles, a responsabilidade que incumbe ao encarnado.

Esse meio, aliás, suscitaria maiores embaraços do que se poderia supor, pela dificuldade de fazer-se que todos os grupos participassem de semelhante eleição. Seria uma complicação nas engrenagens e estas tanto menos susceptíveis se mostrarão de desarranjar-se, quanto mais simplificadas forem.

O problema é, pois, o de constituir-se uma direção central, em condições de força e estabilidade, que a ponham ao abrigo de todas as flutuações; que correspondam a todas as necessidades da causa e oponham intransponível barreira às tramas da intriga e da ambição. Tal o objetivo do plano de que vamos dar um rápido esboço.


V.


COMISSÃO CENTRAL.

Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, saídos, no estado de embriões, de uma multidão de focos, se dirigissem para um centro comum, a fim de serem aí examinados e cotejados, de sorte que um só pensamento presidisse à coordenação deles, a fim de ' estabelecer-se a unidade no conjunto e a harmonia entre todas as partes: Se não fosse assim, a Doutrina ter-se-ia assemelhado a esses edifícios híbridos, projetados por vários arquitetos, ou a um mecanismo cujas rodas não se engrenam com precisão umas nas outras.

Já o temos dito, por ser verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina não podia sair, de um único centro, completamente estruturada, da mesma maneira que toda a ciência astronômica não poderia sair, inteiramente constituída, de um único observatório. Qualquer centro que tentasse erguê-la exclusivamente sobre as suas observações faria coisa incompleta e se acharia, com relação a uma infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer cada um a sua doutrina, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo quanto aos fundamentos, difeririam inevitavelmente quanto à forma. Ora, como há muita gente que atenta mais na forma do que na substância, tantas seriam as seitas quantas as formas diferentes. Somente do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais podia resultar a unidade. Por isso é que era necessária a concentração dos trabalhos. (A Gênese, capítulo I, “Caráter da revelação espírita”, nº 51 e seguintes.)

Mas, o que era de vantagem por um certo tempo mais tarde se tornaria inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração se acha concluído, no que concerne às questões fundamentais, que estabelecidos se encontram os princípios gerais da Ciência, a direção, de individual que houve de ser em começo, tem que se tornar coletiva, primeiramente, porque um momento há de vir em que o seu peso excederá as forças de um homem e, em segundo lugar, porque maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos, a cada um dos quais caiba apenas um voto e que nada podem sem o concurso mútuo, do que um só indivíduo, capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será confiada a uma comissão central ou conselho superior permanente — pouco importa o nome — cuja organização e atribuições se definam de maneira a não dar azo ao arbítrio. Essa comissão se comporá, no máximo de doze membros titulares, que deverão, para tal efeito, preencher certas condições indispensáveis, e de igual número de conselheiros. Ela se completará a si mesma, segundo regras igualmente determinadas, de modo a evitar todo favoritismo, à medida que em seu seio se derem vagas por falecimentos ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá o modo por que serão nomeados os doze primeiros.

Cada membro presidirá por sua vez durante um ano, e aquele que preencher esta função será designado por sorteio.

Puramente administrativa será a autoridade do presidente. Ele dirigirá as deliberações da comissão, velará pela execução dos trabalhos e pelo expediente; mas, fora das atribuições que os estatutos constitutivos lhe conferirem, nenhuma decisão poderá tomar sem o concurso da comissão. Portanto, não haverá possibilidade de abusos, nem alimentos para a ambição, nem pretextos para intrigas ou ciúmes, nem supremacia chocante.

A comissão central, ou conselho superior, será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia-geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer por meio da discussão, não será bastante para que haja confusão.

Os congressos serão constituídos por delegados das sociedades particulares, regularmente constituídas, e colocadas sob o patrocínio da comissão por sua adesão e pela conformidade de seus princípios.

Para a comunidade dos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, em suma, de um corpo constituído, representando opinião coletiva, forçosamente terão uma autoridade que jamais teriam, se emanassem de um só indivíduo, que apenas representa uma opinião pessoal. É frequente uma pessoa rejeitar a opinião de outra, por entender que se humilharia, caso se submetesse a essa opinião, e acatar sem dificuldades a de muitos.

Fica bem entendido que aqui se trata de autoridade moral, no que respeita à interpretação e aplicação dos princípios morais da Doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma academia, em matéria de Ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem maior ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, apresenta uma força de resistência e dispõe de meios de ação com que um indivíduo não poderia contar; aquele luta com vantagens infinitamente maiores. Uma individualidade está sujeita a ser atacada e aniquilada; o mesmo já não se dá com uma entidade coletiva.

Há, igualmente, numa entidade coletiva, uma garantia de estabilidade, que não existe, quando tudo recai sobre uma cabeça única. Desde que o indivíduo se ache impedido por uma causa qualquer, tudo fica paralisado. A entidade coletiva, ao contrário, se perpetua incessantemente. Embora perca um ou vários de seus membros, nada periclita.

A dificuldade, dirão, consistirá em reunir, de modo permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que sejam acordes no tocante aos princípios fundamentais. Ora, isso constituirá uma condição absoluta para que sejam admitidas à direção, como para a de todos os que desta hajam de participar. Sobre as questões pendentes de detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto a opinião da maioria é que prevalecerá. Àquele cuja maneira de ver for acertada, não faltarão razões boas com que a justifique. Se algum, contrariado por não conseguir que suas ideias predominem, se retirar, nem por isso deixariam as coisas de seguir o seu curso e motivo não haveria para se lhe deplorar a saída, pois que teria dado prova de uma susceptibilidade orgulhosa, pouco espírita, e que poderia tornar-se origem de perturbações.

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, do momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião. É esta uma questão de minúcia prevista na organização.

Admitamos que entre os membros da comissão haja um irmão falso, um traidor, que os inimigos da causa tenham ganho para si: que logrará ele fazer, não dispondo senão do seu voto nas decisões? Suponhamos que, por impossível, toda a comissão enverede por mau caminho: aí estarão os congressos para reconduzi-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração pertencerá aos congressos, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra a comissão central, por infração do seu mandato, por violação dos princípios estabelecidos, ou por medidas prejudiciais à Doutrina. Por isso é que se apelará da comissão para o congresso, nas circunstâncias em que se julgue que a responsabilidade da primeira está gravemente comprometida.

Sendo os congressos um freio para a comissão, na aprovação deles haure esta última novas forças. É assim que o chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem risco para si próprio, afastar-se do caminho reto.

Quando a comissão estiver organizada, dela faremos parte como simples membro seu, dando-lhe a nossa colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.


[DEPARTAMENTOS DA COMISSÃO CENTRAL.]


Às atribuições gerais da comissão serão anexados, como dependências locais:

1º Uma biblioteca, onde se encontrem reunidas todas as obras que interessem o Espiritismo e que possam ser consultadas no local, ou cedidas para leitura fora;

2º Um museu, onde se achem colecionadas as primeiras obras de arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos a quem a causa muito deva pelo devotamento que tenham demonstrado, os dos homens a quem o Espiritismo renda homenagens, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da Humanidade, grandes gênios missionários do progresso, etc.

3º Um dispensário destinado às consultas médicas gratuitas e ao tratamento médico de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4º Uma caixa de socorros e de previdência, em condições práticas;

5º Um asilo;

6º Uma sociedade de adeptos, que celebre sessões regulares.


VI.


OBRAS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA.

Muitas pessoas lamentam que as obras fundamentais da Doutrina tenham um preço tão elevado para grande número de leitores, e pensam, com razão, que se fossem feitas edições populares a baixo custo, estariam muito mais espalhadas, com o que ganharia a Doutrina.

Estamos completamente de acordo; mas, no estado atual das coisas, as condições em que são editadas não permitem que o sejam de outro modo. Esperamos chegar um dia a esse resultado, com o auxílio de uma nova combinação que se ligue ao plano geral de organização. Mas essa operação não pode ser realizada senão empreendida em vasta escala; só de nossa parte exigiria capitais que não possuímos, e trabalhos materiais que os nossos trabalhos, que reclamam todas as nossas meditações, não nos permitem dar. É por isto que a parte comercial propriamente dita foi negligenciada ou, melhor dizendo, sacrificada ao estabelecimento da parte doutrinária. O que importava, antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da Doutrina.

Em se achando organizado pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que as gerirá e cuidará da publicação delas, pelos meios mais apropriados a popularizá-las. Ela também deverá cuidar de que sejam traduzidas nas principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário que conservasse seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade.

Fomos, por diversas vezes, solicitados a fazê-la circular mais amiúde; por muito lisonjeiro, porém, que nos fosse esse desejo, não pudemos atendê-lo, primeiramente, porque o tempo material não nos consentia esse acréscimo de trabalho e, em segundo lugar, porque importava não perdesse ela o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima do seu termo, as necessidades já não são as mesmas; a Revista se tornará, como as nossas outras obras, feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior vantagem do Espiritismo, sem que, por isso, renunciemos a lhe prestar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, falta-nos publicar vários trabalhos, que não formam a parte menos difícil, nem menos penosa. Conquanto já disponhamos de todos os elementos para o executar e o programa de cada um esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dispensar-lhes mais acurada atenção e ativá-los, se, por instituída a comissão central, estivéssemos livres de outros cuidados que absorvem grande parte do nosso tempo.


VII.


ATRIBUIÇÕES DO COMITÊ.

Serão estas as atribuições principais da comissão central:

1º Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propagação; manter-lhe a unidade, pela conservação da integridade dos princípios firmados; prover ao desenvolvimento de suas consequências;

2º O estudo dos novos princípios, susceptíveis de entrar no corpo da Doutrina;

3º A concentração, em seu poder, de todos os documentos e informações que interessem ao Espiritismo;

4º A correspondência;

5º A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos diversos países;

6º A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo e à qual se poderá juntar outra publicação periódica;

7º O exame e apreciação das obras, dos artigos de jornais e de todos os escritos que interessem à Doutrina; a refutação dos ataques, se aparecerem;

8º A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais favoráveis à sua vulgarização; a elaboração e publicação das de que daremos o plano e que não teremos tempo de executar em nossa atual existência; o apoio de que precisem as publicações que sejam de proveito para a causa;

9º A fundação e conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10º A administração da caixa de socorros, do dispensário e do asilo;

11º A administração dos negócios materiais;

12º A direção das sessões da Sociedade;

13º O ensino oral;

14º As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob o seu patrocínio;

15º A convocação dos congressos e assembleias gerais.


Estas atribuições os membros da comissão as distribuirão entre si, conforme a especialidade de cada um, sendo eles, se for preciso, assistidos por certo número de auxiliares ou de simples empregados.

Em consequência, entre os membros da comissão haverá:

Um secretário-geral para a correspondência e as atas das sessões da comissão;

Um redator-chefe para Revista e as outras publicações;

Um bibliotecário-arquivista, encarregado, além disso, do exame e das apreciações criticas das obras e artigos de jornais;

Um diretor da caixa de socorros, também encarregado da direção do dispensário, das visitas aos doentes e necessitados e de tudo o que se refere à beneficência. Será secundado por uma comissão de beneficência escolhida no seio da Sociedade, e formada de pessoas caridosas de boa vontade;

Um administrador-contador, encarregado dos negócios e dos interesses materiais;

Um diretor especial para os negócios concernentes às publicações;

Oradores para o ensino oral, encarregados, ademais, de visitar as sociedades dos Departamentos e aí dar instruções. Poderão ser tomados entre os membros auxiliares e os adeptos de boa vontade que, para tanto, receberão um mandato especial.

Seja qual for a extensão ulterior dos negócios e do pessoal administrativo, a comissão será sempre limitada ao mesmo número de membros titulares.

Até agora tivemos de nos bastar mais ou menos sozinhos a este programa. Por isso mesmo, algumas de suas partes foram negligenciadas ou apenas puderam ser esboçadas, e as que são mais especialmente da nossa alçada, tiveram que sofrer inevitáveis atrasos, pela necessidade de nos ocupar de tantas coisas, quando o tempo e as forças têm limites e uma só absorveria o tempo de um homem.


VIII.


VIAS E MEIOS.

É de lastimar, sem dúvida, que tenhamos de entrar em considerações de ordem material, para alcançarmos um objetivo todo espiritual. Cumpre, porém, observemos, que a espiritualidade mesma da obra se prende à questão da Humanidade terrena e do seu bem-estar; que já não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e de durável, para a extensão e a consolidação da Doutrina, à qual é preciso fazer produzir os frutos de que é susceptível de dar. Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com um bastão de viagem, sem cogitarem de saber onde pousariam, nem do que comeriam, fora alimentar uma ilusão que bem depressa amarga decepção destruiria. Para alguém fazer qualquer coisa de sério, tem que se submeter às necessidades impostas pelos costumes da época em que vive e essas necessidades são muito diversas da dos tempos da vida patriarcal. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que se apreciem os meios de ação, para não ser forçoso parar a meio do caminho. Apreciemo-los, portanto, uma vez que estamos num século em que é preciso calcular tudo.

São em grande número, como se vê, as atribuições da comissão central, para necessitarem de uma verdadeira administração. Tendo cada um de seus membros funções ativas e assíduas, se apenas a constituíssem homens de boa vontade, os trabalhos seriam prejudicados, porquanto ninguém teria o direito de censurar os negligentes. Para regularidade dos trabalhos e normalidade do expediente, necessário se torna contar com homens de cuja assiduidade se possa estar certo e que não considerem suas funções como simples atos de comprazer. De quanto mais independência eles forem senhores, pelos seus recursos pessoais, tanto menos se deixarão prender por ocupações assíduas; se não dispuserem de tempo, não poderão consagrá-lo àquelas funções. Importa, pois, que sejam retribuídos, assim como o pessoal administrativo. Com isso a Doutrina ganhará em força, em estabilidade, em pontualidade, do mesmo passo que constituirá um meio de prestar serviços a pessoas que dela necessitem.

Ponto essencial, na economia de toda administração previdente, é que sua existência não dependa de produtos eventuais que possam fazer falta, mas de recursos certos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não seja embaraçada. Insta, pois, que as pessoas que forem chamadas a lhe prestar concurso, não se sintam inquietas quanto ao futuro que as aguarde. Ora, a experiência demonstra que se devem considerar essencialmente aleatórios os recursos que apenas tenham por base o produto de cotas ou contribuições, sempre facultativas, quaisquer que sejam os compromissos contraídos, e de cobrança sempre difícil. Assentar despesas permanentes e regulares sobre recursos eventuais, implicaria falta de previdência, que mais tarde se haveria de deplorar. Menos graves são, sem dúvida, as consequências, quando se trate de fundações temporárias, destinadas a durar quanto possam; aqui, porém, é uma questão de futuro. A sorte de uma administração como esta não pode ficar subordinada aos azares de um negócio comercial; precisa ser, desde o seu início, se não tão florescente, pelo menos tão estável quanto o será daqui a um século. Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em tal caso a mais vulgar prudência manda se capitalizem, de forma inalienável, os recursos, à proporção que vão sendo obtidos, a fim de constituir-se uma renda perpétua, a coberto de todas as eventualidades. Regulando a administração a sua despesa pela renda que aufira, não pode a sua existência, em nenhum caso, achar-se comprometida, pois que disporá sempre de meios para funcionar. Pode, no começo, organizar-se em menor escala; o número de membros da comissão poderá ser limitado provisoriamente a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, salvo para proporcionar o desenvolvimento pelo acréscimo dos recursos e das necessidades da causa, considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora membro ativo da comissão central, não pesaremos de forma alguma no seu orçamento, nem por honorários, nem por despesas de viagens, nem por outra causa qualquer. Se nunca a ninguém nada pedimos para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância. Nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parcela dos recursos de que dispuser a comissão será desviada em proveito nosso.

Dar-lhe-emos, ao contrário, a nossa contribuição:

1º Abrindo mão, em seu favor, do que produzam as nossas obras, feitas e por fazer;

2º Doando-lhe valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da Doutrina, e não para aí conquistarmos uma posição da qual não necessitamos. Foi para preparar as vias desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de haver posto a primeira pedra.

Figuremos então que, de um modo ou de outro, a comissão central, em dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe uma renda de 25 a 30.000 francos. Restringindo, em começo, as suas despesas, os recursos de toda espécie de que disponha, em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que será objeto de uma contabilidade rigorosa. Reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda irá aumentar o capital comum. Proporcionalmente, com os recursos desse capital é que a comissão proverá às diversas despesas proveitosas ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais faça dele aplicação pessoal, nem fonte de especulação para qualquer de seus membros: Ao demais, o emprego dos fundos e escrituração serão submetidos à verificação de comissários especiais, designados, para esse efeito, pelos congressos ou assembleias gerais.

A comissão terá por um de seus primeiros cuidados ocupar-se com as publicações, desde que seja possível, sem esperar que o possa fazer com o auxílio das rendas. Os fundos a isso destinados não serão, em realidade, mais que um adiantamento, pois que voltarão à caixa, em virtude da venda das obras, cujo produto reverterá ao capital comum. É um negócio de administração.

Para dar a esta instituição uma existência legal, ao abrigo de toda contestação, dar-lhe, além disso, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se for julgado necessário, por ato autêntico, sob forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos, prorrogável indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se de seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias da comissão, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas ligamos; queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

A criação de uma caixa geral de socorros é impraticável e apresenta sérios inconvenientes, como já o demonstramos em artigo especial. (Revista de julho de 1866). A comissão não deve, pois, tomar um caminho que teria de abandonar ao cabo de pouco tempo, nem empreender coisa alguma que não esteja certa de poder realizar. Ela precisa ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas. Esse o meio de caminhar longo tempo e com segurança. Para isso, cumpre-lhe ficar sempre dentro dos limites do possível.

Essa caixa de socorros não pode e não deve ser mais do que uma instituição local, de ação circunscrita e cuja prudente organização sirva de modelo às do mesmo gênero que as sociedades particulares venham a criar. Pela sua multiplicidade é que elas prestarão serviços eficazes e não pela centralização dos meios de ação.

Será alimentada: 1º pelas parcelas, que se lhe destinem, tiradas da renda da caixa geral do Espiritismo; 2º pelos donativos especiais que lhe forem feitos. Ela capitalizará as somas que receber, de maneira a constituir para si um rendimento. Com essa renda é que prestará os socorros temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações do seu mandato, estipuladas no regulamento da sua constituição.

O projeto de um asilo, na acepção completa do termo, não poderá ter execução logo de começo, pelos capitais que reclamaria semelhante fundação e, ao demais, porque é preciso dar à administração tempo de se firmar e de atuar com regularidade, antes de complicar suas atribuições com empreendimentos que possam malograr-se. Fora imprudência tentar muitas coisas, antes de estar certa de dispor dos meios de execução. É o que facilmente se compreenderá, desde que se pense em todos os pormenores inerentes a estabelecimentos desse gênero. Convém, sem dúvida, alimentar boas intenções, mas, antes de tudo, mister se faz poder realizá-las.


IX.


CONCLUSÃO.

Tais são as bases principais da organização que nos propomos dar ao Espiritismo, se as circunstâncias no-lo permitirem. Tivemos que desenvolver os motivos um tanto longamente, a fim de dar a conhecer o seu espírito. Os detalhes serão objeto de uma regulamentação minuciosa, na qual todos os casos serão previstos de maneira a levantar todas as dificuldades de execução.

Consequente com os princípios de tolerância e de respeito a todas as opiniões, que o Espiritismo professa, não pretendemos impor esta organização a ninguém, nem constranger quem quer que seja a se submeter a ela. Nosso objetivo é estabelecer um primeiro laço entre os espíritas, que o desejam desde muito tempo e se lastimam de seu isolamento. Ora, esse laço, sem o qual o Espiritismo, permanecendo no estado de opinião individual, sem coesão, só pode existir com a condição de se religar a um centro por uma comunhão de vistas e de princípios. Esse centro não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, agindo no interesse geral e na qual a autoridade pessoal se apaga.

Se ele não existisse, qual teria sido o ponto de ligação dos espíritas disseminados em diferentes países? Não podendo comunicar suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, eles também espalhados, e muitas vezes sem consistência, teriam ficado isolados e, com isto, sofrido a difusão da Doutrina. Era preciso, pois, um ponto aonde todos chegassem e de onde tudo pudesse irradiar. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar inútil esse centro, faria sentir melhor a sua necessidade, porque a necessidade de aproximação e de formação de um feixe será tanto maior quanto mais considerável for o número de adeptos.

Mas qual será a extensão do círculo de atividades desse centro? É destinado a reger o mundo e a tornar-se o árbitro universal da verdade? Se tivesse essa pretensão, seria compreender mal o espírito do Espiritismo que, por isso mesmo que proclama os princípios do livre-exame e da liberdade de consciência, repudia a ideia de se erigir em autocracia; desde o começo entraria numa senda fatal.

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da Natureza, e não sobre abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira, que os espíritas do mundo inteiro estarão sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder, que deverão esperar a luz de um ponto fixo, para o qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma única nação, governada por um só chefe, regida pelo mesmo código de leis e submetidas aos mesmos costumes. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos hábitos, aos caracteres e aos climas de cada uma.

Assim será com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo inteiro terão princípios comuns, que os ligarão à grande família pelo laço sagrado da fraternidade, mas cuja aplicação poderá variar conforme as regiões, sem que, por isto, seja rompida a unidade fundamental, sem formar seitas dissidentes que se atirem a pedra e o anátema, o que seria antiespírita em alto grau. Poderão, pois, se formar, e inevitavelmente se formarão, centros gerais em diferentes países, sem outro laço além da comunhão de crença e a solidariedade moral, sem subordinação de um ao outro, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de impor-se aos espíritas americanos e reciprocamente.

A comparação dos observatórios, que citamos acima, é perfeitamente justa. Há observatórios em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, estão baseados em princípios gerais e reconhecidos da Astronomia, o que, por isso, não os torna tributários uns dos outros; cada um regula seus trabalhos como entende; comunicam-se as suas observações, e cada um põe a serviço da Ciência as descobertas de seus confrades. Dar-se-á o mesmo com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão o que tiverem de bom e aplicável aos costumes das regiões onde estiverem estabelecidos, pois o seu objetivo é o bem da Humanidade, e não a satisfação das ambições pessoais. O Espiritismo é uma questão de fundo; prender-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os diversos centros, que estiverem no verdadeiro espírito do Espiritismo, deverão estender-se a mão fraterna e se unirem no combate aos seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.








Dezembro

I. Considerações preliminares. II. Extrato do relatório da Caixa do Espiritismo. — III. Dos cismas. — IV. O chefe do Espiritismo. — V. Comissão central. — Departamentos da Comissão central. — VI. Obras fundamentais da Doutrina. — VII. Atribuições do Comitê. — VIII. Vias e meios. — IX. Conclusão.


I.


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram. Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora se exporem a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos.

Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas.

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá.

Se bem não haja ele dito ainda sua última palavra sobre todos os pontos, aproxima-se do seu complemento e soou a hora de se lhe oferecer uma base forte e durável, susceptível, contudo, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias ulteriores comportem e que ofereça toda a segurança aos que inquiram quem, depois de nós, lhe tomará as rédeas.

A Doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa nas leis da Natureza e porque, melhor do que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações dos homens. Entretanto, a sua difusão e a sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias várias, algumas das quais subordinadas à marcha geral das coisas, outras inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização. É destas que nos vamos ocupar especialmente neste momento.

Conquanto a questão de substância seja preponderante em tudo e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui importância capital; poderia mesmo sobrepujar momentaneamente e suscitar embaraços e atrasos, conforme a maneira por que fosse resolvida.

Houvéramos, pois, feito coisa incompleta e deixado grandes dificuldades para o futuro, se não prevíssemos as que podem surgir. Com o intuito de evitá-las foi que, com o concurso dos bons Espíritos que nos assistem em nossos trabalhos, elaboramos um plano de organização, pondo em jogo a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais se chocaram a maioria das doutrinas que apareceram no mundo. Podendo este plano prestar-se a todos os desenvolvimentos que reserva o futuro, demos, por isto mesmo, a esta constituição a qualificação de transitória.

O plano aqui exposto concebemo-lo há longo tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo, é certo, mas o bastante para mostrar que não é esta, hoje, uma concepção nova e que, trabalhando na parte teórica da obra, não nos descuidávamos do lado prático.

Antes de abordar a fundo a questão, parece-nos útil lembrar algumas passagens do relatório que apresentamos à Sociedade de Paris, no dia 5 de maio de 1865, a propósito da caixa do Espiritismo, e que foi publicado na Revista de junho de 1865. As considerações que ele encerra se ligam diretamente ao nosso assunto, do qual elas são as preliminares indispensáveis.


II.


EXTRATO DO RELATÓRIO DA CAIXA DO ESPIRITISMO, FEITO A SOCIEDADE DE PARIS, EM 5 DE MAIO DE 1865.

Muito se há falado dos proventos que eu retirava de minhas obras. Certamente, nenhuma pessoa séria acredita realmente em meus milhões, a despeito da afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca, tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. (Revista de junho de 1862). Além disso, não obstante o que disse o autor de uma brochura que conheceis, provando, por cálculos hiperbólicos, que o meu orçamento de receita ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porquanto, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários (Revista de junho de 1863), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém, ninguém me deu algo para mim pessoalmente; numa palavra, não vivo a expensas de ninguém, porquanto, das somas que me foram voluntariamente confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito.

As minhas imensas riquezas proviriam, pois, das minhas obras espíritas. Conquanto estas obras tenham alcançado inesperado êxito, basta ter um pouco de familiaridade com os negócios de livraria, para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns centavos por exemplar. Mas, avultado ou mínimo, sendo esse lucro fruto do meu trabalho, ninguém tem o direito de intrometer-se no emprego que lhe dou; ainda mesmo que se elevasse a milhões, ninguém tem nada a ver com isto, desde que a compra de livros, assim como a assinatura da Revista, é facultativa e não se impõe em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade. Falando comercialmente, estou na posição de todo homem que recolhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor, que tanto pode triunfar, quanto fracassar.

Mesmo não tendo, neste particular, nenhuma conta a prestar, creio útil à própria causa a que me devotei, dar algumas explicações.

Antes de mais, direi que minhas obras não são propriedade exclusiva minha, o que me obriga a comprá-las de meu editor e pagá-las como um livreiro, à exceção da Revista; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas dívidas incobráveis e pelas distribuições gratuitas, feitas no interesse da Doutrina, a pessoas que, sem isto, delas estariam privadas. Um cálculo muito fácil prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, é suficiente para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. Somando tudo e feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes; o que faço dela? Isto é o que mais preocupa certa gente.

Quem quer que outrora tenha visto a nossa habitação e a veja hoje poderá atestar que nada mudou na nossa maneira de viver, desde que entrei a ocupar-me com o Espiritismo; é tão simples agora como o era antigamente. Então é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Teria eu, então, a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Creio que meu caráter e meus hábitos jamais permitiram que se fizesse tal suposição. O que pretendem? Desde que isto não me aproveita, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia saberão a cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os fazedores de histórias pouparão a imaginação; hoje eu me limito a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto devo entrar nalguns detalhes íntimos, mas que são necessários, e para os quais vos peço perdão.

Sempre tivemos do que viver, muito modestamente é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo e o de um modesto emprego, que me vi forçado a deixar quando os trabalhos da Doutrina absorveram todo o meu tempo.

Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho; em pouco tempo vi-me arrastado por um movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr de modo algum em evidência e permanecer desconhecido; mas, prontamente ultrapassado, isto não me foi possível: tive de renunciar ao meu gosto pelo insulamento, sob pena de abdicar da obra empreendida e que crescia de dia para dia; foi preciso seguir seu impulso e tomar-lhe as rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, seguramente não fui eu que o procurei, pois é notório que nem a devo à propaganda, nem à camaradagem da imprensa, e que jamais aproveitei de minhas relações para me lançar no mundo, quando isto me teria sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto se desdobrava à minha frente, recuando os seus limites; compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorarem, as dificuldades e os obstáculos redobraram as minhas energias; vi o objetivo e resolvi atingi-lo com a assistência dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas; foi a obra de minha vida: a ela dei todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe meu repouso, minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrecusáveis.

Sem nos afastarmos do nosso gênero de vida, nem por isso essa posição excepcional deixou de nos criar menos necessidades a que só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiriam prover. Seria difícil a outrem imaginar a multiplicidade das despesas que aquela posição acarreta e que, sem ela, eu teria evitado.

Pois bem, senhores! o que me proporcionou suprimento aos meus recursos foi o produto das minhas obras. E o digo com satisfação, pois foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Assim, eu trouxe uma larga cota-parte à caixa do Espiritismo. Os que ajudam a propagação das obras não poderão, pois, dizer que trabalham para me enriquecer, porque o produto da venda de todo livro, de toda assinatura da Revista, redunda em proveito da Doutrina e não do indivíduo.

Mas, prover ao presente não era tudo: importava também pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse auxiliar aquele que me substituísse na grande tarefa que terá de desempenhar Esta fundação, a cujo respeito ainda devo guardar silêncio, se prende à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico, em melhorá-la, uma parte do que ganho. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, e a despeito de minhas economias, duvido muito que meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria destinar. Uma vez, porém, que a sua realização está nos desígnios dos meus guias espirituais, se eu mesmo não o fizer, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. Enquanto aguardo, vou elaborando os projetos no papel.

Longe de mim, senhores, o pensamento de me envaidecer, ainda que de leve, com o que acabo de expor-vos. Foi necessária a pertinácia de certas diatribes, para que eu me decidisse, embora a contragosto, a quebrar o silêncio acerca de alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que à malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por meio de documentos autênticos; mas o tempo dessas explicações ainda não chegou. A única coisa que por enquanto me importava era que ficásseis esclarecidos com relação ao destino dos fundos que a Providência faz que passem pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero mais do que um depositário, até mesmo do que ganho e, com mais forte razão, daquilo que me é confiado.

Alguém me perguntava certo dia, sem curiosidade, é claro, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que houvera sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isso seria inútil, pois os nossos adversários se encarregaram de custeá-la. Não me pondo então à disposição grandes recursos, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo só devia seus triunfos à sua própria força.

Hoje, que o horizonte se ampliou, sobretudo que o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de ordem completamente diversa. Um capital como o que supondes receberia um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes, que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte se destinaria a converter a minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra constituiria uma renda inalienável, destinada: 1º a manter o estabelecimento; 2º a assegurar uma existência a quem me suceder e aos que o ajudarem em sua missão; 3º a prover às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de auxílios eventuais, como sou obrigado a fazer, já que a maior parte de seus recursos decorrem do meu trabalho, que terá termo.

Eis o que eu faria; mas se esta satisfação não me é dada, sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo oportuno. Eis por que absolutamente não me inquieto com isto e só me ocupo com o que, para mim, é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.


III.


DOS CISMAS.

Uma questão que logo se apresenta é a dos cismas que poderão nascer no seio da Doutrina. Estará preservado deles o Espiritismo?

Não, certamente, porque terá, sobretudo no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, refratárias a se amalgamarem com as ideias dos demais; e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, se empenham por ligar seus nomes a uma inovação qualquer; dos que criam novidades só para poderem dizer que não pensam ou agem como os outros; ou porque o seu amor-próprio sofre, por não ocuparem senão uma posição secundária; ou, enfim, porque veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar. Mas, como lhes temos dito centenas de vezes: “Quem vos barra o caminho? Quem vos impede de trabalhar por vosso lado? Quem vos proíbe de publicar as vossas obras? A publicidade vos está aberta como a todo o mundo; dai algo de melhor do que o que está, ninguém, a isto se opõe; sede mais apreciados pelo público, e ele vos dará a preferência.”

Se, porém, o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia neutralizar-lhes as consequências e isto é o essencial.

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de' uma teoria racional. Hoje, raros partidários ainda contam esses primitivos sistemas. É este um, fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências se apagarão com a elucidação integral de todas as partes da Doutrina. Mas, haverá sempre os dissidentes, de ânimo prevenido e interessados, por um motivo ou por outro, a constituir bando à parte. Contra a pretensão desses é que cumpre se premunam os demais.

Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. Quando for dito peremptoriamente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém pode pretender que se quis dizer que dois e dois fazem cinco.

Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância.

O segundo ponto está em não se sair do âmbito das ideias práticas. Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.

Se, portanto, uma seita se formar à ilharga do Espiritismo, fundada ou não em seus princípios, de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como já sucedeu a tantas outras, através dos séculos; se suas ideias forem acertadas, mesmo que com relação a um único ponto, a Doutrina, que apenas procura o bem e o verdadeiro onde quer que se encontrem, as assimilará, de sorte que, em vez de ser absorvida, absorverá. Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela os imitará; se fizerem maior bem, ela se esforçará por fazer outro tanto ou mais, se possível; se fizerem mais mal, ela os deixará fazer, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem sobrepuja o mal e o verdadeiro predominará sobre o que é falso. Esta a única luta em que se empenhará.

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da moral espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros; não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo, invariável. Mas, quem poderá lisonjear-se de possuí-la toda? No estado de imperfeição em que se acham os nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdadeiro, em consequência da descoberta de novas leis, e isso tanto na ordem moral, quanto na ordem física. Contra essa eventualidade, a Doutrina nunca deverá estar desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade Em vez de ser uma força, a imobilidade se torna uma causa de fraqueza e de ruína, para quem não acompanha o movimento geral; quebra a unidade, porque os que querem avançar se separam dos que se obstinam em ficar atrás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, cumpre fazê-lo com prudência e evitar ir de cabeça baixa ao encontro dos devaneios da utopia e dos sistemas. É preciso fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Compreende-se que uma doutrina assente sobre tais bases tem que ser realmente forte; ela desafia toda concorrência e neutraliza as pretensões de seus competidores. É para este ponto que os nossos esforços tendem a conduzir a Doutrina Espírita.

Aliás, a experiência já comprovou o acerto desta previsão. Tendo marchado sempre por esse caminho desde a sua origem, a Doutrina avança constantemente, mas sem precipitação, verificando sempre se é sólido o terreno onde pisa e medindo seus passos pelo estado da opinião. Fez como o navegante que não prossegue sem ter na mão a sonda e sem consultar os ventos.


IV.


O CHEFE DO ESPIRITISMO.

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa senda? Quem terá mesmo a força? Quem disporá do tempo e da perseverança necessários para se consagrar ao trabalho incessante que semelhante tarefa exige? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não será de temer que se desvie da sua rota? e que a malevolência, com a qual ainda estará por longo tempo em luta, não procure desfigurar-lhe o espírito? É essa, com efeito, uma questão vital e cuja solução se reveste do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é tão evidente, que já causa inquietação o não ser visto, a surgir no horizonte, o seu condutor. Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar a impulsão, de estimular os zelos, de defender os fracos, de sustentar os ânimos vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de caminhar ao léu. Não somente essa direção é necessária, como também preciso se faz que preencha condições de força e de estabilidade suficientes para afrontar as tempestades.

Os que nenhuma autoridade admitem não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar toda direção, a maioria, os que não se creem infalíveis e não depositam confiança absoluta em suas próprias luzes, se sentem necessitados de um ponto de apoio, de um guia, ainda que apenas para ajudá-los a caminhar com segurança. (Vide a Revista de abril de 1866: O Espiritismo Independente).

Reconhecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados no mundo inteiro? É coisa impraticável. Se se impuser por sua própria autoridade, uns o aceitarão, enquanto que outros o recusarão, e podem surgir vinte pretendentes, levantando bandeira contra bandeira. Fora ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso e ninguém conviria menos do que um ambicioso, por isso mesmo orgulhoso, para chefiar uma doutrina que se baseia na abnegação, no devotamento, no desinteresse, na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, outra coisa não poderia fazer, senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente se daria, se de antemão se não adotassem medidas eficazes a prevenir esse inconveniente.

Admitamos, no entanto, houvesse um homem com todas as qualidades necessárias ao desempenho do seu mandato e que, por uma senda qualquer, chegasse à direção suprema. Os homens se sucedem e não se assemelham; depois de um bom, poderia vir um mau. Com o indivíduo, pode mudar o espírito da direção; sem maus desígnios, pode ele ter modos de ver mais ou menos justos; se entender de fazer que prevaleçam suas ideias pessoais, pode levar a Doutrina a transviar-se, suscitar dissidências e as mesmas dificuldades se renovarão a cada mudança. É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força. Do ponto de vista da organização, é uma criança que mal começa a andar. Insta, pois, sobretudo no princípio, premuni-lo contra os obstáculos do caminho.

Mas, dir-se-á, não virá estar à frente do Espiritismo um dos Espíritos que, segundo foi anunciado, tem que tomar parte na obra da regeneração? É provável; todavia, como esses Espíritos não trarão na fronte um sinal para serem reconhecidos; como não se afirmarão senão por seus atos, e, na maioria, só serão reconhecidos depois de terem morrido, conformemente ao que houverem produzido durante a vida; como, ao demais, não serão perpétuos, mister se torna prever todas as eventualidades.

É sabido que eles terão uma missão multíplice; que serão de todos os graus da escala espiritual e se encontrarão nos diversos ramos da economia [organização] social, onde um exercerá influência a favor das novas ideias, conforme a particularidade da sua posição; que todos, pois, trabalharão pelo ascendente da Doutrina, aqui e ali, uns como chefes de Estado, outros como legistas, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc.; que cada um dará provas de si onde lhe caiba exercer sua atividade, desde o proletário até o soberano, sem que qualquer coisa os distinga do comum dos homens, a não serem suas obras. Se a um deles couber tomar parte na direção, é provável que seja posto providencialmente na posição apropriada a fazê-lo chegar lá pelos meios legais que forem adotados; circunstâncias aparentemente fortuitas até lá o conduzirão, sem que de sua parte haja desígnio premeditado, sem mesmo ter ele consciência de sua missão. (Revista Espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868.)

Em tal caso, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias têm que ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, a só pretensão de ser um messias constituiria a negação dessas qualidades essenciais; provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou tola presunção, em havendo boa-fé, ou insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pseudo-espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou cupidez; outros que alardeiam pretensas revelações com o auxílio das quais procurem salientar-se e fascinar as imaginações por demais crédulas. É também de prever que, sob falsas aparências, indivíduos haja que tentem apoderar-se do leme, com a ideia preconcebida de fazerem soçobrar o navio, desviando-o de sua rota. O navio não soçobrará, mas poderia sofrer prejudiciais atrasos que se devem evitar.

São esses, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo precisa preservar-se. Quanto maior consistência ele adquirir, tanto mais ciladas lhe armarão seus adversários. É, portanto, dever de todos os espíritas sinceros anular as manobras da intriga que se possam urdir, assim nos pequenos, como nos grandes centros. Deverão eles, em primeiro lugar, repudiar, do modo mais absoluto, todo aquele que por si mesmo se apresente qual messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Pelo fruto é que se conhece a árvore; espere-se, pois, que a árvore dê seu fruto, para decidir se ela é boa e veja-se também se os frutos têm sabor. (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XXI, nº 9, “Caracteres do verdadeiro profeta”.)

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer que os candidatos fossem designados pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além de que este meio não obviaria a todos os inconvenientes, apresentaria outros, peculiares a semelhante modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que fora supérfluo lembrar aqui. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos consiste em nos instruir, para que nos melhoremos, porém não em se sobreporem ao nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem ideias, ajudam com seus conselhos, principalmente no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso raciocínio o encargo da execução das coisas materiais, encargo a que não lhes cabe poupar-nos. Em seu mundo eles têm atribuições que não são as da Terra; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições é expor-se às falcatruas dos Espíritos levianos. Contentem-se os homens com o serem assistidos e protegidos por Espíritos bons; não descarreguem, porém, sobre eles, a responsabilidade que incumbe ao encarnado.

Esse meio, aliás, suscitaria maiores embaraços do que se poderia supor, pela dificuldade de fazer-se que todos os grupos participassem de semelhante eleição. Seria uma complicação nas engrenagens e estas tanto menos susceptíveis se mostrarão de desarranjar-se, quanto mais simplificadas forem.

O problema é, pois, o de constituir-se uma direção central, em condições de força e estabilidade, que a ponham ao abrigo de todas as flutuações; que correspondam a todas as necessidades da causa e oponham intransponível barreira às tramas da intriga e da ambição. Tal o objetivo do plano de que vamos dar um rápido esboço.


V.


COMISSÃO CENTRAL.

Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, saídos, no estado de embriões, de uma multidão de focos, se dirigissem para um centro comum, a fim de serem aí examinados e cotejados, de sorte que um só pensamento presidisse à coordenação deles, a fim de ' estabelecer-se a unidade no conjunto e a harmonia entre todas as partes: Se não fosse assim, a Doutrina ter-se-ia assemelhado a esses edifícios híbridos, projetados por vários arquitetos, ou a um mecanismo cujas rodas não se engrenam com precisão umas nas outras.

Já o temos dito, por ser verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina não podia sair, de um único centro, completamente estruturada, da mesma maneira que toda a ciência astronômica não poderia sair, inteiramente constituída, de um único observatório. Qualquer centro que tentasse erguê-la exclusivamente sobre as suas observações faria coisa incompleta e se acharia, com relação a uma infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer cada um a sua doutrina, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo quanto aos fundamentos, difeririam inevitavelmente quanto à forma. Ora, como há muita gente que atenta mais na forma do que na substância, tantas seriam as seitas quantas as formas diferentes. Somente do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais podia resultar a unidade. Por isso é que era necessária a concentração dos trabalhos. (A Gênese, capítulo I, “Caráter da revelação espírita”, nº 51 e seguintes.)

Mas, o que era de vantagem por um certo tempo mais tarde se tornaria inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração se acha concluído, no que concerne às questões fundamentais, que estabelecidos se encontram os princípios gerais da Ciência, a direção, de individual que houve de ser em começo, tem que se tornar coletiva, primeiramente, porque um momento há de vir em que o seu peso excederá as forças de um homem e, em segundo lugar, porque maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos, a cada um dos quais caiba apenas um voto e que nada podem sem o concurso mútuo, do que um só indivíduo, capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será confiada a uma comissão central ou conselho superior permanente — pouco importa o nome — cuja organização e atribuições se definam de maneira a não dar azo ao arbítrio. Essa comissão se comporá, no máximo de doze membros titulares, que deverão, para tal efeito, preencher certas condições indispensáveis, e de igual número de conselheiros. Ela se completará a si mesma, segundo regras igualmente determinadas, de modo a evitar todo favoritismo, à medida que em seu seio se derem vagas por falecimentos ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá o modo por que serão nomeados os doze primeiros.

Cada membro presidirá por sua vez durante um ano, e aquele que preencher esta função será designado por sorteio.

Puramente administrativa será a autoridade do presidente. Ele dirigirá as deliberações da comissão, velará pela execução dos trabalhos e pelo expediente; mas, fora das atribuições que os estatutos constitutivos lhe conferirem, nenhuma decisão poderá tomar sem o concurso da comissão. Portanto, não haverá possibilidade de abusos, nem alimentos para a ambição, nem pretextos para intrigas ou ciúmes, nem supremacia chocante.

A comissão central, ou conselho superior, será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia-geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer por meio da discussão, não será bastante para que haja confusão.

Os congressos serão constituídos por delegados das sociedades particulares, regularmente constituídas, e colocadas sob o patrocínio da comissão por sua adesão e pela conformidade de seus princípios.

Para a comunidade dos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, em suma, de um corpo constituído, representando opinião coletiva, forçosamente terão uma autoridade que jamais teriam, se emanassem de um só indivíduo, que apenas representa uma opinião pessoal. É frequente uma pessoa rejeitar a opinião de outra, por entender que se humilharia, caso se submetesse a essa opinião, e acatar sem dificuldades a de muitos.

Fica bem entendido que aqui se trata de autoridade moral, no que respeita à interpretação e aplicação dos princípios morais da Doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma academia, em matéria de Ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem maior ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, apresenta uma força de resistência e dispõe de meios de ação com que um indivíduo não poderia contar; aquele luta com vantagens infinitamente maiores. Uma individualidade está sujeita a ser atacada e aniquilada; o mesmo já não se dá com uma entidade coletiva.

Há, igualmente, numa entidade coletiva, uma garantia de estabilidade, que não existe, quando tudo recai sobre uma cabeça única. Desde que o indivíduo se ache impedido por uma causa qualquer, tudo fica paralisado. A entidade coletiva, ao contrário, se perpetua incessantemente. Embora perca um ou vários de seus membros, nada periclita.

A dificuldade, dirão, consistirá em reunir, de modo permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que sejam acordes no tocante aos princípios fundamentais. Ora, isso constituirá uma condição absoluta para que sejam admitidas à direção, como para a de todos os que desta hajam de participar. Sobre as questões pendentes de detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto a opinião da maioria é que prevalecerá. Àquele cuja maneira de ver for acertada, não faltarão razões boas com que a justifique. Se algum, contrariado por não conseguir que suas ideias predominem, se retirar, nem por isso deixariam as coisas de seguir o seu curso e motivo não haveria para se lhe deplorar a saída, pois que teria dado prova de uma susceptibilidade orgulhosa, pouco espírita, e que poderia tornar-se origem de perturbações.

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, do momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião. É esta uma questão de minúcia prevista na organização.

Admitamos que entre os membros da comissão haja um irmão falso, um traidor, que os inimigos da causa tenham ganho para si: que logrará ele fazer, não dispondo senão do seu voto nas decisões? Suponhamos que, por impossível, toda a comissão enverede por mau caminho: aí estarão os congressos para reconduzi-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração pertencerá aos congressos, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra a comissão central, por infração do seu mandato, por violação dos princípios estabelecidos, ou por medidas prejudiciais à Doutrina. Por isso é que se apelará da comissão para o congresso, nas circunstâncias em que se julgue que a responsabilidade da primeira está gravemente comprometida.

Sendo os congressos um freio para a comissão, na aprovação deles haure esta última novas forças. É assim que o chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem risco para si próprio, afastar-se do caminho reto.

Quando a comissão estiver organizada, dela faremos parte como simples membro seu, dando-lhe a nossa colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.


[DEPARTAMENTOS DA COMISSÃO CENTRAL.]


Às atribuições gerais da comissão serão anexados, como dependências locais:

1º Uma biblioteca, onde se encontrem reunidas todas as obras que interessem o Espiritismo e que possam ser consultadas no local, ou cedidas para leitura fora;

2º Um museu, onde se achem colecionadas as primeiras obras de arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos a quem a causa muito deva pelo devotamento que tenham demonstrado, os dos homens a quem o Espiritismo renda homenagens, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da Humanidade, grandes gênios missionários do progresso, etc.

3º Um dispensário destinado às consultas médicas gratuitas e ao tratamento médico de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4º Uma caixa de socorros e de previdência, em condições práticas;

5º Um asilo;

6º Uma sociedade de adeptos, que celebre sessões regulares.


VI.


OBRAS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA.

Muitas pessoas lamentam que as obras fundamentais da Doutrina tenham um preço tão elevado para grande número de leitores, e pensam, com razão, que se fossem feitas edições populares a baixo custo, estariam muito mais espalhadas, com o que ganharia a Doutrina.

Estamos completamente de acordo; mas, no estado atual das coisas, as condições em que são editadas não permitem que o sejam de outro modo. Esperamos chegar um dia a esse resultado, com o auxílio de uma nova combinação que se ligue ao plano geral de organização. Mas essa operação não pode ser realizada senão empreendida em vasta escala; só de nossa parte exigiria capitais que não possuímos, e trabalhos materiais que os nossos trabalhos, que reclamam todas as nossas meditações, não nos permitem dar. É por isto que a parte comercial propriamente dita foi negligenciada ou, melhor dizendo, sacrificada ao estabelecimento da parte doutrinária. O que importava, antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da Doutrina.

Em se achando organizado pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que as gerirá e cuidará da publicação delas, pelos meios mais apropriados a popularizá-las. Ela também deverá cuidar de que sejam traduzidas nas principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário que conservasse seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade.

Fomos, por diversas vezes, solicitados a fazê-la circular mais amiúde; por muito lisonjeiro, porém, que nos fosse esse desejo, não pudemos atendê-lo, primeiramente, porque o tempo material não nos consentia esse acréscimo de trabalho e, em segundo lugar, porque importava não perdesse ela o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima do seu termo, as necessidades já não são as mesmas; a Revista se tornará, como as nossas outras obras, feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior vantagem do Espiritismo, sem que, por isso, renunciemos a lhe prestar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, falta-nos publicar vários trabalhos, que não formam a parte menos difícil, nem menos penosa. Conquanto já disponhamos de todos os elementos para o executar e o programa de cada um esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dispensar-lhes mais acurada atenção e ativá-los, se, por instituída a comissão central, estivéssemos livres de outros cuidados que absorvem grande parte do nosso tempo.


VII.


ATRIBUIÇÕES DO COMITÊ.

Serão estas as atribuições principais da comissão central:

1º Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propagação; manter-lhe a unidade, pela conservação da integridade dos princípios firmados; prover ao desenvolvimento de suas consequências;

2º O estudo dos novos princípios, susceptíveis de entrar no corpo da Doutrina;

3º A concentração, em seu poder, de todos os documentos e informações que interessem ao Espiritismo;

4º A correspondência;

5º A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos diversos países;

6º A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo e à qual se poderá juntar outra publicação periódica;

7º O exame e apreciação das obras, dos artigos de jornais e de todos os escritos que interessem à Doutrina; a refutação dos ataques, se aparecerem;

8º A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais favoráveis à sua vulgarização; a elaboração e publicação das de que daremos o plano e que não teremos tempo de executar em nossa atual existência; o apoio de que precisem as publicações que sejam de proveito para a causa;

9º A fundação e conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10º A administração da caixa de socorros, do dispensário e do asilo;

11º A administração dos negócios materiais;

12º A direção das sessões da Sociedade;

13º O ensino oral;

14º As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob o seu patrocínio;

15º A convocação dos congressos e assembleias gerais.


Estas atribuições os membros da comissão as distribuirão entre si, conforme a especialidade de cada um, sendo eles, se for preciso, assistidos por certo número de auxiliares ou de simples empregados.

Em consequência, entre os membros da comissão haverá:

Um secretário-geral para a correspondência e as atas das sessões da comissão;

Um redator-chefe para Revista e as outras publicações;

Um bibliotecário-arquivista, encarregado, além disso, do exame e das apreciações criticas das obras e artigos de jornais;

Um diretor da caixa de socorros, também encarregado da direção do dispensário, das visitas aos doentes e necessitados e de tudo o que se refere à beneficência. Será secundado por uma comissão de beneficência escolhida no seio da Sociedade, e formada de pessoas caridosas de boa vontade;

Um administrador-contador, encarregado dos negócios e dos interesses materiais;

Um diretor especial para os negócios concernentes às publicações;

Oradores para o ensino oral, encarregados, ademais, de visitar as sociedades dos Departamentos e aí dar instruções. Poderão ser tomados entre os membros auxiliares e os adeptos de boa vontade que, para tanto, receberão um mandato especial.

Seja qual for a extensão ulterior dos negócios e do pessoal administrativo, a comissão será sempre limitada ao mesmo número de membros titulares.

Até agora tivemos de nos bastar mais ou menos sozinhos a este programa. Por isso mesmo, algumas de suas partes foram negligenciadas ou apenas puderam ser esboçadas, e as que são mais especialmente da nossa alçada, tiveram que sofrer inevitáveis atrasos, pela necessidade de nos ocupar de tantas coisas, quando o tempo e as forças têm limites e uma só absorveria o tempo de um homem.


VIII.


VIAS E MEIOS.

É de lastimar, sem dúvida, que tenhamos de entrar em considerações de ordem material, para alcançarmos um objetivo todo espiritual. Cumpre, porém, observemos, que a espiritualidade mesma da obra se prende à questão da Humanidade terrena e do seu bem-estar; que já não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e de durável, para a extensão e a consolidação da Doutrina, à qual é preciso fazer produzir os frutos de que é susceptível de dar. Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com um bastão de viagem, sem cogitarem de saber onde pousariam, nem do que comeriam, fora alimentar uma ilusão que bem depressa amarga decepção destruiria. Para alguém fazer qualquer coisa de sério, tem que se submeter às necessidades impostas pelos costumes da época em que vive e essas necessidades são muito diversas da dos tempos da vida patriarcal. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que se apreciem os meios de ação, para não ser forçoso parar a meio do caminho. Apreciemo-los, portanto, uma vez que estamos num século em que é preciso calcular tudo.

São em grande número, como se vê, as atribuições da comissão central, para necessitarem de uma verdadeira administração. Tendo cada um de seus membros funções ativas e assíduas, se apenas a constituíssem homens de boa vontade, os trabalhos seriam prejudicados, porquanto ninguém teria o direito de censurar os negligentes. Para regularidade dos trabalhos e normalidade do expediente, necessário se torna contar com homens de cuja assiduidade se possa estar certo e que não considerem suas funções como simples atos de comprazer. De quanto mais independência eles forem senhores, pelos seus recursos pessoais, tanto menos se deixarão prender por ocupações assíduas; se não dispuserem de tempo, não poderão consagrá-lo àquelas funções. Importa, pois, que sejam retribuídos, assim como o pessoal administrativo. Com isso a Doutrina ganhará em força, em estabilidade, em pontualidade, do mesmo passo que constituirá um meio de prestar serviços a pessoas que dela necessitem.

Ponto essencial, na economia de toda administração previdente, é que sua existência não dependa de produtos eventuais que possam fazer falta, mas de recursos certos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não seja embaraçada. Insta, pois, que as pessoas que forem chamadas a lhe prestar concurso, não se sintam inquietas quanto ao futuro que as aguarde. Ora, a experiência demonstra que se devem considerar essencialmente aleatórios os recursos que apenas tenham por base o produto de cotas ou contribuições, sempre facultativas, quaisquer que sejam os compromissos contraídos, e de cobrança sempre difícil. Assentar despesas permanentes e regulares sobre recursos eventuais, implicaria falta de previdência, que mais tarde se haveria de deplorar. Menos graves são, sem dúvida, as consequências, quando se trate de fundações temporárias, destinadas a durar quanto possam; aqui, porém, é uma questão de futuro. A sorte de uma administração como esta não pode ficar subordinada aos azares de um negócio comercial; precisa ser, desde o seu início, se não tão florescente, pelo menos tão estável quanto o será daqui a um século. Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em tal caso a mais vulgar prudência manda se capitalizem, de forma inalienável, os recursos, à proporção que vão sendo obtidos, a fim de constituir-se uma renda perpétua, a coberto de todas as eventualidades. Regulando a administração a sua despesa pela renda que aufira, não pode a sua existência, em nenhum caso, achar-se comprometida, pois que disporá sempre de meios para funcionar. Pode, no começo, organizar-se em menor escala; o número de membros da comissão poderá ser limitado provisoriamente a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, salvo para proporcionar o desenvolvimento pelo acréscimo dos recursos e das necessidades da causa, considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora membro ativo da comissão central, não pesaremos de forma alguma no seu orçamento, nem por honorários, nem por despesas de viagens, nem por outra causa qualquer. Se nunca a ninguém nada pedimos para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância. Nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parcela dos recursos de que dispuser a comissão será desviada em proveito nosso.

Dar-lhe-emos, ao contrário, a nossa contribuição:

1º Abrindo mão, em seu favor, do que produzam as nossas obras, feitas e por fazer;

2º Doando-lhe valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da Doutrina, e não para aí conquistarmos uma posição da qual não necessitamos. Foi para preparar as vias desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de haver posto a primeira pedra.

Figuremos então que, de um modo ou de outro, a comissão central, em dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe uma renda de 25 a 30.000 francos. Restringindo, em começo, as suas despesas, os recursos de toda espécie de que disponha, em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que será objeto de uma contabilidade rigorosa. Reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda irá aumentar o capital comum. Proporcionalmente, com os recursos desse capital é que a comissão proverá às diversas despesas proveitosas ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais faça dele aplicação pessoal, nem fonte de especulação para qualquer de seus membros: Ao demais, o emprego dos fundos e escrituração serão submetidos à verificação de comissários especiais, designados, para esse efeito, pelos congressos ou assembleias gerais.

A comissão terá por um de seus primeiros cuidados ocupar-se com as publicações, desde que seja possível, sem esperar que o possa fazer com o auxílio das rendas. Os fundos a isso destinados não serão, em realidade, mais que um adiantamento, pois que voltarão à caixa, em virtude da venda das obras, cujo produto reverterá ao capital comum. É um negócio de administração.

Para dar a esta instituição uma existência legal, ao abrigo de toda contestação, dar-lhe, além disso, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se for julgado necessário, por ato autêntico, sob forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos, prorrogável indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se de seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias da comissão, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas ligamos; queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

A criação de uma caixa geral de socorros é impraticável e apresenta sérios inconvenientes, como já o demonstramos em artigo especial. (Revista de julho de 1866). A comissão não deve, pois, tomar um caminho que teria de abandonar ao cabo de pouco tempo, nem empreender coisa alguma que não esteja certa de poder realizar. Ela precisa ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas. Esse o meio de caminhar longo tempo e com segurança. Para isso, cumpre-lhe ficar sempre dentro dos limites do possível.

Essa caixa de socorros não pode e não deve ser mais do que uma instituição local, de ação circunscrita e cuja prudente organização sirva de modelo às do mesmo gênero que as sociedades particulares venham a criar. Pela sua multiplicidade é que elas prestarão serviços eficazes e não pela centralização dos meios de ação.

Será alimentada: 1º pelas parcelas, que se lhe destinem, tiradas da renda da caixa geral do Espiritismo; 2º pelos donativos especiais que lhe forem feitos. Ela capitalizará as somas que receber, de maneira a constituir para si um rendimento. Com essa renda é que prestará os socorros temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações do seu mandato, estipuladas no regulamento da sua constituição.

O projeto de um asilo, na acepção completa do termo, não poderá ter execução logo de começo, pelos capitais que reclamaria semelhante fundação e, ao demais, porque é preciso dar à administração tempo de se firmar e de atuar com regularidade, antes de complicar suas atribuições com empreendimentos que possam malograr-se. Fora imprudência tentar muitas coisas, antes de estar certa de dispor dos meios de execução. É o que facilmente se compreenderá, desde que se pense em todos os pormenores inerentes a estabelecimentos desse gênero. Convém, sem dúvida, alimentar boas intenções, mas, antes de tudo, mister se faz poder realizá-las.


IX.


CONCLUSÃO.

Tais são as bases principais da organização que nos propomos dar ao Espiritismo, se as circunstâncias no-lo permitirem. Tivemos que desenvolver os motivos um tanto longamente, a fim de dar a conhecer o seu espírito. Os detalhes serão objeto de uma regulamentação minuciosa, na qual todos os casos serão previstos de maneira a levantar todas as dificuldades de execução.

Consequente com os princípios de tolerância e de respeito a todas as opiniões, que o Espiritismo professa, não pretendemos impor esta organização a ninguém, nem constranger quem quer que seja a se submeter a ela. Nosso objetivo é estabelecer um primeiro laço entre os espíritas, que o desejam desde muito tempo e se lastimam de seu isolamento. Ora, esse laço, sem o qual o Espiritismo, permanecendo no estado de opinião individual, sem coesão, só pode existir com a condição de se religar a um centro por uma comunhão de vistas e de princípios. Esse centro não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, agindo no interesse geral e na qual a autoridade pessoal se apaga.

Se ele não existisse, qual teria sido o ponto de ligação dos espíritas disseminados em diferentes países? Não podendo comunicar suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, eles também espalhados, e muitas vezes sem consistência, teriam ficado isolados e, com isto, sofrido a difusão da Doutrina. Era preciso, pois, um ponto aonde todos chegassem e de onde tudo pudesse irradiar. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar inútil esse centro, faria sentir melhor a sua necessidade, porque a necessidade de aproximação e de formação de um feixe será tanto maior quanto mais considerável for o número de adeptos.

Mas qual será a extensão do círculo de atividades desse centro? É destinado a reger o mundo e a tornar-se o árbitro universal da verdade? Se tivesse essa pretensão, seria compreender mal o espírito do Espiritismo que, por isso mesmo que proclama os princípios do livre-exame e da liberdade de consciência, repudia a ideia de se erigir em autocracia; desde o começo entraria numa senda fatal.

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da Natureza, e não sobre abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira, que os espíritas do mundo inteiro estarão sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder, que deverão esperar a luz de um ponto fixo, para o qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma única nação, governada por um só chefe, regida pelo mesmo código de leis e submetidas aos mesmos costumes. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos hábitos, aos caracteres e aos climas de cada uma.

Assim será com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo inteiro terão princípios comuns, que os ligarão à grande família pelo laço sagrado da fraternidade, mas cuja aplicação poderá variar conforme as regiões, sem que, por isto, seja rompida a unidade fundamental, sem formar seitas dissidentes que se atirem a pedra e o anátema, o que seria antiespírita em alto grau. Poderão, pois, se formar, e inevitavelmente se formarão, centros gerais em diferentes países, sem outro laço além da comunhão de crença e a solidariedade moral, sem subordinação de um ao outro, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de impor-se aos espíritas americanos e reciprocamente.

A comparação dos observatórios, que citamos acima, é perfeitamente justa. Há observatórios em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, estão baseados em princípios gerais e reconhecidos da Astronomia, o que, por isso, não os torna tributários uns dos outros; cada um regula seus trabalhos como entende; comunicam-se as suas observações, e cada um põe a serviço da Ciência as descobertas de seus confrades. Dar-se-á o mesmo com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão o que tiverem de bom e aplicável aos costumes das regiões onde estiverem estabelecidos, pois o seu objetivo é o bem da Humanidade, e não a satisfação das ambições pessoais. O Espiritismo é uma questão de fundo; prender-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os diversos centros, que estiverem no verdadeiro espírito do Espiritismo, deverão estender-se a mão fraterna e se unirem no combate aos seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.








Dezembro

I. Considerações preliminares. II. Extrato do relatório da Caixa do Espiritismo. — III. Dos cismas. — IV. O chefe do Espiritismo. — V. Comissão central. — Departamentos da Comissão central. — VI. Obras fundamentais da Doutrina. — VII. Atribuições do Comitê. — VIII. Vias e meios. — IX. Conclusão.


I.


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram. Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora se exporem a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos.

Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas.

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá.

Se bem não haja ele dito ainda sua última palavra sobre todos os pontos, aproxima-se do seu complemento e soou a hora de se lhe oferecer uma base forte e durável, susceptível, contudo, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias ulteriores comportem e que ofereça toda a segurança aos que inquiram quem, depois de nós, lhe tomará as rédeas.

A Doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa nas leis da Natureza e porque, melhor do que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações dos homens. Entretanto, a sua difusão e a sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias várias, algumas das quais subordinadas à marcha geral das coisas, outras inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização. É destas que nos vamos ocupar especialmente neste momento.

Conquanto a questão de substância seja preponderante em tudo e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui importância capital; poderia mesmo sobrepujar momentaneamente e suscitar embaraços e atrasos, conforme a maneira por que fosse resolvida.

Houvéramos, pois, feito coisa incompleta e deixado grandes dificuldades para o futuro, se não prevíssemos as que podem surgir. Com o intuito de evitá-las foi que, com o concurso dos bons Espíritos que nos assistem em nossos trabalhos, elaboramos um plano de organização, pondo em jogo a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais se chocaram a maioria das doutrinas que apareceram no mundo. Podendo este plano prestar-se a todos os desenvolvimentos que reserva o futuro, demos, por isto mesmo, a esta constituição a qualificação de transitória.

O plano aqui exposto concebemo-lo há longo tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo, é certo, mas o bastante para mostrar que não é esta, hoje, uma concepção nova e que, trabalhando na parte teórica da obra, não nos descuidávamos do lado prático.

Antes de abordar a fundo a questão, parece-nos útil lembrar algumas passagens do relatório que apresentamos à Sociedade de Paris, no dia 5 de maio de 1865, a propósito da caixa do Espiritismo, e que foi publicado na Revista de junho de 1865. As considerações que ele encerra se ligam diretamente ao nosso assunto, do qual elas são as preliminares indispensáveis.


II.


EXTRATO DO RELATÓRIO DA CAIXA DO ESPIRITISMO, FEITO A SOCIEDADE DE PARIS, EM 5 DE MAIO DE 1865.

Muito se há falado dos proventos que eu retirava de minhas obras. Certamente, nenhuma pessoa séria acredita realmente em meus milhões, a despeito da afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca, tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. (Revista de junho de 1862). Além disso, não obstante o que disse o autor de uma brochura que conheceis, provando, por cálculos hiperbólicos, que o meu orçamento de receita ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porquanto, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários (Revista de junho de 1863), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém, ninguém me deu algo para mim pessoalmente; numa palavra, não vivo a expensas de ninguém, porquanto, das somas que me foram voluntariamente confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito.

As minhas imensas riquezas proviriam, pois, das minhas obras espíritas. Conquanto estas obras tenham alcançado inesperado êxito, basta ter um pouco de familiaridade com os negócios de livraria, para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns centavos por exemplar. Mas, avultado ou mínimo, sendo esse lucro fruto do meu trabalho, ninguém tem o direito de intrometer-se no emprego que lhe dou; ainda mesmo que se elevasse a milhões, ninguém tem nada a ver com isto, desde que a compra de livros, assim como a assinatura da Revista, é facultativa e não se impõe em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade. Falando comercialmente, estou na posição de todo homem que recolhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor, que tanto pode triunfar, quanto fracassar.

Mesmo não tendo, neste particular, nenhuma conta a prestar, creio útil à própria causa a que me devotei, dar algumas explicações.

Antes de mais, direi que minhas obras não são propriedade exclusiva minha, o que me obriga a comprá-las de meu editor e pagá-las como um livreiro, à exceção da Revista; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas dívidas incobráveis e pelas distribuições gratuitas, feitas no interesse da Doutrina, a pessoas que, sem isto, delas estariam privadas. Um cálculo muito fácil prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, é suficiente para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. Somando tudo e feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes; o que faço dela? Isto é o que mais preocupa certa gente.

Quem quer que outrora tenha visto a nossa habitação e a veja hoje poderá atestar que nada mudou na nossa maneira de viver, desde que entrei a ocupar-me com o Espiritismo; é tão simples agora como o era antigamente. Então é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Teria eu, então, a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Creio que meu caráter e meus hábitos jamais permitiram que se fizesse tal suposição. O que pretendem? Desde que isto não me aproveita, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia saberão a cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os fazedores de histórias pouparão a imaginação; hoje eu me limito a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto devo entrar nalguns detalhes íntimos, mas que são necessários, e para os quais vos peço perdão.

Sempre tivemos do que viver, muito modestamente é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo e o de um modesto emprego, que me vi forçado a deixar quando os trabalhos da Doutrina absorveram todo o meu tempo.

Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho; em pouco tempo vi-me arrastado por um movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr de modo algum em evidência e permanecer desconhecido; mas, prontamente ultrapassado, isto não me foi possível: tive de renunciar ao meu gosto pelo insulamento, sob pena de abdicar da obra empreendida e que crescia de dia para dia; foi preciso seguir seu impulso e tomar-lhe as rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, seguramente não fui eu que o procurei, pois é notório que nem a devo à propaganda, nem à camaradagem da imprensa, e que jamais aproveitei de minhas relações para me lançar no mundo, quando isto me teria sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto se desdobrava à minha frente, recuando os seus limites; compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorarem, as dificuldades e os obstáculos redobraram as minhas energias; vi o objetivo e resolvi atingi-lo com a assistência dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas; foi a obra de minha vida: a ela dei todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe meu repouso, minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrecusáveis.

Sem nos afastarmos do nosso gênero de vida, nem por isso essa posição excepcional deixou de nos criar menos necessidades a que só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiriam prover. Seria difícil a outrem imaginar a multiplicidade das despesas que aquela posição acarreta e que, sem ela, eu teria evitado.

Pois bem, senhores! o que me proporcionou suprimento aos meus recursos foi o produto das minhas obras. E o digo com satisfação, pois foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Assim, eu trouxe uma larga cota-parte à caixa do Espiritismo. Os que ajudam a propagação das obras não poderão, pois, dizer que trabalham para me enriquecer, porque o produto da venda de todo livro, de toda assinatura da Revista, redunda em proveito da Doutrina e não do indivíduo.

Mas, prover ao presente não era tudo: importava também pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse auxiliar aquele que me substituísse na grande tarefa que terá de desempenhar Esta fundação, a cujo respeito ainda devo guardar silêncio, se prende à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico, em melhorá-la, uma parte do que ganho. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, e a despeito de minhas economias, duvido muito que meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria destinar. Uma vez, porém, que a sua realização está nos desígnios dos meus guias espirituais, se eu mesmo não o fizer, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. Enquanto aguardo, vou elaborando os projetos no papel.

Longe de mim, senhores, o pensamento de me envaidecer, ainda que de leve, com o que acabo de expor-vos. Foi necessária a pertinácia de certas diatribes, para que eu me decidisse, embora a contragosto, a quebrar o silêncio acerca de alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que à malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por meio de documentos autênticos; mas o tempo dessas explicações ainda não chegou. A única coisa que por enquanto me importava era que ficásseis esclarecidos com relação ao destino dos fundos que a Providência faz que passem pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero mais do que um depositário, até mesmo do que ganho e, com mais forte razão, daquilo que me é confiado.

Alguém me perguntava certo dia, sem curiosidade, é claro, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que houvera sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isso seria inútil, pois os nossos adversários se encarregaram de custeá-la. Não me pondo então à disposição grandes recursos, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo só devia seus triunfos à sua própria força.

Hoje, que o horizonte se ampliou, sobretudo que o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de ordem completamente diversa. Um capital como o que supondes receberia um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes, que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte se destinaria a converter a minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra constituiria uma renda inalienável, destinada: 1º a manter o estabelecimento; 2º a assegurar uma existência a quem me suceder e aos que o ajudarem em sua missão; 3º a prover às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de auxílios eventuais, como sou obrigado a fazer, já que a maior parte de seus recursos decorrem do meu trabalho, que terá termo.

Eis o que eu faria; mas se esta satisfação não me é dada, sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo oportuno. Eis por que absolutamente não me inquieto com isto e só me ocupo com o que, para mim, é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.


III.


DOS CISMAS.

Uma questão que logo se apresenta é a dos cismas que poderão nascer no seio da Doutrina. Estará preservado deles o Espiritismo?

Não, certamente, porque terá, sobretudo no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, refratárias a se amalgamarem com as ideias dos demais; e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, se empenham por ligar seus nomes a uma inovação qualquer; dos que criam novidades só para poderem dizer que não pensam ou agem como os outros; ou porque o seu amor-próprio sofre, por não ocuparem senão uma posição secundária; ou, enfim, porque veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar. Mas, como lhes temos dito centenas de vezes: “Quem vos barra o caminho? Quem vos impede de trabalhar por vosso lado? Quem vos proíbe de publicar as vossas obras? A publicidade vos está aberta como a todo o mundo; dai algo de melhor do que o que está, ninguém, a isto se opõe; sede mais apreciados pelo público, e ele vos dará a preferência.”

Se, porém, o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia neutralizar-lhes as consequências e isto é o essencial.

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de' uma teoria racional. Hoje, raros partidários ainda contam esses primitivos sistemas. É este um, fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências se apagarão com a elucidação integral de todas as partes da Doutrina. Mas, haverá sempre os dissidentes, de ânimo prevenido e interessados, por um motivo ou por outro, a constituir bando à parte. Contra a pretensão desses é que cumpre se premunam os demais.

Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. Quando for dito peremptoriamente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém pode pretender que se quis dizer que dois e dois fazem cinco.

Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância.

O segundo ponto está em não se sair do âmbito das ideias práticas. Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.

Se, portanto, uma seita se formar à ilharga do Espiritismo, fundada ou não em seus princípios, de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como já sucedeu a tantas outras, através dos séculos; se suas ideias forem acertadas, mesmo que com relação a um único ponto, a Doutrina, que apenas procura o bem e o verdadeiro onde quer que se encontrem, as assimilará, de sorte que, em vez de ser absorvida, absorverá. Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela os imitará; se fizerem maior bem, ela se esforçará por fazer outro tanto ou mais, se possível; se fizerem mais mal, ela os deixará fazer, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem sobrepuja o mal e o verdadeiro predominará sobre o que é falso. Esta a única luta em que se empenhará.

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da moral espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros; não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo, invariável. Mas, quem poderá lisonjear-se de possuí-la toda? No estado de imperfeição em que se acham os nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdadeiro, em consequência da descoberta de novas leis, e isso tanto na ordem moral, quanto na ordem física. Contra essa eventualidade, a Doutrina nunca deverá estar desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade Em vez de ser uma força, a imobilidade se torna uma causa de fraqueza e de ruína, para quem não acompanha o movimento geral; quebra a unidade, porque os que querem avançar se separam dos que se obstinam em ficar atrás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, cumpre fazê-lo com prudência e evitar ir de cabeça baixa ao encontro dos devaneios da utopia e dos sistemas. É preciso fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Compreende-se que uma doutrina assente sobre tais bases tem que ser realmente forte; ela desafia toda concorrência e neutraliza as pretensões de seus competidores. É para este ponto que os nossos esforços tendem a conduzir a Doutrina Espírita.

Aliás, a experiência já comprovou o acerto desta previsão. Tendo marchado sempre por esse caminho desde a sua origem, a Doutrina avança constantemente, mas sem precipitação, verificando sempre se é sólido o terreno onde pisa e medindo seus passos pelo estado da opinião. Fez como o navegante que não prossegue sem ter na mão a sonda e sem consultar os ventos.


IV.


O CHEFE DO ESPIRITISMO.

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa senda? Quem terá mesmo a força? Quem disporá do tempo e da perseverança necessários para se consagrar ao trabalho incessante que semelhante tarefa exige? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não será de temer que se desvie da sua rota? e que a malevolência, com a qual ainda estará por longo tempo em luta, não procure desfigurar-lhe o espírito? É essa, com efeito, uma questão vital e cuja solução se reveste do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é tão evidente, que já causa inquietação o não ser visto, a surgir no horizonte, o seu condutor. Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar a impulsão, de estimular os zelos, de defender os fracos, de sustentar os ânimos vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de caminhar ao léu. Não somente essa direção é necessária, como também preciso se faz que preencha condições de força e de estabilidade suficientes para afrontar as tempestades.

Os que nenhuma autoridade admitem não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar toda direção, a maioria, os que não se creem infalíveis e não depositam confiança absoluta em suas próprias luzes, se sentem necessitados de um ponto de apoio, de um guia, ainda que apenas para ajudá-los a caminhar com segurança. (Vide a Revista de abril de 1866: O Espiritismo Independente).

Reconhecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados no mundo inteiro? É coisa impraticável. Se se impuser por sua própria autoridade, uns o aceitarão, enquanto que outros o recusarão, e podem surgir vinte pretendentes, levantando bandeira contra bandeira. Fora ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso e ninguém conviria menos do que um ambicioso, por isso mesmo orgulhoso, para chefiar uma doutrina que se baseia na abnegação, no devotamento, no desinteresse, na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, outra coisa não poderia fazer, senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente se daria, se de antemão se não adotassem medidas eficazes a prevenir esse inconveniente.

Admitamos, no entanto, houvesse um homem com todas as qualidades necessárias ao desempenho do seu mandato e que, por uma senda qualquer, chegasse à direção suprema. Os homens se sucedem e não se assemelham; depois de um bom, poderia vir um mau. Com o indivíduo, pode mudar o espírito da direção; sem maus desígnios, pode ele ter modos de ver mais ou menos justos; se entender de fazer que prevaleçam suas ideias pessoais, pode levar a Doutrina a transviar-se, suscitar dissidências e as mesmas dificuldades se renovarão a cada mudança. É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força. Do ponto de vista da organização, é uma criança que mal começa a andar. Insta, pois, sobretudo no princípio, premuni-lo contra os obstáculos do caminho.

Mas, dir-se-á, não virá estar à frente do Espiritismo um dos Espíritos que, segundo foi anunciado, tem que tomar parte na obra da regeneração? É provável; todavia, como esses Espíritos não trarão na fronte um sinal para serem reconhecidos; como não se afirmarão senão por seus atos, e, na maioria, só serão reconhecidos depois de terem morrido, conformemente ao que houverem produzido durante a vida; como, ao demais, não serão perpétuos, mister se torna prever todas as eventualidades.

É sabido que eles terão uma missão multíplice; que serão de todos os graus da escala espiritual e se encontrarão nos diversos ramos da economia [organização] social, onde um exercerá influência a favor das novas ideias, conforme a particularidade da sua posição; que todos, pois, trabalharão pelo ascendente da Doutrina, aqui e ali, uns como chefes de Estado, outros como legistas, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc.; que cada um dará provas de si onde lhe caiba exercer sua atividade, desde o proletário até o soberano, sem que qualquer coisa os distinga do comum dos homens, a não serem suas obras. Se a um deles couber tomar parte na direção, é provável que seja posto providencialmente na posição apropriada a fazê-lo chegar lá pelos meios legais que forem adotados; circunstâncias aparentemente fortuitas até lá o conduzirão, sem que de sua parte haja desígnio premeditado, sem mesmo ter ele consciência de sua missão. (Revista Espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868.)

Em tal caso, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias têm que ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, a só pretensão de ser um messias constituiria a negação dessas qualidades essenciais; provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou tola presunção, em havendo boa-fé, ou insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pseudo-espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou cupidez; outros que alardeiam pretensas revelações com o auxílio das quais procurem salientar-se e fascinar as imaginações por demais crédulas. É também de prever que, sob falsas aparências, indivíduos haja que tentem apoderar-se do leme, com a ideia preconcebida de fazerem soçobrar o navio, desviando-o de sua rota. O navio não soçobrará, mas poderia sofrer prejudiciais atrasos que se devem evitar.

São esses, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo precisa preservar-se. Quanto maior consistência ele adquirir, tanto mais ciladas lhe armarão seus adversários. É, portanto, dever de todos os espíritas sinceros anular as manobras da intriga que se possam urdir, assim nos pequenos, como nos grandes centros. Deverão eles, em primeiro lugar, repudiar, do modo mais absoluto, todo aquele que por si mesmo se apresente qual messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Pelo fruto é que se conhece a árvore; espere-se, pois, que a árvore dê seu fruto, para decidir se ela é boa e veja-se também se os frutos têm sabor. (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XXI, nº 9, “Caracteres do verdadeiro profeta”.)

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer que os candidatos fossem designados pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além de que este meio não obviaria a todos os inconvenientes, apresentaria outros, peculiares a semelhante modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que fora supérfluo lembrar aqui. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos consiste em nos instruir, para que nos melhoremos, porém não em se sobreporem ao nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem ideias, ajudam com seus conselhos, principalmente no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso raciocínio o encargo da execução das coisas materiais, encargo a que não lhes cabe poupar-nos. Em seu mundo eles têm atribuições que não são as da Terra; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições é expor-se às falcatruas dos Espíritos levianos. Contentem-se os homens com o serem assistidos e protegidos por Espíritos bons; não descarreguem, porém, sobre eles, a responsabilidade que incumbe ao encarnado.

Esse meio, aliás, suscitaria maiores embaraços do que se poderia supor, pela dificuldade de fazer-se que todos os grupos participassem de semelhante eleição. Seria uma complicação nas engrenagens e estas tanto menos susceptíveis se mostrarão de desarranjar-se, quanto mais simplificadas forem.

O problema é, pois, o de constituir-se uma direção central, em condições de força e estabilidade, que a ponham ao abrigo de todas as flutuações; que correspondam a todas as necessidades da causa e oponham intransponível barreira às tramas da intriga e da ambição. Tal o objetivo do plano de que vamos dar um rápido esboço.


V.


COMISSÃO CENTRAL.

Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, saídos, no estado de embriões, de uma multidão de focos, se dirigissem para um centro comum, a fim de serem aí examinados e cotejados, de sorte que um só pensamento presidisse à coordenação deles, a fim de ' estabelecer-se a unidade no conjunto e a harmonia entre todas as partes: Se não fosse assim, a Doutrina ter-se-ia assemelhado a esses edifícios híbridos, projetados por vários arquitetos, ou a um mecanismo cujas rodas não se engrenam com precisão umas nas outras.

Já o temos dito, por ser verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina não podia sair, de um único centro, completamente estruturada, da mesma maneira que toda a ciência astronômica não poderia sair, inteiramente constituída, de um único observatório. Qualquer centro que tentasse erguê-la exclusivamente sobre as suas observações faria coisa incompleta e se acharia, com relação a uma infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer cada um a sua doutrina, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo quanto aos fundamentos, difeririam inevitavelmente quanto à forma. Ora, como há muita gente que atenta mais na forma do que na substância, tantas seriam as seitas quantas as formas diferentes. Somente do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais podia resultar a unidade. Por isso é que era necessária a concentração dos trabalhos. (A Gênese, capítulo I, “Caráter da revelação espírita”, nº 51 e seguintes.)

Mas, o que era de vantagem por um certo tempo mais tarde se tornaria inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração se acha concluído, no que concerne às questões fundamentais, que estabelecidos se encontram os princípios gerais da Ciência, a direção, de individual que houve de ser em começo, tem que se tornar coletiva, primeiramente, porque um momento há de vir em que o seu peso excederá as forças de um homem e, em segundo lugar, porque maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos, a cada um dos quais caiba apenas um voto e que nada podem sem o concurso mútuo, do que um só indivíduo, capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será confiada a uma comissão central ou conselho superior permanente — pouco importa o nome — cuja organização e atribuições se definam de maneira a não dar azo ao arbítrio. Essa comissão se comporá, no máximo de doze membros titulares, que deverão, para tal efeito, preencher certas condições indispensáveis, e de igual número de conselheiros. Ela se completará a si mesma, segundo regras igualmente determinadas, de modo a evitar todo favoritismo, à medida que em seu seio se derem vagas por falecimentos ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá o modo por que serão nomeados os doze primeiros.

Cada membro presidirá por sua vez durante um ano, e aquele que preencher esta função será designado por sorteio.

Puramente administrativa será a autoridade do presidente. Ele dirigirá as deliberações da comissão, velará pela execução dos trabalhos e pelo expediente; mas, fora das atribuições que os estatutos constitutivos lhe conferirem, nenhuma decisão poderá tomar sem o concurso da comissão. Portanto, não haverá possibilidade de abusos, nem alimentos para a ambição, nem pretextos para intrigas ou ciúmes, nem supremacia chocante.

A comissão central, ou conselho superior, será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia-geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer por meio da discussão, não será bastante para que haja confusão.

Os congressos serão constituídos por delegados das sociedades particulares, regularmente constituídas, e colocadas sob o patrocínio da comissão por sua adesão e pela conformidade de seus princípios.

Para a comunidade dos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, em suma, de um corpo constituído, representando opinião coletiva, forçosamente terão uma autoridade que jamais teriam, se emanassem de um só indivíduo, que apenas representa uma opinião pessoal. É frequente uma pessoa rejeitar a opinião de outra, por entender que se humilharia, caso se submetesse a essa opinião, e acatar sem dificuldades a de muitos.

Fica bem entendido que aqui se trata de autoridade moral, no que respeita à interpretação e aplicação dos princípios morais da Doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma academia, em matéria de Ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem maior ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, apresenta uma força de resistência e dispõe de meios de ação com que um indivíduo não poderia contar; aquele luta com vantagens infinitamente maiores. Uma individualidade está sujeita a ser atacada e aniquilada; o mesmo já não se dá com uma entidade coletiva.

Há, igualmente, numa entidade coletiva, uma garantia de estabilidade, que não existe, quando tudo recai sobre uma cabeça única. Desde que o indivíduo se ache impedido por uma causa qualquer, tudo fica paralisado. A entidade coletiva, ao contrário, se perpetua incessantemente. Embora perca um ou vários de seus membros, nada periclita.

A dificuldade, dirão, consistirá em reunir, de modo permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que sejam acordes no tocante aos princípios fundamentais. Ora, isso constituirá uma condição absoluta para que sejam admitidas à direção, como para a de todos os que desta hajam de participar. Sobre as questões pendentes de detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto a opinião da maioria é que prevalecerá. Àquele cuja maneira de ver for acertada, não faltarão razões boas com que a justifique. Se algum, contrariado por não conseguir que suas ideias predominem, se retirar, nem por isso deixariam as coisas de seguir o seu curso e motivo não haveria para se lhe deplorar a saída, pois que teria dado prova de uma susceptibilidade orgulhosa, pouco espírita, e que poderia tornar-se origem de perturbações.

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, do momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião. É esta uma questão de minúcia prevista na organização.

Admitamos que entre os membros da comissão haja um irmão falso, um traidor, que os inimigos da causa tenham ganho para si: que logrará ele fazer, não dispondo senão do seu voto nas decisões? Suponhamos que, por impossível, toda a comissão enverede por mau caminho: aí estarão os congressos para reconduzi-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração pertencerá aos congressos, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra a comissão central, por infração do seu mandato, por violação dos princípios estabelecidos, ou por medidas prejudiciais à Doutrina. Por isso é que se apelará da comissão para o congresso, nas circunstâncias em que se julgue que a responsabilidade da primeira está gravemente comprometida.

Sendo os congressos um freio para a comissão, na aprovação deles haure esta última novas forças. É assim que o chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem risco para si próprio, afastar-se do caminho reto.

Quando a comissão estiver organizada, dela faremos parte como simples membro seu, dando-lhe a nossa colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.


[DEPARTAMENTOS DA COMISSÃO CENTRAL.]


Às atribuições gerais da comissão serão anexados, como dependências locais:

1º Uma biblioteca, onde se encontrem reunidas todas as obras que interessem o Espiritismo e que possam ser consultadas no local, ou cedidas para leitura fora;

2º Um museu, onde se achem colecionadas as primeiras obras de arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos a quem a causa muito deva pelo devotamento que tenham demonstrado, os dos homens a quem o Espiritismo renda homenagens, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da Humanidade, grandes gênios missionários do progresso, etc.

3º Um dispensário destinado às consultas médicas gratuitas e ao tratamento médico de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4º Uma caixa de socorros e de previdência, em condições práticas;

5º Um asilo;

6º Uma sociedade de adeptos, que celebre sessões regulares.


VI.


OBRAS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA.

Muitas pessoas lamentam que as obras fundamentais da Doutrina tenham um preço tão elevado para grande número de leitores, e pensam, com razão, que se fossem feitas edições populares a baixo custo, estariam muito mais espalhadas, com o que ganharia a Doutrina.

Estamos completamente de acordo; mas, no estado atual das coisas, as condições em que são editadas não permitem que o sejam de outro modo. Esperamos chegar um dia a esse resultado, com o auxílio de uma nova combinação que se ligue ao plano geral de organização. Mas essa operação não pode ser realizada senão empreendida em vasta escala; só de nossa parte exigiria capitais que não possuímos, e trabalhos materiais que os nossos trabalhos, que reclamam todas as nossas meditações, não nos permitem dar. É por isto que a parte comercial propriamente dita foi negligenciada ou, melhor dizendo, sacrificada ao estabelecimento da parte doutrinária. O que importava, antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da Doutrina.

Em se achando organizado pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que as gerirá e cuidará da publicação delas, pelos meios mais apropriados a popularizá-las. Ela também deverá cuidar de que sejam traduzidas nas principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário que conservasse seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade.

Fomos, por diversas vezes, solicitados a fazê-la circular mais amiúde; por muito lisonjeiro, porém, que nos fosse esse desejo, não pudemos atendê-lo, primeiramente, porque o tempo material não nos consentia esse acréscimo de trabalho e, em segundo lugar, porque importava não perdesse ela o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima do seu termo, as necessidades já não são as mesmas; a Revista se tornará, como as nossas outras obras, feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior vantagem do Espiritismo, sem que, por isso, renunciemos a lhe prestar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, falta-nos publicar vários trabalhos, que não formam a parte menos difícil, nem menos penosa. Conquanto já disponhamos de todos os elementos para o executar e o programa de cada um esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dispensar-lhes mais acurada atenção e ativá-los, se, por instituída a comissão central, estivéssemos livres de outros cuidados que absorvem grande parte do nosso tempo.


VII.


ATRIBUIÇÕES DO COMITÊ.

Serão estas as atribuições principais da comissão central:

1º Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propagação; manter-lhe a unidade, pela conservação da integridade dos princípios firmados; prover ao desenvolvimento de suas consequências;

2º O estudo dos novos princípios, susceptíveis de entrar no corpo da Doutrina;

3º A concentração, em seu poder, de todos os documentos e informações que interessem ao Espiritismo;

4º A correspondência;

5º A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos diversos países;

6º A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo e à qual se poderá juntar outra publicação periódica;

7º O exame e apreciação das obras, dos artigos de jornais e de todos os escritos que interessem à Doutrina; a refutação dos ataques, se aparecerem;

8º A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais favoráveis à sua vulgarização; a elaboração e publicação das de que daremos o plano e que não teremos tempo de executar em nossa atual existência; o apoio de que precisem as publicações que sejam de proveito para a causa;

9º A fundação e conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10º A administração da caixa de socorros, do dispensário e do asilo;

11º A administração dos negócios materiais;

12º A direção das sessões da Sociedade;

13º O ensino oral;

14º As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob o seu patrocínio;

15º A convocação dos congressos e assembleias gerais.


Estas atribuições os membros da comissão as distribuirão entre si, conforme a especialidade de cada um, sendo eles, se for preciso, assistidos por certo número de auxiliares ou de simples empregados.

Em consequência, entre os membros da comissão haverá:

Um secretário-geral para a correspondência e as atas das sessões da comissão;

Um redator-chefe para Revista e as outras publicações;

Um bibliotecário-arquivista, encarregado, além disso, do exame e das apreciações criticas das obras e artigos de jornais;

Um diretor da caixa de socorros, também encarregado da direção do dispensário, das visitas aos doentes e necessitados e de tudo o que se refere à beneficência. Será secundado por uma comissão de beneficência escolhida no seio da Sociedade, e formada de pessoas caridosas de boa vontade;

Um administrador-contador, encarregado dos negócios e dos interesses materiais;

Um diretor especial para os negócios concernentes às publicações;

Oradores para o ensino oral, encarregados, ademais, de visitar as sociedades dos Departamentos e aí dar instruções. Poderão ser tomados entre os membros auxiliares e os adeptos de boa vontade que, para tanto, receberão um mandato especial.

Seja qual for a extensão ulterior dos negócios e do pessoal administrativo, a comissão será sempre limitada ao mesmo número de membros titulares.

Até agora tivemos de nos bastar mais ou menos sozinhos a este programa. Por isso mesmo, algumas de suas partes foram negligenciadas ou apenas puderam ser esboçadas, e as que são mais especialmente da nossa alçada, tiveram que sofrer inevitáveis atrasos, pela necessidade de nos ocupar de tantas coisas, quando o tempo e as forças têm limites e uma só absorveria o tempo de um homem.


VIII.


VIAS E MEIOS.

É de lastimar, sem dúvida, que tenhamos de entrar em considerações de ordem material, para alcançarmos um objetivo todo espiritual. Cumpre, porém, observemos, que a espiritualidade mesma da obra se prende à questão da Humanidade terrena e do seu bem-estar; que já não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e de durável, para a extensão e a consolidação da Doutrina, à qual é preciso fazer produzir os frutos de que é susceptível de dar. Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com um bastão de viagem, sem cogitarem de saber onde pousariam, nem do que comeriam, fora alimentar uma ilusão que bem depressa amarga decepção destruiria. Para alguém fazer qualquer coisa de sério, tem que se submeter às necessidades impostas pelos costumes da época em que vive e essas necessidades são muito diversas da dos tempos da vida patriarcal. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que se apreciem os meios de ação, para não ser forçoso parar a meio do caminho. Apreciemo-los, portanto, uma vez que estamos num século em que é preciso calcular tudo.

São em grande número, como se vê, as atribuições da comissão central, para necessitarem de uma verdadeira administração. Tendo cada um de seus membros funções ativas e assíduas, se apenas a constituíssem homens de boa vontade, os trabalhos seriam prejudicados, porquanto ninguém teria o direito de censurar os negligentes. Para regularidade dos trabalhos e normalidade do expediente, necessário se torna contar com homens de cuja assiduidade se possa estar certo e que não considerem suas funções como simples atos de comprazer. De quanto mais independência eles forem senhores, pelos seus recursos pessoais, tanto menos se deixarão prender por ocupações assíduas; se não dispuserem de tempo, não poderão consagrá-lo àquelas funções. Importa, pois, que sejam retribuídos, assim como o pessoal administrativo. Com isso a Doutrina ganhará em força, em estabilidade, em pontualidade, do mesmo passo que constituirá um meio de prestar serviços a pessoas que dela necessitem.

Ponto essencial, na economia de toda administração previdente, é que sua existência não dependa de produtos eventuais que possam fazer falta, mas de recursos certos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não seja embaraçada. Insta, pois, que as pessoas que forem chamadas a lhe prestar concurso, não se sintam inquietas quanto ao futuro que as aguarde. Ora, a experiência demonstra que se devem considerar essencialmente aleatórios os recursos que apenas tenham por base o produto de cotas ou contribuições, sempre facultativas, quaisquer que sejam os compromissos contraídos, e de cobrança sempre difícil. Assentar despesas permanentes e regulares sobre recursos eventuais, implicaria falta de previdência, que mais tarde se haveria de deplorar. Menos graves são, sem dúvida, as consequências, quando se trate de fundações temporárias, destinadas a durar quanto possam; aqui, porém, é uma questão de futuro. A sorte de uma administração como esta não pode ficar subordinada aos azares de um negócio comercial; precisa ser, desde o seu início, se não tão florescente, pelo menos tão estável quanto o será daqui a um século. Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em tal caso a mais vulgar prudência manda se capitalizem, de forma inalienável, os recursos, à proporção que vão sendo obtidos, a fim de constituir-se uma renda perpétua, a coberto de todas as eventualidades. Regulando a administração a sua despesa pela renda que aufira, não pode a sua existência, em nenhum caso, achar-se comprometida, pois que disporá sempre de meios para funcionar. Pode, no começo, organizar-se em menor escala; o número de membros da comissão poderá ser limitado provisoriamente a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, salvo para proporcionar o desenvolvimento pelo acréscimo dos recursos e das necessidades da causa, considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora membro ativo da comissão central, não pesaremos de forma alguma no seu orçamento, nem por honorários, nem por despesas de viagens, nem por outra causa qualquer. Se nunca a ninguém nada pedimos para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância. Nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parcela dos recursos de que dispuser a comissão será desviada em proveito nosso.

Dar-lhe-emos, ao contrário, a nossa contribuição:

1º Abrindo mão, em seu favor, do que produzam as nossas obras, feitas e por fazer;

2º Doando-lhe valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da Doutrina, e não para aí conquistarmos uma posição da qual não necessitamos. Foi para preparar as vias desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de haver posto a primeira pedra.

Figuremos então que, de um modo ou de outro, a comissão central, em dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe uma renda de 25 a 30.000 francos. Restringindo, em começo, as suas despesas, os recursos de toda espécie de que disponha, em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que será objeto de uma contabilidade rigorosa. Reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda irá aumentar o capital comum. Proporcionalmente, com os recursos desse capital é que a comissão proverá às diversas despesas proveitosas ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais faça dele aplicação pessoal, nem fonte de especulação para qualquer de seus membros: Ao demais, o emprego dos fundos e escrituração serão submetidos à verificação de comissários especiais, designados, para esse efeito, pelos congressos ou assembleias gerais.

A comissão terá por um de seus primeiros cuidados ocupar-se com as publicações, desde que seja possível, sem esperar que o possa fazer com o auxílio das rendas. Os fundos a isso destinados não serão, em realidade, mais que um adiantamento, pois que voltarão à caixa, em virtude da venda das obras, cujo produto reverterá ao capital comum. É um negócio de administração.

Para dar a esta instituição uma existência legal, ao abrigo de toda contestação, dar-lhe, além disso, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se for julgado necessário, por ato autêntico, sob forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos, prorrogável indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se de seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias da comissão, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas ligamos; queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

A criação de uma caixa geral de socorros é impraticável e apresenta sérios inconvenientes, como já o demonstramos em artigo especial. (Revista de julho de 1866). A comissão não deve, pois, tomar um caminho que teria de abandonar ao cabo de pouco tempo, nem empreender coisa alguma que não esteja certa de poder realizar. Ela precisa ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas. Esse o meio de caminhar longo tempo e com segurança. Para isso, cumpre-lhe ficar sempre dentro dos limites do possível.

Essa caixa de socorros não pode e não deve ser mais do que uma instituição local, de ação circunscrita e cuja prudente organização sirva de modelo às do mesmo gênero que as sociedades particulares venham a criar. Pela sua multiplicidade é que elas prestarão serviços eficazes e não pela centralização dos meios de ação.

Será alimentada: 1º pelas parcelas, que se lhe destinem, tiradas da renda da caixa geral do Espiritismo; 2º pelos donativos especiais que lhe forem feitos. Ela capitalizará as somas que receber, de maneira a constituir para si um rendimento. Com essa renda é que prestará os socorros temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações do seu mandato, estipuladas no regulamento da sua constituição.

O projeto de um asilo, na acepção completa do termo, não poderá ter execução logo de começo, pelos capitais que reclamaria semelhante fundação e, ao demais, porque é preciso dar à administração tempo de se firmar e de atuar com regularidade, antes de complicar suas atribuições com empreendimentos que possam malograr-se. Fora imprudência tentar muitas coisas, antes de estar certa de dispor dos meios de execução. É o que facilmente se compreenderá, desde que se pense em todos os pormenores inerentes a estabelecimentos desse gênero. Convém, sem dúvida, alimentar boas intenções, mas, antes de tudo, mister se faz poder realizá-las.


IX.


CONCLUSÃO.

Tais são as bases principais da organização que nos propomos dar ao Espiritismo, se as circunstâncias no-lo permitirem. Tivemos que desenvolver os motivos um tanto longamente, a fim de dar a conhecer o seu espírito. Os detalhes serão objeto de uma regulamentação minuciosa, na qual todos os casos serão previstos de maneira a levantar todas as dificuldades de execução.

Consequente com os princípios de tolerância e de respeito a todas as opiniões, que o Espiritismo professa, não pretendemos impor esta organização a ninguém, nem constranger quem quer que seja a se submeter a ela. Nosso objetivo é estabelecer um primeiro laço entre os espíritas, que o desejam desde muito tempo e se lastimam de seu isolamento. Ora, esse laço, sem o qual o Espiritismo, permanecendo no estado de opinião individual, sem coesão, só pode existir com a condição de se religar a um centro por uma comunhão de vistas e de princípios. Esse centro não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, agindo no interesse geral e na qual a autoridade pessoal se apaga.

Se ele não existisse, qual teria sido o ponto de ligação dos espíritas disseminados em diferentes países? Não podendo comunicar suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, eles também espalhados, e muitas vezes sem consistência, teriam ficado isolados e, com isto, sofrido a difusão da Doutrina. Era preciso, pois, um ponto aonde todos chegassem e de onde tudo pudesse irradiar. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar inútil esse centro, faria sentir melhor a sua necessidade, porque a necessidade de aproximação e de formação de um feixe será tanto maior quanto mais considerável for o número de adeptos.

Mas qual será a extensão do círculo de atividades desse centro? É destinado a reger o mundo e a tornar-se o árbitro universal da verdade? Se tivesse essa pretensão, seria compreender mal o espírito do Espiritismo que, por isso mesmo que proclama os princípios do livre-exame e da liberdade de consciência, repudia a ideia de se erigir em autocracia; desde o começo entraria numa senda fatal.

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da Natureza, e não sobre abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira, que os espíritas do mundo inteiro estarão sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder, que deverão esperar a luz de um ponto fixo, para o qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma única nação, governada por um só chefe, regida pelo mesmo código de leis e submetidas aos mesmos costumes. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos hábitos, aos caracteres e aos climas de cada uma.

Assim será com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo inteiro terão princípios comuns, que os ligarão à grande família pelo laço sagrado da fraternidade, mas cuja aplicação poderá variar conforme as regiões, sem que, por isto, seja rompida a unidade fundamental, sem formar seitas dissidentes que se atirem a pedra e o anátema, o que seria antiespírita em alto grau. Poderão, pois, se formar, e inevitavelmente se formarão, centros gerais em diferentes países, sem outro laço além da comunhão de crença e a solidariedade moral, sem subordinação de um ao outro, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de impor-se aos espíritas americanos e reciprocamente.

A comparação dos observatórios, que citamos acima, é perfeitamente justa. Há observatórios em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, estão baseados em princípios gerais e reconhecidos da Astronomia, o que, por isso, não os torna tributários uns dos outros; cada um regula seus trabalhos como entende; comunicam-se as suas observações, e cada um põe a serviço da Ciência as descobertas de seus confrades. Dar-se-á o mesmo com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão o que tiverem de bom e aplicável aos costumes das regiões onde estiverem estabelecidos, pois o seu objetivo é o bem da Humanidade, e não a satisfação das ambições pessoais. O Espiritismo é uma questão de fundo; prender-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os diversos centros, que estiverem no verdadeiro espírito do Espiritismo, deverão estender-se a mão fraterna e se unirem no combate aos seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.








Dezembro

I. Considerações preliminares. II. Extrato do relatório da Caixa do Espiritismo. — III. Dos cismas. — IV. O chefe do Espiritismo. — V. Comissão central. — Departamentos da Comissão central. — VI. Obras fundamentais da Doutrina. — VII. Atribuições do Comitê. — VIII. Vias e meios. — IX. Conclusão.


I.


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram. Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora se exporem a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos.

Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas.

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá.

Se bem não haja ele dito ainda sua última palavra sobre todos os pontos, aproxima-se do seu complemento e soou a hora de se lhe oferecer uma base forte e durável, susceptível, contudo, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias ulteriores comportem e que ofereça toda a segurança aos que inquiram quem, depois de nós, lhe tomará as rédeas.

A Doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa nas leis da Natureza e porque, melhor do que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações dos homens. Entretanto, a sua difusão e a sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias várias, algumas das quais subordinadas à marcha geral das coisas, outras inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização. É destas que nos vamos ocupar especialmente neste momento.

Conquanto a questão de substância seja preponderante em tudo e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui importância capital; poderia mesmo sobrepujar momentaneamente e suscitar embaraços e atrasos, conforme a maneira por que fosse resolvida.

Houvéramos, pois, feito coisa incompleta e deixado grandes dificuldades para o futuro, se não prevíssemos as que podem surgir. Com o intuito de evitá-las foi que, com o concurso dos bons Espíritos que nos assistem em nossos trabalhos, elaboramos um plano de organização, pondo em jogo a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais se chocaram a maioria das doutrinas que apareceram no mundo. Podendo este plano prestar-se a todos os desenvolvimentos que reserva o futuro, demos, por isto mesmo, a esta constituição a qualificação de transitória.

O plano aqui exposto concebemo-lo há longo tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo, é certo, mas o bastante para mostrar que não é esta, hoje, uma concepção nova e que, trabalhando na parte teórica da obra, não nos descuidávamos do lado prático.

Antes de abordar a fundo a questão, parece-nos útil lembrar algumas passagens do relatório que apresentamos à Sociedade de Paris, no dia 5 de maio de 1865, a propósito da caixa do Espiritismo, e que foi publicado na Revista de junho de 1865. As considerações que ele encerra se ligam diretamente ao nosso assunto, do qual elas são as preliminares indispensáveis.


II.


EXTRATO DO RELATÓRIO DA CAIXA DO ESPIRITISMO, FEITO A SOCIEDADE DE PARIS, EM 5 DE MAIO DE 1865.

Muito se há falado dos proventos que eu retirava de minhas obras. Certamente, nenhuma pessoa séria acredita realmente em meus milhões, a despeito da afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca, tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. (Revista de junho de 1862). Além disso, não obstante o que disse o autor de uma brochura que conheceis, provando, por cálculos hiperbólicos, que o meu orçamento de receita ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porquanto, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários (Revista de junho de 1863), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém, ninguém me deu algo para mim pessoalmente; numa palavra, não vivo a expensas de ninguém, porquanto, das somas que me foram voluntariamente confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito.

As minhas imensas riquezas proviriam, pois, das minhas obras espíritas. Conquanto estas obras tenham alcançado inesperado êxito, basta ter um pouco de familiaridade com os negócios de livraria, para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns centavos por exemplar. Mas, avultado ou mínimo, sendo esse lucro fruto do meu trabalho, ninguém tem o direito de intrometer-se no emprego que lhe dou; ainda mesmo que se elevasse a milhões, ninguém tem nada a ver com isto, desde que a compra de livros, assim como a assinatura da Revista, é facultativa e não se impõe em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade. Falando comercialmente, estou na posição de todo homem que recolhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor, que tanto pode triunfar, quanto fracassar.

Mesmo não tendo, neste particular, nenhuma conta a prestar, creio útil à própria causa a que me devotei, dar algumas explicações.

Antes de mais, direi que minhas obras não são propriedade exclusiva minha, o que me obriga a comprá-las de meu editor e pagá-las como um livreiro, à exceção da Revista; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas dívidas incobráveis e pelas distribuições gratuitas, feitas no interesse da Doutrina, a pessoas que, sem isto, delas estariam privadas. Um cálculo muito fácil prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, é suficiente para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. Somando tudo e feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes; o que faço dela? Isto é o que mais preocupa certa gente.

Quem quer que outrora tenha visto a nossa habitação e a veja hoje poderá atestar que nada mudou na nossa maneira de viver, desde que entrei a ocupar-me com o Espiritismo; é tão simples agora como o era antigamente. Então é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Teria eu, então, a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Creio que meu caráter e meus hábitos jamais permitiram que se fizesse tal suposição. O que pretendem? Desde que isto não me aproveita, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia saberão a cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os fazedores de histórias pouparão a imaginação; hoje eu me limito a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto devo entrar nalguns detalhes íntimos, mas que são necessários, e para os quais vos peço perdão.

Sempre tivemos do que viver, muito modestamente é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo e o de um modesto emprego, que me vi forçado a deixar quando os trabalhos da Doutrina absorveram todo o meu tempo.

Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho; em pouco tempo vi-me arrastado por um movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr de modo algum em evidência e permanecer desconhecido; mas, prontamente ultrapassado, isto não me foi possível: tive de renunciar ao meu gosto pelo insulamento, sob pena de abdicar da obra empreendida e que crescia de dia para dia; foi preciso seguir seu impulso e tomar-lhe as rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, seguramente não fui eu que o procurei, pois é notório que nem a devo à propaganda, nem à camaradagem da imprensa, e que jamais aproveitei de minhas relações para me lançar no mundo, quando isto me teria sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto se desdobrava à minha frente, recuando os seus limites; compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorarem, as dificuldades e os obstáculos redobraram as minhas energias; vi o objetivo e resolvi atingi-lo com a assistência dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas; foi a obra de minha vida: a ela dei todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe meu repouso, minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrecusáveis.

Sem nos afastarmos do nosso gênero de vida, nem por isso essa posição excepcional deixou de nos criar menos necessidades a que só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiriam prover. Seria difícil a outrem imaginar a multiplicidade das despesas que aquela posição acarreta e que, sem ela, eu teria evitado.

Pois bem, senhores! o que me proporcionou suprimento aos meus recursos foi o produto das minhas obras. E o digo com satisfação, pois foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Assim, eu trouxe uma larga cota-parte à caixa do Espiritismo. Os que ajudam a propagação das obras não poderão, pois, dizer que trabalham para me enriquecer, porque o produto da venda de todo livro, de toda assinatura da Revista, redunda em proveito da Doutrina e não do indivíduo.

Mas, prover ao presente não era tudo: importava também pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse auxiliar aquele que me substituísse na grande tarefa que terá de desempenhar Esta fundação, a cujo respeito ainda devo guardar silêncio, se prende à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico, em melhorá-la, uma parte do que ganho. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, e a despeito de minhas economias, duvido muito que meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria destinar. Uma vez, porém, que a sua realização está nos desígnios dos meus guias espirituais, se eu mesmo não o fizer, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. Enquanto aguardo, vou elaborando os projetos no papel.

Longe de mim, senhores, o pensamento de me envaidecer, ainda que de leve, com o que acabo de expor-vos. Foi necessária a pertinácia de certas diatribes, para que eu me decidisse, embora a contragosto, a quebrar o silêncio acerca de alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que à malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por meio de documentos autênticos; mas o tempo dessas explicações ainda não chegou. A única coisa que por enquanto me importava era que ficásseis esclarecidos com relação ao destino dos fundos que a Providência faz que passem pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero mais do que um depositário, até mesmo do que ganho e, com mais forte razão, daquilo que me é confiado.

Alguém me perguntava certo dia, sem curiosidade, é claro, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que houvera sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isso seria inútil, pois os nossos adversários se encarregaram de custeá-la. Não me pondo então à disposição grandes recursos, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo só devia seus triunfos à sua própria força.

Hoje, que o horizonte se ampliou, sobretudo que o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de ordem completamente diversa. Um capital como o que supondes receberia um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes, que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte se destinaria a converter a minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra constituiria uma renda inalienável, destinada: 1º a manter o estabelecimento; 2º a assegurar uma existência a quem me suceder e aos que o ajudarem em sua missão; 3º a prover às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de auxílios eventuais, como sou obrigado a fazer, já que a maior parte de seus recursos decorrem do meu trabalho, que terá termo.

Eis o que eu faria; mas se esta satisfação não me é dada, sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo oportuno. Eis por que absolutamente não me inquieto com isto e só me ocupo com o que, para mim, é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.


III.


DOS CISMAS.

Uma questão que logo se apresenta é a dos cismas que poderão nascer no seio da Doutrina. Estará preservado deles o Espiritismo?

Não, certamente, porque terá, sobretudo no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, refratárias a se amalgamarem com as ideias dos demais; e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, se empenham por ligar seus nomes a uma inovação qualquer; dos que criam novidades só para poderem dizer que não pensam ou agem como os outros; ou porque o seu amor-próprio sofre, por não ocuparem senão uma posição secundária; ou, enfim, porque veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar. Mas, como lhes temos dito centenas de vezes: “Quem vos barra o caminho? Quem vos impede de trabalhar por vosso lado? Quem vos proíbe de publicar as vossas obras? A publicidade vos está aberta como a todo o mundo; dai algo de melhor do que o que está, ninguém, a isto se opõe; sede mais apreciados pelo público, e ele vos dará a preferência.”

Se, porém, o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia neutralizar-lhes as consequências e isto é o essencial.

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de' uma teoria racional. Hoje, raros partidários ainda contam esses primitivos sistemas. É este um, fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências se apagarão com a elucidação integral de todas as partes da Doutrina. Mas, haverá sempre os dissidentes, de ânimo prevenido e interessados, por um motivo ou por outro, a constituir bando à parte. Contra a pretensão desses é que cumpre se premunam os demais.

Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. Quando for dito peremptoriamente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém pode pretender que se quis dizer que dois e dois fazem cinco.

Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância.

O segundo ponto está em não se sair do âmbito das ideias práticas. Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.

Se, portanto, uma seita se formar à ilharga do Espiritismo, fundada ou não em seus princípios, de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como já sucedeu a tantas outras, através dos séculos; se suas ideias forem acertadas, mesmo que com relação a um único ponto, a Doutrina, que apenas procura o bem e o verdadeiro onde quer que se encontrem, as assimilará, de sorte que, em vez de ser absorvida, absorverá. Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela os imitará; se fizerem maior bem, ela se esforçará por fazer outro tanto ou mais, se possível; se fizerem mais mal, ela os deixará fazer, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem sobrepuja o mal e o verdadeiro predominará sobre o que é falso. Esta a única luta em que se empenhará.

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da moral espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros; não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo, invariável. Mas, quem poderá lisonjear-se de possuí-la toda? No estado de imperfeição em que se acham os nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdadeiro, em consequência da descoberta de novas leis, e isso tanto na ordem moral, quanto na ordem física. Contra essa eventualidade, a Doutrina nunca deverá estar desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade Em vez de ser uma força, a imobilidade se torna uma causa de fraqueza e de ruína, para quem não acompanha o movimento geral; quebra a unidade, porque os que querem avançar se separam dos que se obstinam em ficar atrás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, cumpre fazê-lo com prudência e evitar ir de cabeça baixa ao encontro dos devaneios da utopia e dos sistemas. É preciso fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Compreende-se que uma doutrina assente sobre tais bases tem que ser realmente forte; ela desafia toda concorrência e neutraliza as pretensões de seus competidores. É para este ponto que os nossos esforços tendem a conduzir a Doutrina Espírita.

Aliás, a experiência já comprovou o acerto desta previsão. Tendo marchado sempre por esse caminho desde a sua origem, a Doutrina avança constantemente, mas sem precipitação, verificando sempre se é sólido o terreno onde pisa e medindo seus passos pelo estado da opinião. Fez como o navegante que não prossegue sem ter na mão a sonda e sem consultar os ventos.


IV.


O CHEFE DO ESPIRITISMO.

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa senda? Quem terá mesmo a força? Quem disporá do tempo e da perseverança necessários para se consagrar ao trabalho incessante que semelhante tarefa exige? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não será de temer que se desvie da sua rota? e que a malevolência, com a qual ainda estará por longo tempo em luta, não procure desfigurar-lhe o espírito? É essa, com efeito, uma questão vital e cuja solução se reveste do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é tão evidente, que já causa inquietação o não ser visto, a surgir no horizonte, o seu condutor. Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar a impulsão, de estimular os zelos, de defender os fracos, de sustentar os ânimos vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de caminhar ao léu. Não somente essa direção é necessária, como também preciso se faz que preencha condições de força e de estabilidade suficientes para afrontar as tempestades.

Os que nenhuma autoridade admitem não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar toda direção, a maioria, os que não se creem infalíveis e não depositam confiança absoluta em suas próprias luzes, se sentem necessitados de um ponto de apoio, de um guia, ainda que apenas para ajudá-los a caminhar com segurança. (Vide a Revista de abril de 1866: O Espiritismo Independente).

Reconhecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados no mundo inteiro? É coisa impraticável. Se se impuser por sua própria autoridade, uns o aceitarão, enquanto que outros o recusarão, e podem surgir vinte pretendentes, levantando bandeira contra bandeira. Fora ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso e ninguém conviria menos do que um ambicioso, por isso mesmo orgulhoso, para chefiar uma doutrina que se baseia na abnegação, no devotamento, no desinteresse, na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, outra coisa não poderia fazer, senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente se daria, se de antemão se não adotassem medidas eficazes a prevenir esse inconveniente.

Admitamos, no entanto, houvesse um homem com todas as qualidades necessárias ao desempenho do seu mandato e que, por uma senda qualquer, chegasse à direção suprema. Os homens se sucedem e não se assemelham; depois de um bom, poderia vir um mau. Com o indivíduo, pode mudar o espírito da direção; sem maus desígnios, pode ele ter modos de ver mais ou menos justos; se entender de fazer que prevaleçam suas ideias pessoais, pode levar a Doutrina a transviar-se, suscitar dissidências e as mesmas dificuldades se renovarão a cada mudança. É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força. Do ponto de vista da organização, é uma criança que mal começa a andar. Insta, pois, sobretudo no princípio, premuni-lo contra os obstáculos do caminho.

Mas, dir-se-á, não virá estar à frente do Espiritismo um dos Espíritos que, segundo foi anunciado, tem que tomar parte na obra da regeneração? É provável; todavia, como esses Espíritos não trarão na fronte um sinal para serem reconhecidos; como não se afirmarão senão por seus atos, e, na maioria, só serão reconhecidos depois de terem morrido, conformemente ao que houverem produzido durante a vida; como, ao demais, não serão perpétuos, mister se torna prever todas as eventualidades.

É sabido que eles terão uma missão multíplice; que serão de todos os graus da escala espiritual e se encontrarão nos diversos ramos da economia [organização] social, onde um exercerá influência a favor das novas ideias, conforme a particularidade da sua posição; que todos, pois, trabalharão pelo ascendente da Doutrina, aqui e ali, uns como chefes de Estado, outros como legistas, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc.; que cada um dará provas de si onde lhe caiba exercer sua atividade, desde o proletário até o soberano, sem que qualquer coisa os distinga do comum dos homens, a não serem suas obras. Se a um deles couber tomar parte na direção, é provável que seja posto providencialmente na posição apropriada a fazê-lo chegar lá pelos meios legais que forem adotados; circunstâncias aparentemente fortuitas até lá o conduzirão, sem que de sua parte haja desígnio premeditado, sem mesmo ter ele consciência de sua missão. (Revista Espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868.)

Em tal caso, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias têm que ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, a só pretensão de ser um messias constituiria a negação dessas qualidades essenciais; provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou tola presunção, em havendo boa-fé, ou insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pseudo-espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou cupidez; outros que alardeiam pretensas revelações com o auxílio das quais procurem salientar-se e fascinar as imaginações por demais crédulas. É também de prever que, sob falsas aparências, indivíduos haja que tentem apoderar-se do leme, com a ideia preconcebida de fazerem soçobrar o navio, desviando-o de sua rota. O navio não soçobrará, mas poderia sofrer prejudiciais atrasos que se devem evitar.

São esses, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo precisa preservar-se. Quanto maior consistência ele adquirir, tanto mais ciladas lhe armarão seus adversários. É, portanto, dever de todos os espíritas sinceros anular as manobras da intriga que se possam urdir, assim nos pequenos, como nos grandes centros. Deverão eles, em primeiro lugar, repudiar, do modo mais absoluto, todo aquele que por si mesmo se apresente qual messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Pelo fruto é que se conhece a árvore; espere-se, pois, que a árvore dê seu fruto, para decidir se ela é boa e veja-se também se os frutos têm sabor. (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XXI, nº 9, “Caracteres do verdadeiro profeta”.)

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer que os candidatos fossem designados pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além de que este meio não obviaria a todos os inconvenientes, apresentaria outros, peculiares a semelhante modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que fora supérfluo lembrar aqui. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos consiste em nos instruir, para que nos melhoremos, porém não em se sobreporem ao nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem ideias, ajudam com seus conselhos, principalmente no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso raciocínio o encargo da execução das coisas materiais, encargo a que não lhes cabe poupar-nos. Em seu mundo eles têm atribuições que não são as da Terra; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições é expor-se às falcatruas dos Espíritos levianos. Contentem-se os homens com o serem assistidos e protegidos por Espíritos bons; não descarreguem, porém, sobre eles, a responsabilidade que incumbe ao encarnado.

Esse meio, aliás, suscitaria maiores embaraços do que se poderia supor, pela dificuldade de fazer-se que todos os grupos participassem de semelhante eleição. Seria uma complicação nas engrenagens e estas tanto menos susceptíveis se mostrarão de desarranjar-se, quanto mais simplificadas forem.

O problema é, pois, o de constituir-se uma direção central, em condições de força e estabilidade, que a ponham ao abrigo de todas as flutuações; que correspondam a todas as necessidades da causa e oponham intransponível barreira às tramas da intriga e da ambição. Tal o objetivo do plano de que vamos dar um rápido esboço.


V.


COMISSÃO CENTRAL.

Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, saídos, no estado de embriões, de uma multidão de focos, se dirigissem para um centro comum, a fim de serem aí examinados e cotejados, de sorte que um só pensamento presidisse à coordenação deles, a fim de ' estabelecer-se a unidade no conjunto e a harmonia entre todas as partes: Se não fosse assim, a Doutrina ter-se-ia assemelhado a esses edifícios híbridos, projetados por vários arquitetos, ou a um mecanismo cujas rodas não se engrenam com precisão umas nas outras.

Já o temos dito, por ser verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina não podia sair, de um único centro, completamente estruturada, da mesma maneira que toda a ciência astronômica não poderia sair, inteiramente constituída, de um único observatório. Qualquer centro que tentasse erguê-la exclusivamente sobre as suas observações faria coisa incompleta e se acharia, com relação a uma infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer cada um a sua doutrina, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo quanto aos fundamentos, difeririam inevitavelmente quanto à forma. Ora, como há muita gente que atenta mais na forma do que na substância, tantas seriam as seitas quantas as formas diferentes. Somente do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais podia resultar a unidade. Por isso é que era necessária a concentração dos trabalhos. (A Gênese, capítulo I, “Caráter da revelação espírita”, nº 51 e seguintes.)

Mas, o que era de vantagem por um certo tempo mais tarde se tornaria inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração se acha concluído, no que concerne às questões fundamentais, que estabelecidos se encontram os princípios gerais da Ciência, a direção, de individual que houve de ser em começo, tem que se tornar coletiva, primeiramente, porque um momento há de vir em que o seu peso excederá as forças de um homem e, em segundo lugar, porque maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos, a cada um dos quais caiba apenas um voto e que nada podem sem o concurso mútuo, do que um só indivíduo, capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será confiada a uma comissão central ou conselho superior permanente — pouco importa o nome — cuja organização e atribuições se definam de maneira a não dar azo ao arbítrio. Essa comissão se comporá, no máximo de doze membros titulares, que deverão, para tal efeito, preencher certas condições indispensáveis, e de igual número de conselheiros. Ela se completará a si mesma, segundo regras igualmente determinadas, de modo a evitar todo favoritismo, à medida que em seu seio se derem vagas por falecimentos ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá o modo por que serão nomeados os doze primeiros.

Cada membro presidirá por sua vez durante um ano, e aquele que preencher esta função será designado por sorteio.

Puramente administrativa será a autoridade do presidente. Ele dirigirá as deliberações da comissão, velará pela execução dos trabalhos e pelo expediente; mas, fora das atribuições que os estatutos constitutivos lhe conferirem, nenhuma decisão poderá tomar sem o concurso da comissão. Portanto, não haverá possibilidade de abusos, nem alimentos para a ambição, nem pretextos para intrigas ou ciúmes, nem supremacia chocante.

A comissão central, ou conselho superior, será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia-geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer por meio da discussão, não será bastante para que haja confusão.

Os congressos serão constituídos por delegados das sociedades particulares, regularmente constituídas, e colocadas sob o patrocínio da comissão por sua adesão e pela conformidade de seus princípios.

Para a comunidade dos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, em suma, de um corpo constituído, representando opinião coletiva, forçosamente terão uma autoridade que jamais teriam, se emanassem de um só indivíduo, que apenas representa uma opinião pessoal. É frequente uma pessoa rejeitar a opinião de outra, por entender que se humilharia, caso se submetesse a essa opinião, e acatar sem dificuldades a de muitos.

Fica bem entendido que aqui se trata de autoridade moral, no que respeita à interpretação e aplicação dos princípios morais da Doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma academia, em matéria de Ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem maior ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, apresenta uma força de resistência e dispõe de meios de ação com que um indivíduo não poderia contar; aquele luta com vantagens infinitamente maiores. Uma individualidade está sujeita a ser atacada e aniquilada; o mesmo já não se dá com uma entidade coletiva.

Há, igualmente, numa entidade coletiva, uma garantia de estabilidade, que não existe, quando tudo recai sobre uma cabeça única. Desde que o indivíduo se ache impedido por uma causa qualquer, tudo fica paralisado. A entidade coletiva, ao contrário, se perpetua incessantemente. Embora perca um ou vários de seus membros, nada periclita.

A dificuldade, dirão, consistirá em reunir, de modo permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que sejam acordes no tocante aos princípios fundamentais. Ora, isso constituirá uma condição absoluta para que sejam admitidas à direção, como para a de todos os que desta hajam de participar. Sobre as questões pendentes de detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto a opinião da maioria é que prevalecerá. Àquele cuja maneira de ver for acertada, não faltarão razões boas com que a justifique. Se algum, contrariado por não conseguir que suas ideias predominem, se retirar, nem por isso deixariam as coisas de seguir o seu curso e motivo não haveria para se lhe deplorar a saída, pois que teria dado prova de uma susceptibilidade orgulhosa, pouco espírita, e que poderia tornar-se origem de perturbações.

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, do momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião. É esta uma questão de minúcia prevista na organização.

Admitamos que entre os membros da comissão haja um irmão falso, um traidor, que os inimigos da causa tenham ganho para si: que logrará ele fazer, não dispondo senão do seu voto nas decisões? Suponhamos que, por impossível, toda a comissão enverede por mau caminho: aí estarão os congressos para reconduzi-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração pertencerá aos congressos, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra a comissão central, por infração do seu mandato, por violação dos princípios estabelecidos, ou por medidas prejudiciais à Doutrina. Por isso é que se apelará da comissão para o congresso, nas circunstâncias em que se julgue que a responsabilidade da primeira está gravemente comprometida.

Sendo os congressos um freio para a comissão, na aprovação deles haure esta última novas forças. É assim que o chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem risco para si próprio, afastar-se do caminho reto.

Quando a comissão estiver organizada, dela faremos parte como simples membro seu, dando-lhe a nossa colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.


[DEPARTAMENTOS DA COMISSÃO CENTRAL.]


Às atribuições gerais da comissão serão anexados, como dependências locais:

1º Uma biblioteca, onde se encontrem reunidas todas as obras que interessem o Espiritismo e que possam ser consultadas no local, ou cedidas para leitura fora;

2º Um museu, onde se achem colecionadas as primeiras obras de arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos a quem a causa muito deva pelo devotamento que tenham demonstrado, os dos homens a quem o Espiritismo renda homenagens, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da Humanidade, grandes gênios missionários do progresso, etc.

3º Um dispensário destinado às consultas médicas gratuitas e ao tratamento médico de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4º Uma caixa de socorros e de previdência, em condições práticas;

5º Um asilo;

6º Uma sociedade de adeptos, que celebre sessões regulares.


VI.


OBRAS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA.

Muitas pessoas lamentam que as obras fundamentais da Doutrina tenham um preço tão elevado para grande número de leitores, e pensam, com razão, que se fossem feitas edições populares a baixo custo, estariam muito mais espalhadas, com o que ganharia a Doutrina.

Estamos completamente de acordo; mas, no estado atual das coisas, as condições em que são editadas não permitem que o sejam de outro modo. Esperamos chegar um dia a esse resultado, com o auxílio de uma nova combinação que se ligue ao plano geral de organização. Mas essa operação não pode ser realizada senão empreendida em vasta escala; só de nossa parte exigiria capitais que não possuímos, e trabalhos materiais que os nossos trabalhos, que reclamam todas as nossas meditações, não nos permitem dar. É por isto que a parte comercial propriamente dita foi negligenciada ou, melhor dizendo, sacrificada ao estabelecimento da parte doutrinária. O que importava, antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da Doutrina.

Em se achando organizado pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que as gerirá e cuidará da publicação delas, pelos meios mais apropriados a popularizá-las. Ela também deverá cuidar de que sejam traduzidas nas principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário que conservasse seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade.

Fomos, por diversas vezes, solicitados a fazê-la circular mais amiúde; por muito lisonjeiro, porém, que nos fosse esse desejo, não pudemos atendê-lo, primeiramente, porque o tempo material não nos consentia esse acréscimo de trabalho e, em segundo lugar, porque importava não perdesse ela o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima do seu termo, as necessidades já não são as mesmas; a Revista se tornará, como as nossas outras obras, feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior vantagem do Espiritismo, sem que, por isso, renunciemos a lhe prestar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, falta-nos publicar vários trabalhos, que não formam a parte menos difícil, nem menos penosa. Conquanto já disponhamos de todos os elementos para o executar e o programa de cada um esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dispensar-lhes mais acurada atenção e ativá-los, se, por instituída a comissão central, estivéssemos livres de outros cuidados que absorvem grande parte do nosso tempo.


VII.


ATRIBUIÇÕES DO COMITÊ.

Serão estas as atribuições principais da comissão central:

1º Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propagação; manter-lhe a unidade, pela conservação da integridade dos princípios firmados; prover ao desenvolvimento de suas consequências;

2º O estudo dos novos princípios, susceptíveis de entrar no corpo da Doutrina;

3º A concentração, em seu poder, de todos os documentos e informações que interessem ao Espiritismo;

4º A correspondência;

5º A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos diversos países;

6º A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo e à qual se poderá juntar outra publicação periódica;

7º O exame e apreciação das obras, dos artigos de jornais e de todos os escritos que interessem à Doutrina; a refutação dos ataques, se aparecerem;

8º A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais favoráveis à sua vulgarização; a elaboração e publicação das de que daremos o plano e que não teremos tempo de executar em nossa atual existência; o apoio de que precisem as publicações que sejam de proveito para a causa;

9º A fundação e conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10º A administração da caixa de socorros, do dispensário e do asilo;

11º A administração dos negócios materiais;

12º A direção das sessões da Sociedade;

13º O ensino oral;

14º As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob o seu patrocínio;

15º A convocação dos congressos e assembleias gerais.


Estas atribuições os membros da comissão as distribuirão entre si, conforme a especialidade de cada um, sendo eles, se for preciso, assistidos por certo número de auxiliares ou de simples empregados.

Em consequência, entre os membros da comissão haverá:

Um secretário-geral para a correspondência e as atas das sessões da comissão;

Um redator-chefe para Revista e as outras publicações;

Um bibliotecário-arquivista, encarregado, além disso, do exame e das apreciações criticas das obras e artigos de jornais;

Um diretor da caixa de socorros, também encarregado da direção do dispensário, das visitas aos doentes e necessitados e de tudo o que se refere à beneficência. Será secundado por uma comissão de beneficência escolhida no seio da Sociedade, e formada de pessoas caridosas de boa vontade;

Um administrador-contador, encarregado dos negócios e dos interesses materiais;

Um diretor especial para os negócios concernentes às publicações;

Oradores para o ensino oral, encarregados, ademais, de visitar as sociedades dos Departamentos e aí dar instruções. Poderão ser tomados entre os membros auxiliares e os adeptos de boa vontade que, para tanto, receberão um mandato especial.

Seja qual for a extensão ulterior dos negócios e do pessoal administrativo, a comissão será sempre limitada ao mesmo número de membros titulares.

Até agora tivemos de nos bastar mais ou menos sozinhos a este programa. Por isso mesmo, algumas de suas partes foram negligenciadas ou apenas puderam ser esboçadas, e as que são mais especialmente da nossa alçada, tiveram que sofrer inevitáveis atrasos, pela necessidade de nos ocupar de tantas coisas, quando o tempo e as forças têm limites e uma só absorveria o tempo de um homem.


VIII.


VIAS E MEIOS.

É de lastimar, sem dúvida, que tenhamos de entrar em considerações de ordem material, para alcançarmos um objetivo todo espiritual. Cumpre, porém, observemos, que a espiritualidade mesma da obra se prende à questão da Humanidade terrena e do seu bem-estar; que já não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e de durável, para a extensão e a consolidação da Doutrina, à qual é preciso fazer produzir os frutos de que é susceptível de dar. Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com um bastão de viagem, sem cogitarem de saber onde pousariam, nem do que comeriam, fora alimentar uma ilusão que bem depressa amarga decepção destruiria. Para alguém fazer qualquer coisa de sério, tem que se submeter às necessidades impostas pelos costumes da época em que vive e essas necessidades são muito diversas da dos tempos da vida patriarcal. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que se apreciem os meios de ação, para não ser forçoso parar a meio do caminho. Apreciemo-los, portanto, uma vez que estamos num século em que é preciso calcular tudo.

São em grande número, como se vê, as atribuições da comissão central, para necessitarem de uma verdadeira administração. Tendo cada um de seus membros funções ativas e assíduas, se apenas a constituíssem homens de boa vontade, os trabalhos seriam prejudicados, porquanto ninguém teria o direito de censurar os negligentes. Para regularidade dos trabalhos e normalidade do expediente, necessário se torna contar com homens de cuja assiduidade se possa estar certo e que não considerem suas funções como simples atos de comprazer. De quanto mais independência eles forem senhores, pelos seus recursos pessoais, tanto menos se deixarão prender por ocupações assíduas; se não dispuserem de tempo, não poderão consagrá-lo àquelas funções. Importa, pois, que sejam retribuídos, assim como o pessoal administrativo. Com isso a Doutrina ganhará em força, em estabilidade, em pontualidade, do mesmo passo que constituirá um meio de prestar serviços a pessoas que dela necessitem.

Ponto essencial, na economia de toda administração previdente, é que sua existência não dependa de produtos eventuais que possam fazer falta, mas de recursos certos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não seja embaraçada. Insta, pois, que as pessoas que forem chamadas a lhe prestar concurso, não se sintam inquietas quanto ao futuro que as aguarde. Ora, a experiência demonstra que se devem considerar essencialmente aleatórios os recursos que apenas tenham por base o produto de cotas ou contribuições, sempre facultativas, quaisquer que sejam os compromissos contraídos, e de cobrança sempre difícil. Assentar despesas permanentes e regulares sobre recursos eventuais, implicaria falta de previdência, que mais tarde se haveria de deplorar. Menos graves são, sem dúvida, as consequências, quando se trate de fundações temporárias, destinadas a durar quanto possam; aqui, porém, é uma questão de futuro. A sorte de uma administração como esta não pode ficar subordinada aos azares de um negócio comercial; precisa ser, desde o seu início, se não tão florescente, pelo menos tão estável quanto o será daqui a um século. Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em tal caso a mais vulgar prudência manda se capitalizem, de forma inalienável, os recursos, à proporção que vão sendo obtidos, a fim de constituir-se uma renda perpétua, a coberto de todas as eventualidades. Regulando a administração a sua despesa pela renda que aufira, não pode a sua existência, em nenhum caso, achar-se comprometida, pois que disporá sempre de meios para funcionar. Pode, no começo, organizar-se em menor escala; o número de membros da comissão poderá ser limitado provisoriamente a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, salvo para proporcionar o desenvolvimento pelo acréscimo dos recursos e das necessidades da causa, considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora membro ativo da comissão central, não pesaremos de forma alguma no seu orçamento, nem por honorários, nem por despesas de viagens, nem por outra causa qualquer. Se nunca a ninguém nada pedimos para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância. Nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parcela dos recursos de que dispuser a comissão será desviada em proveito nosso.

Dar-lhe-emos, ao contrário, a nossa contribuição:

1º Abrindo mão, em seu favor, do que produzam as nossas obras, feitas e por fazer;

2º Doando-lhe valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da Doutrina, e não para aí conquistarmos uma posição da qual não necessitamos. Foi para preparar as vias desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de haver posto a primeira pedra.

Figuremos então que, de um modo ou de outro, a comissão central, em dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe uma renda de 25 a 30.000 francos. Restringindo, em começo, as suas despesas, os recursos de toda espécie de que disponha, em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que será objeto de uma contabilidade rigorosa. Reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda irá aumentar o capital comum. Proporcionalmente, com os recursos desse capital é que a comissão proverá às diversas despesas proveitosas ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais faça dele aplicação pessoal, nem fonte de especulação para qualquer de seus membros: Ao demais, o emprego dos fundos e escrituração serão submetidos à verificação de comissários especiais, designados, para esse efeito, pelos congressos ou assembleias gerais.

A comissão terá por um de seus primeiros cuidados ocupar-se com as publicações, desde que seja possível, sem esperar que o possa fazer com o auxílio das rendas. Os fundos a isso destinados não serão, em realidade, mais que um adiantamento, pois que voltarão à caixa, em virtude da venda das obras, cujo produto reverterá ao capital comum. É um negócio de administração.

Para dar a esta instituição uma existência legal, ao abrigo de toda contestação, dar-lhe, além disso, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se for julgado necessário, por ato autêntico, sob forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos, prorrogável indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se de seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias da comissão, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas ligamos; queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

A criação de uma caixa geral de socorros é impraticável e apresenta sérios inconvenientes, como já o demonstramos em artigo especial. (Revista de julho de 1866). A comissão não deve, pois, tomar um caminho que teria de abandonar ao cabo de pouco tempo, nem empreender coisa alguma que não esteja certa de poder realizar. Ela precisa ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas. Esse o meio de caminhar longo tempo e com segurança. Para isso, cumpre-lhe ficar sempre dentro dos limites do possível.

Essa caixa de socorros não pode e não deve ser mais do que uma instituição local, de ação circunscrita e cuja prudente organização sirva de modelo às do mesmo gênero que as sociedades particulares venham a criar. Pela sua multiplicidade é que elas prestarão serviços eficazes e não pela centralização dos meios de ação.

Será alimentada: 1º pelas parcelas, que se lhe destinem, tiradas da renda da caixa geral do Espiritismo; 2º pelos donativos especiais que lhe forem feitos. Ela capitalizará as somas que receber, de maneira a constituir para si um rendimento. Com essa renda é que prestará os socorros temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações do seu mandato, estipuladas no regulamento da sua constituição.

O projeto de um asilo, na acepção completa do termo, não poderá ter execução logo de começo, pelos capitais que reclamaria semelhante fundação e, ao demais, porque é preciso dar à administração tempo de se firmar e de atuar com regularidade, antes de complicar suas atribuições com empreendimentos que possam malograr-se. Fora imprudência tentar muitas coisas, antes de estar certa de dispor dos meios de execução. É o que facilmente se compreenderá, desde que se pense em todos os pormenores inerentes a estabelecimentos desse gênero. Convém, sem dúvida, alimentar boas intenções, mas, antes de tudo, mister se faz poder realizá-las.


IX.


CONCLUSÃO.

Tais são as bases principais da organização que nos propomos dar ao Espiritismo, se as circunstâncias no-lo permitirem. Tivemos que desenvolver os motivos um tanto longamente, a fim de dar a conhecer o seu espírito. Os detalhes serão objeto de uma regulamentação minuciosa, na qual todos os casos serão previstos de maneira a levantar todas as dificuldades de execução.

Consequente com os princípios de tolerância e de respeito a todas as opiniões, que o Espiritismo professa, não pretendemos impor esta organização a ninguém, nem constranger quem quer que seja a se submeter a ela. Nosso objetivo é estabelecer um primeiro laço entre os espíritas, que o desejam desde muito tempo e se lastimam de seu isolamento. Ora, esse laço, sem o qual o Espiritismo, permanecendo no estado de opinião individual, sem coesão, só pode existir com a condição de se religar a um centro por uma comunhão de vistas e de princípios. Esse centro não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, agindo no interesse geral e na qual a autoridade pessoal se apaga.

Se ele não existisse, qual teria sido o ponto de ligação dos espíritas disseminados em diferentes países? Não podendo comunicar suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, eles também espalhados, e muitas vezes sem consistência, teriam ficado isolados e, com isto, sofrido a difusão da Doutrina. Era preciso, pois, um ponto aonde todos chegassem e de onde tudo pudesse irradiar. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar inútil esse centro, faria sentir melhor a sua necessidade, porque a necessidade de aproximação e de formação de um feixe será tanto maior quanto mais considerável for o número de adeptos.

Mas qual será a extensão do círculo de atividades desse centro? É destinado a reger o mundo e a tornar-se o árbitro universal da verdade? Se tivesse essa pretensão, seria compreender mal o espírito do Espiritismo que, por isso mesmo que proclama os princípios do livre-exame e da liberdade de consciência, repudia a ideia de se erigir em autocracia; desde o começo entraria numa senda fatal.

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da Natureza, e não sobre abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira, que os espíritas do mundo inteiro estarão sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder, que deverão esperar a luz de um ponto fixo, para o qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma única nação, governada por um só chefe, regida pelo mesmo código de leis e submetidas aos mesmos costumes. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos hábitos, aos caracteres e aos climas de cada uma.

Assim será com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo inteiro terão princípios comuns, que os ligarão à grande família pelo laço sagrado da fraternidade, mas cuja aplicação poderá variar conforme as regiões, sem que, por isto, seja rompida a unidade fundamental, sem formar seitas dissidentes que se atirem a pedra e o anátema, o que seria antiespírita em alto grau. Poderão, pois, se formar, e inevitavelmente se formarão, centros gerais em diferentes países, sem outro laço além da comunhão de crença e a solidariedade moral, sem subordinação de um ao outro, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de impor-se aos espíritas americanos e reciprocamente.

A comparação dos observatórios, que citamos acima, é perfeitamente justa. Há observatórios em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, estão baseados em princípios gerais e reconhecidos da Astronomia, o que, por isso, não os torna tributários uns dos outros; cada um regula seus trabalhos como entende; comunicam-se as suas observações, e cada um põe a serviço da Ciência as descobertas de seus confrades. Dar-se-á o mesmo com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão o que tiverem de bom e aplicável aos costumes das regiões onde estiverem estabelecidos, pois o seu objetivo é o bem da Humanidade, e não a satisfação das ambições pessoais. O Espiritismo é uma questão de fundo; prender-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os diversos centros, que estiverem no verdadeiro espírito do Espiritismo, deverão estender-se a mão fraterna e se unirem no combate aos seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.








Dezembro

I. Considerações preliminares. II. Extrato do relatório da Caixa do Espiritismo. — III. Dos cismas. — IV. O chefe do Espiritismo. — V. Comissão central. — Departamentos da Comissão central. — VI. Obras fundamentais da Doutrina. — VII. Atribuições do Comitê. — VIII. Vias e meios. — IX. Conclusão.


I.


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram. Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora se exporem a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos.

Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas.

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá.

Se bem não haja ele dito ainda sua última palavra sobre todos os pontos, aproxima-se do seu complemento e soou a hora de se lhe oferecer uma base forte e durável, susceptível, contudo, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias ulteriores comportem e que ofereça toda a segurança aos que inquiram quem, depois de nós, lhe tomará as rédeas.

A Doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa nas leis da Natureza e porque, melhor do que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações dos homens. Entretanto, a sua difusão e a sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias várias, algumas das quais subordinadas à marcha geral das coisas, outras inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização. É destas que nos vamos ocupar especialmente neste momento.

Conquanto a questão de substância seja preponderante em tudo e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui importância capital; poderia mesmo sobrepujar momentaneamente e suscitar embaraços e atrasos, conforme a maneira por que fosse resolvida.

Houvéramos, pois, feito coisa incompleta e deixado grandes dificuldades para o futuro, se não prevíssemos as que podem surgir. Com o intuito de evitá-las foi que, com o concurso dos bons Espíritos que nos assistem em nossos trabalhos, elaboramos um plano de organização, pondo em jogo a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais se chocaram a maioria das doutrinas que apareceram no mundo. Podendo este plano prestar-se a todos os desenvolvimentos que reserva o futuro, demos, por isto mesmo, a esta constituição a qualificação de transitória.

O plano aqui exposto concebemo-lo há longo tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo, é certo, mas o bastante para mostrar que não é esta, hoje, uma concepção nova e que, trabalhando na parte teórica da obra, não nos descuidávamos do lado prático.

Antes de abordar a fundo a questão, parece-nos útil lembrar algumas passagens do relatório que apresentamos à Sociedade de Paris, no dia 5 de maio de 1865, a propósito da caixa do Espiritismo, e que foi publicado na Revista de junho de 1865. As considerações que ele encerra se ligam diretamente ao nosso assunto, do qual elas são as preliminares indispensáveis.


II.


EXTRATO DO RELATÓRIO DA CAIXA DO ESPIRITISMO, FEITO A SOCIEDADE DE PARIS, EM 5 DE MAIO DE 1865.

Muito se há falado dos proventos que eu retirava de minhas obras. Certamente, nenhuma pessoa séria acredita realmente em meus milhões, a despeito da afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca, tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. (Revista de junho de 1862). Além disso, não obstante o que disse o autor de uma brochura que conheceis, provando, por cálculos hiperbólicos, que o meu orçamento de receita ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porquanto, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários (Revista de junho de 1863), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém, ninguém me deu algo para mim pessoalmente; numa palavra, não vivo a expensas de ninguém, porquanto, das somas que me foram voluntariamente confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito.

As minhas imensas riquezas proviriam, pois, das minhas obras espíritas. Conquanto estas obras tenham alcançado inesperado êxito, basta ter um pouco de familiaridade com os negócios de livraria, para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns centavos por exemplar. Mas, avultado ou mínimo, sendo esse lucro fruto do meu trabalho, ninguém tem o direito de intrometer-se no emprego que lhe dou; ainda mesmo que se elevasse a milhões, ninguém tem nada a ver com isto, desde que a compra de livros, assim como a assinatura da Revista, é facultativa e não se impõe em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade. Falando comercialmente, estou na posição de todo homem que recolhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor, que tanto pode triunfar, quanto fracassar.

Mesmo não tendo, neste particular, nenhuma conta a prestar, creio útil à própria causa a que me devotei, dar algumas explicações.

Antes de mais, direi que minhas obras não são propriedade exclusiva minha, o que me obriga a comprá-las de meu editor e pagá-las como um livreiro, à exceção da Revista; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas dívidas incobráveis e pelas distribuições gratuitas, feitas no interesse da Doutrina, a pessoas que, sem isto, delas estariam privadas. Um cálculo muito fácil prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, é suficiente para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. Somando tudo e feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes; o que faço dela? Isto é o que mais preocupa certa gente.

Quem quer que outrora tenha visto a nossa habitação e a veja hoje poderá atestar que nada mudou na nossa maneira de viver, desde que entrei a ocupar-me com o Espiritismo; é tão simples agora como o era antigamente. Então é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Teria eu, então, a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Creio que meu caráter e meus hábitos jamais permitiram que se fizesse tal suposição. O que pretendem? Desde que isto não me aproveita, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia saberão a cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os fazedores de histórias pouparão a imaginação; hoje eu me limito a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto devo entrar nalguns detalhes íntimos, mas que são necessários, e para os quais vos peço perdão.

Sempre tivemos do que viver, muito modestamente é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo e o de um modesto emprego, que me vi forçado a deixar quando os trabalhos da Doutrina absorveram todo o meu tempo.

Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho; em pouco tempo vi-me arrastado por um movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr de modo algum em evidência e permanecer desconhecido; mas, prontamente ultrapassado, isto não me foi possível: tive de renunciar ao meu gosto pelo insulamento, sob pena de abdicar da obra empreendida e que crescia de dia para dia; foi preciso seguir seu impulso e tomar-lhe as rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, seguramente não fui eu que o procurei, pois é notório que nem a devo à propaganda, nem à camaradagem da imprensa, e que jamais aproveitei de minhas relações para me lançar no mundo, quando isto me teria sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto se desdobrava à minha frente, recuando os seus limites; compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorarem, as dificuldades e os obstáculos redobraram as minhas energias; vi o objetivo e resolvi atingi-lo com a assistência dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas; foi a obra de minha vida: a ela dei todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe meu repouso, minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrecusáveis.

Sem nos afastarmos do nosso gênero de vida, nem por isso essa posição excepcional deixou de nos criar menos necessidades a que só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiriam prover. Seria difícil a outrem imaginar a multiplicidade das despesas que aquela posição acarreta e que, sem ela, eu teria evitado.

Pois bem, senhores! o que me proporcionou suprimento aos meus recursos foi o produto das minhas obras. E o digo com satisfação, pois foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Assim, eu trouxe uma larga cota-parte à caixa do Espiritismo. Os que ajudam a propagação das obras não poderão, pois, dizer que trabalham para me enriquecer, porque o produto da venda de todo livro, de toda assinatura da Revista, redunda em proveito da Doutrina e não do indivíduo.

Mas, prover ao presente não era tudo: importava também pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse auxiliar aquele que me substituísse na grande tarefa que terá de desempenhar Esta fundação, a cujo respeito ainda devo guardar silêncio, se prende à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico, em melhorá-la, uma parte do que ganho. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, e a despeito de minhas economias, duvido muito que meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria destinar. Uma vez, porém, que a sua realização está nos desígnios dos meus guias espirituais, se eu mesmo não o fizer, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. Enquanto aguardo, vou elaborando os projetos no papel.

Longe de mim, senhores, o pensamento de me envaidecer, ainda que de leve, com o que acabo de expor-vos. Foi necessária a pertinácia de certas diatribes, para que eu me decidisse, embora a contragosto, a quebrar o silêncio acerca de alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que à malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por meio de documentos autênticos; mas o tempo dessas explicações ainda não chegou. A única coisa que por enquanto me importava era que ficásseis esclarecidos com relação ao destino dos fundos que a Providência faz que passem pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero mais do que um depositário, até mesmo do que ganho e, com mais forte razão, daquilo que me é confiado.

Alguém me perguntava certo dia, sem curiosidade, é claro, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que houvera sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isso seria inútil, pois os nossos adversários se encarregaram de custeá-la. Não me pondo então à disposição grandes recursos, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo só devia seus triunfos à sua própria força.

Hoje, que o horizonte se ampliou, sobretudo que o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de ordem completamente diversa. Um capital como o que supondes receberia um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes, que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte se destinaria a converter a minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra constituiria uma renda inalienável, destinada: 1º a manter o estabelecimento; 2º a assegurar uma existência a quem me suceder e aos que o ajudarem em sua missão; 3º a prover às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de auxílios eventuais, como sou obrigado a fazer, já que a maior parte de seus recursos decorrem do meu trabalho, que terá termo.

Eis o que eu faria; mas se esta satisfação não me é dada, sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo oportuno. Eis por que absolutamente não me inquieto com isto e só me ocupo com o que, para mim, é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.


III.


DOS CISMAS.

Uma questão que logo se apresenta é a dos cismas que poderão nascer no seio da Doutrina. Estará preservado deles o Espiritismo?

Não, certamente, porque terá, sobretudo no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, refratárias a se amalgamarem com as ideias dos demais; e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, se empenham por ligar seus nomes a uma inovação qualquer; dos que criam novidades só para poderem dizer que não pensam ou agem como os outros; ou porque o seu amor-próprio sofre, por não ocuparem senão uma posição secundária; ou, enfim, porque veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar. Mas, como lhes temos dito centenas de vezes: “Quem vos barra o caminho? Quem vos impede de trabalhar por vosso lado? Quem vos proíbe de publicar as vossas obras? A publicidade vos está aberta como a todo o mundo; dai algo de melhor do que o que está, ninguém, a isto se opõe; sede mais apreciados pelo público, e ele vos dará a preferência.”

Se, porém, o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia neutralizar-lhes as consequências e isto é o essencial.

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de' uma teoria racional. Hoje, raros partidários ainda contam esses primitivos sistemas. É este um, fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências se apagarão com a elucidação integral de todas as partes da Doutrina. Mas, haverá sempre os dissidentes, de ânimo prevenido e interessados, por um motivo ou por outro, a constituir bando à parte. Contra a pretensão desses é que cumpre se premunam os demais.

Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. Quando for dito peremptoriamente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém pode pretender que se quis dizer que dois e dois fazem cinco.

Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância.

O segundo ponto está em não se sair do âmbito das ideias práticas. Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.

Se, portanto, uma seita se formar à ilharga do Espiritismo, fundada ou não em seus princípios, de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como já sucedeu a tantas outras, através dos séculos; se suas ideias forem acertadas, mesmo que com relação a um único ponto, a Doutrina, que apenas procura o bem e o verdadeiro onde quer que se encontrem, as assimilará, de sorte que, em vez de ser absorvida, absorverá. Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela os imitará; se fizerem maior bem, ela se esforçará por fazer outro tanto ou mais, se possível; se fizerem mais mal, ela os deixará fazer, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem sobrepuja o mal e o verdadeiro predominará sobre o que é falso. Esta a única luta em que se empenhará.

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da moral espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros; não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo, invariável. Mas, quem poderá lisonjear-se de possuí-la toda? No estado de imperfeição em que se acham os nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdadeiro, em consequência da descoberta de novas leis, e isso tanto na ordem moral, quanto na ordem física. Contra essa eventualidade, a Doutrina nunca deverá estar desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade Em vez de ser uma força, a imobilidade se torna uma causa de fraqueza e de ruína, para quem não acompanha o movimento geral; quebra a unidade, porque os que querem avançar se separam dos que se obstinam em ficar atrás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, cumpre fazê-lo com prudência e evitar ir de cabeça baixa ao encontro dos devaneios da utopia e dos sistemas. É preciso fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Compreende-se que uma doutrina assente sobre tais bases tem que ser realmente forte; ela desafia toda concorrência e neutraliza as pretensões de seus competidores. É para este ponto que os nossos esforços tendem a conduzir a Doutrina Espírita.

Aliás, a experiência já comprovou o acerto desta previsão. Tendo marchado sempre por esse caminho desde a sua origem, a Doutrina avança constantemente, mas sem precipitação, verificando sempre se é sólido o terreno onde pisa e medindo seus passos pelo estado da opinião. Fez como o navegante que não prossegue sem ter na mão a sonda e sem consultar os ventos.


IV.


O CHEFE DO ESPIRITISMO.

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa senda? Quem terá mesmo a força? Quem disporá do tempo e da perseverança necessários para se consagrar ao trabalho incessante que semelhante tarefa exige? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não será de temer que se desvie da sua rota? e que a malevolência, com a qual ainda estará por longo tempo em luta, não procure desfigurar-lhe o espírito? É essa, com efeito, uma questão vital e cuja solução se reveste do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é tão evidente, que já causa inquietação o não ser visto, a surgir no horizonte, o seu condutor. Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar a impulsão, de estimular os zelos, de defender os fracos, de sustentar os ânimos vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de caminhar ao léu. Não somente essa direção é necessária, como também preciso se faz que preencha condições de força e de estabilidade suficientes para afrontar as tempestades.

Os que nenhuma autoridade admitem não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar toda direção, a maioria, os que não se creem infalíveis e não depositam confiança absoluta em suas próprias luzes, se sentem necessitados de um ponto de apoio, de um guia, ainda que apenas para ajudá-los a caminhar com segurança. (Vide a Revista de abril de 1866: O Espiritismo Independente).

Reconhecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados no mundo inteiro? É coisa impraticável. Se se impuser por sua própria autoridade, uns o aceitarão, enquanto que outros o recusarão, e podem surgir vinte pretendentes, levantando bandeira contra bandeira. Fora ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso e ninguém conviria menos do que um ambicioso, por isso mesmo orgulhoso, para chefiar uma doutrina que se baseia na abnegação, no devotamento, no desinteresse, na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, outra coisa não poderia fazer, senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente se daria, se de antemão se não adotassem medidas eficazes a prevenir esse inconveniente.

Admitamos, no entanto, houvesse um homem com todas as qualidades necessárias ao desempenho do seu mandato e que, por uma senda qualquer, chegasse à direção suprema. Os homens se sucedem e não se assemelham; depois de um bom, poderia vir um mau. Com o indivíduo, pode mudar o espírito da direção; sem maus desígnios, pode ele ter modos de ver mais ou menos justos; se entender de fazer que prevaleçam suas ideias pessoais, pode levar a Doutrina a transviar-se, suscitar dissidências e as mesmas dificuldades se renovarão a cada mudança. É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força. Do ponto de vista da organização, é uma criança que mal começa a andar. Insta, pois, sobretudo no princípio, premuni-lo contra os obstáculos do caminho.

Mas, dir-se-á, não virá estar à frente do Espiritismo um dos Espíritos que, segundo foi anunciado, tem que tomar parte na obra da regeneração? É provável; todavia, como esses Espíritos não trarão na fronte um sinal para serem reconhecidos; como não se afirmarão senão por seus atos, e, na maioria, só serão reconhecidos depois de terem morrido, conformemente ao que houverem produzido durante a vida; como, ao demais, não serão perpétuos, mister se torna prever todas as eventualidades.

É sabido que eles terão uma missão multíplice; que serão de todos os graus da escala espiritual e se encontrarão nos diversos ramos da economia [organização] social, onde um exercerá influência a favor das novas ideias, conforme a particularidade da sua posição; que todos, pois, trabalharão pelo ascendente da Doutrina, aqui e ali, uns como chefes de Estado, outros como legistas, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc.; que cada um dará provas de si onde lhe caiba exercer sua atividade, desde o proletário até o soberano, sem que qualquer coisa os distinga do comum dos homens, a não serem suas obras. Se a um deles couber tomar parte na direção, é provável que seja posto providencialmente na posição apropriada a fazê-lo chegar lá pelos meios legais que forem adotados; circunstâncias aparentemente fortuitas até lá o conduzirão, sem que de sua parte haja desígnio premeditado, sem mesmo ter ele consciência de sua missão. (Revista Espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868.)

Em tal caso, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias têm que ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, a só pretensão de ser um messias constituiria a negação dessas qualidades essenciais; provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou tola presunção, em havendo boa-fé, ou insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pseudo-espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou cupidez; outros que alardeiam pretensas revelações com o auxílio das quais procurem salientar-se e fascinar as imaginações por demais crédulas. É também de prever que, sob falsas aparências, indivíduos haja que tentem apoderar-se do leme, com a ideia preconcebida de fazerem soçobrar o navio, desviando-o de sua rota. O navio não soçobrará, mas poderia sofrer prejudiciais atrasos que se devem evitar.

São esses, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo precisa preservar-se. Quanto maior consistência ele adquirir, tanto mais ciladas lhe armarão seus adversários. É, portanto, dever de todos os espíritas sinceros anular as manobras da intriga que se possam urdir, assim nos pequenos, como nos grandes centros. Deverão eles, em primeiro lugar, repudiar, do modo mais absoluto, todo aquele que por si mesmo se apresente qual messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Pelo fruto é que se conhece a árvore; espere-se, pois, que a árvore dê seu fruto, para decidir se ela é boa e veja-se também se os frutos têm sabor. (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XXI, nº 9, “Caracteres do verdadeiro profeta”.)

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer que os candidatos fossem designados pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além de que este meio não obviaria a todos os inconvenientes, apresentaria outros, peculiares a semelhante modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que fora supérfluo lembrar aqui. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos consiste em nos instruir, para que nos melhoremos, porém não em se sobreporem ao nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem ideias, ajudam com seus conselhos, principalmente no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso raciocínio o encargo da execução das coisas materiais, encargo a que não lhes cabe poupar-nos. Em seu mundo eles têm atribuições que não são as da Terra; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições é expor-se às falcatruas dos Espíritos levianos. Contentem-se os homens com o serem assistidos e protegidos por Espíritos bons; não descarreguem, porém, sobre eles, a responsabilidade que incumbe ao encarnado.

Esse meio, aliás, suscitaria maiores embaraços do que se poderia supor, pela dificuldade de fazer-se que todos os grupos participassem de semelhante eleição. Seria uma complicação nas engrenagens e estas tanto menos susceptíveis se mostrarão de desarranjar-se, quanto mais simplificadas forem.

O problema é, pois, o de constituir-se uma direção central, em condições de força e estabilidade, que a ponham ao abrigo de todas as flutuações; que correspondam a todas as necessidades da causa e oponham intransponível barreira às tramas da intriga e da ambição. Tal o objetivo do plano de que vamos dar um rápido esboço.


V.


COMISSÃO CENTRAL.

Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, saídos, no estado de embriões, de uma multidão de focos, se dirigissem para um centro comum, a fim de serem aí examinados e cotejados, de sorte que um só pensamento presidisse à coordenação deles, a fim de ' estabelecer-se a unidade no conjunto e a harmonia entre todas as partes: Se não fosse assim, a Doutrina ter-se-ia assemelhado a esses edifícios híbridos, projetados por vários arquitetos, ou a um mecanismo cujas rodas não se engrenam com precisão umas nas outras.

Já o temos dito, por ser verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina não podia sair, de um único centro, completamente estruturada, da mesma maneira que toda a ciência astronômica não poderia sair, inteiramente constituída, de um único observatório. Qualquer centro que tentasse erguê-la exclusivamente sobre as suas observações faria coisa incompleta e se acharia, com relação a uma infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer cada um a sua doutrina, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo quanto aos fundamentos, difeririam inevitavelmente quanto à forma. Ora, como há muita gente que atenta mais na forma do que na substância, tantas seriam as seitas quantas as formas diferentes. Somente do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais podia resultar a unidade. Por isso é que era necessária a concentração dos trabalhos. (A Gênese, capítulo I, “Caráter da revelação espírita”, nº 51 e seguintes.)

Mas, o que era de vantagem por um certo tempo mais tarde se tornaria inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração se acha concluído, no que concerne às questões fundamentais, que estabelecidos se encontram os princípios gerais da Ciência, a direção, de individual que houve de ser em começo, tem que se tornar coletiva, primeiramente, porque um momento há de vir em que o seu peso excederá as forças de um homem e, em segundo lugar, porque maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos, a cada um dos quais caiba apenas um voto e que nada podem sem o concurso mútuo, do que um só indivíduo, capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será confiada a uma comissão central ou conselho superior permanente — pouco importa o nome — cuja organização e atribuições se definam de maneira a não dar azo ao arbítrio. Essa comissão se comporá, no máximo de doze membros titulares, que deverão, para tal efeito, preencher certas condições indispensáveis, e de igual número de conselheiros. Ela se completará a si mesma, segundo regras igualmente determinadas, de modo a evitar todo favoritismo, à medida que em seu seio se derem vagas por falecimentos ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá o modo por que serão nomeados os doze primeiros.

Cada membro presidirá por sua vez durante um ano, e aquele que preencher esta função será designado por sorteio.

Puramente administrativa será a autoridade do presidente. Ele dirigirá as deliberações da comissão, velará pela execução dos trabalhos e pelo expediente; mas, fora das atribuições que os estatutos constitutivos lhe conferirem, nenhuma decisão poderá tomar sem o concurso da comissão. Portanto, não haverá possibilidade de abusos, nem alimentos para a ambição, nem pretextos para intrigas ou ciúmes, nem supremacia chocante.

A comissão central, ou conselho superior, será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia-geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer por meio da discussão, não será bastante para que haja confusão.

Os congressos serão constituídos por delegados das sociedades particulares, regularmente constituídas, e colocadas sob o patrocínio da comissão por sua adesão e pela conformidade de seus princípios.

Para a comunidade dos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, em suma, de um corpo constituído, representando opinião coletiva, forçosamente terão uma autoridade que jamais teriam, se emanassem de um só indivíduo, que apenas representa uma opinião pessoal. É frequente uma pessoa rejeitar a opinião de outra, por entender que se humilharia, caso se submetesse a essa opinião, e acatar sem dificuldades a de muitos.

Fica bem entendido que aqui se trata de autoridade moral, no que respeita à interpretação e aplicação dos princípios morais da Doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma academia, em matéria de Ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem maior ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, apresenta uma força de resistência e dispõe de meios de ação com que um indivíduo não poderia contar; aquele luta com vantagens infinitamente maiores. Uma individualidade está sujeita a ser atacada e aniquilada; o mesmo já não se dá com uma entidade coletiva.

Há, igualmente, numa entidade coletiva, uma garantia de estabilidade, que não existe, quando tudo recai sobre uma cabeça única. Desde que o indivíduo se ache impedido por uma causa qualquer, tudo fica paralisado. A entidade coletiva, ao contrário, se perpetua incessantemente. Embora perca um ou vários de seus membros, nada periclita.

A dificuldade, dirão, consistirá em reunir, de modo permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que sejam acordes no tocante aos princípios fundamentais. Ora, isso constituirá uma condição absoluta para que sejam admitidas à direção, como para a de todos os que desta hajam de participar. Sobre as questões pendentes de detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto a opinião da maioria é que prevalecerá. Àquele cuja maneira de ver for acertada, não faltarão razões boas com que a justifique. Se algum, contrariado por não conseguir que suas ideias predominem, se retirar, nem por isso deixariam as coisas de seguir o seu curso e motivo não haveria para se lhe deplorar a saída, pois que teria dado prova de uma susceptibilidade orgulhosa, pouco espírita, e que poderia tornar-se origem de perturbações.

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, do momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião. É esta uma questão de minúcia prevista na organização.

Admitamos que entre os membros da comissão haja um irmão falso, um traidor, que os inimigos da causa tenham ganho para si: que logrará ele fazer, não dispondo senão do seu voto nas decisões? Suponhamos que, por impossível, toda a comissão enverede por mau caminho: aí estarão os congressos para reconduzi-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração pertencerá aos congressos, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra a comissão central, por infração do seu mandato, por violação dos princípios estabelecidos, ou por medidas prejudiciais à Doutrina. Por isso é que se apelará da comissão para o congresso, nas circunstâncias em que se julgue que a responsabilidade da primeira está gravemente comprometida.

Sendo os congressos um freio para a comissão, na aprovação deles haure esta última novas forças. É assim que o chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem risco para si próprio, afastar-se do caminho reto.

Quando a comissão estiver organizada, dela faremos parte como simples membro seu, dando-lhe a nossa colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.


[DEPARTAMENTOS DA COMISSÃO CENTRAL.]


Às atribuições gerais da comissão serão anexados, como dependências locais:

1º Uma biblioteca, onde se encontrem reunidas todas as obras que interessem o Espiritismo e que possam ser consultadas no local, ou cedidas para leitura fora;

2º Um museu, onde se achem colecionadas as primeiras obras de arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos a quem a causa muito deva pelo devotamento que tenham demonstrado, os dos homens a quem o Espiritismo renda homenagens, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da Humanidade, grandes gênios missionários do progresso, etc.

3º Um dispensário destinado às consultas médicas gratuitas e ao tratamento médico de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4º Uma caixa de socorros e de previdência, em condições práticas;

5º Um asilo;

6º Uma sociedade de adeptos, que celebre sessões regulares.


VI.


OBRAS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA.

Muitas pessoas lamentam que as obras fundamentais da Doutrina tenham um preço tão elevado para grande número de leitores, e pensam, com razão, que se fossem feitas edições populares a baixo custo, estariam muito mais espalhadas, com o que ganharia a Doutrina.

Estamos completamente de acordo; mas, no estado atual das coisas, as condições em que são editadas não permitem que o sejam de outro modo. Esperamos chegar um dia a esse resultado, com o auxílio de uma nova combinação que se ligue ao plano geral de organização. Mas essa operação não pode ser realizada senão empreendida em vasta escala; só de nossa parte exigiria capitais que não possuímos, e trabalhos materiais que os nossos trabalhos, que reclamam todas as nossas meditações, não nos permitem dar. É por isto que a parte comercial propriamente dita foi negligenciada ou, melhor dizendo, sacrificada ao estabelecimento da parte doutrinária. O que importava, antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da Doutrina.

Em se achando organizado pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que as gerirá e cuidará da publicação delas, pelos meios mais apropriados a popularizá-las. Ela também deverá cuidar de que sejam traduzidas nas principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário que conservasse seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade.

Fomos, por diversas vezes, solicitados a fazê-la circular mais amiúde; por muito lisonjeiro, porém, que nos fosse esse desejo, não pudemos atendê-lo, primeiramente, porque o tempo material não nos consentia esse acréscimo de trabalho e, em segundo lugar, porque importava não perdesse ela o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima do seu termo, as necessidades já não são as mesmas; a Revista se tornará, como as nossas outras obras, feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior vantagem do Espiritismo, sem que, por isso, renunciemos a lhe prestar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, falta-nos publicar vários trabalhos, que não formam a parte menos difícil, nem menos penosa. Conquanto já disponhamos de todos os elementos para o executar e o programa de cada um esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dispensar-lhes mais acurada atenção e ativá-los, se, por instituída a comissão central, estivéssemos livres de outros cuidados que absorvem grande parte do nosso tempo.


VII.


ATRIBUIÇÕES DO COMITÊ.

Serão estas as atribuições principais da comissão central:

1º Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propagação; manter-lhe a unidade, pela conservação da integridade dos princípios firmados; prover ao desenvolvimento de suas consequências;

2º O estudo dos novos princípios, susceptíveis de entrar no corpo da Doutrina;

3º A concentração, em seu poder, de todos os documentos e informações que interessem ao Espiritismo;

4º A correspondência;

5º A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos diversos países;

6º A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo e à qual se poderá juntar outra publicação periódica;

7º O exame e apreciação das obras, dos artigos de jornais e de todos os escritos que interessem à Doutrina; a refutação dos ataques, se aparecerem;

8º A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais favoráveis à sua vulgarização; a elaboração e publicação das de que daremos o plano e que não teremos tempo de executar em nossa atual existência; o apoio de que precisem as publicações que sejam de proveito para a causa;

9º A fundação e conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10º A administração da caixa de socorros, do dispensário e do asilo;

11º A administração dos negócios materiais;

12º A direção das sessões da Sociedade;

13º O ensino oral;

14º As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob o seu patrocínio;

15º A convocação dos congressos e assembleias gerais.


Estas atribuições os membros da comissão as distribuirão entre si, conforme a especialidade de cada um, sendo eles, se for preciso, assistidos por certo número de auxiliares ou de simples empregados.

Em consequência, entre os membros da comissão haverá:

Um secretário-geral para a correspondência e as atas das sessões da comissão;

Um redator-chefe para Revista e as outras publicações;

Um bibliotecário-arquivista, encarregado, além disso, do exame e das apreciações criticas das obras e artigos de jornais;

Um diretor da caixa de socorros, também encarregado da direção do dispensário, das visitas aos doentes e necessitados e de tudo o que se refere à beneficência. Será secundado por uma comissão de beneficência escolhida no seio da Sociedade, e formada de pessoas caridosas de boa vontade;

Um administrador-contador, encarregado dos negócios e dos interesses materiais;

Um diretor especial para os negócios concernentes às publicações;

Oradores para o ensino oral, encarregados, ademais, de visitar as sociedades dos Departamentos e aí dar instruções. Poderão ser tomados entre os membros auxiliares e os adeptos de boa vontade que, para tanto, receberão um mandato especial.

Seja qual for a extensão ulterior dos negócios e do pessoal administrativo, a comissão será sempre limitada ao mesmo número de membros titulares.

Até agora tivemos de nos bastar mais ou menos sozinhos a este programa. Por isso mesmo, algumas de suas partes foram negligenciadas ou apenas puderam ser esboçadas, e as que são mais especialmente da nossa alçada, tiveram que sofrer inevitáveis atrasos, pela necessidade de nos ocupar de tantas coisas, quando o tempo e as forças têm limites e uma só absorveria o tempo de um homem.


VIII.


VIAS E MEIOS.

É de lastimar, sem dúvida, que tenhamos de entrar em considerações de ordem material, para alcançarmos um objetivo todo espiritual. Cumpre, porém, observemos, que a espiritualidade mesma da obra se prende à questão da Humanidade terrena e do seu bem-estar; que já não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e de durável, para a extensão e a consolidação da Doutrina, à qual é preciso fazer produzir os frutos de que é susceptível de dar. Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com um bastão de viagem, sem cogitarem de saber onde pousariam, nem do que comeriam, fora alimentar uma ilusão que bem depressa amarga decepção destruiria. Para alguém fazer qualquer coisa de sério, tem que se submeter às necessidades impostas pelos costumes da época em que vive e essas necessidades são muito diversas da dos tempos da vida patriarcal. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que se apreciem os meios de ação, para não ser forçoso parar a meio do caminho. Apreciemo-los, portanto, uma vez que estamos num século em que é preciso calcular tudo.

São em grande número, como se vê, as atribuições da comissão central, para necessitarem de uma verdadeira administração. Tendo cada um de seus membros funções ativas e assíduas, se apenas a constituíssem homens de boa vontade, os trabalhos seriam prejudicados, porquanto ninguém teria o direito de censurar os negligentes. Para regularidade dos trabalhos e normalidade do expediente, necessário se torna contar com homens de cuja assiduidade se possa estar certo e que não considerem suas funções como simples atos de comprazer. De quanto mais independência eles forem senhores, pelos seus recursos pessoais, tanto menos se deixarão prender por ocupações assíduas; se não dispuserem de tempo, não poderão consagrá-lo àquelas funções. Importa, pois, que sejam retribuídos, assim como o pessoal administrativo. Com isso a Doutrina ganhará em força, em estabilidade, em pontualidade, do mesmo passo que constituirá um meio de prestar serviços a pessoas que dela necessitem.

Ponto essencial, na economia de toda administração previdente, é que sua existência não dependa de produtos eventuais que possam fazer falta, mas de recursos certos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não seja embaraçada. Insta, pois, que as pessoas que forem chamadas a lhe prestar concurso, não se sintam inquietas quanto ao futuro que as aguarde. Ora, a experiência demonstra que se devem considerar essencialmente aleatórios os recursos que apenas tenham por base o produto de cotas ou contribuições, sempre facultativas, quaisquer que sejam os compromissos contraídos, e de cobrança sempre difícil. Assentar despesas permanentes e regulares sobre recursos eventuais, implicaria falta de previdência, que mais tarde se haveria de deplorar. Menos graves são, sem dúvida, as consequências, quando se trate de fundações temporárias, destinadas a durar quanto possam; aqui, porém, é uma questão de futuro. A sorte de uma administração como esta não pode ficar subordinada aos azares de um negócio comercial; precisa ser, desde o seu início, se não tão florescente, pelo menos tão estável quanto o será daqui a um século. Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em tal caso a mais vulgar prudência manda se capitalizem, de forma inalienável, os recursos, à proporção que vão sendo obtidos, a fim de constituir-se uma renda perpétua, a coberto de todas as eventualidades. Regulando a administração a sua despesa pela renda que aufira, não pode a sua existência, em nenhum caso, achar-se comprometida, pois que disporá sempre de meios para funcionar. Pode, no começo, organizar-se em menor escala; o número de membros da comissão poderá ser limitado provisoriamente a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, salvo para proporcionar o desenvolvimento pelo acréscimo dos recursos e das necessidades da causa, considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora membro ativo da comissão central, não pesaremos de forma alguma no seu orçamento, nem por honorários, nem por despesas de viagens, nem por outra causa qualquer. Se nunca a ninguém nada pedimos para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância. Nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parcela dos recursos de que dispuser a comissão será desviada em proveito nosso.

Dar-lhe-emos, ao contrário, a nossa contribuição:

1º Abrindo mão, em seu favor, do que produzam as nossas obras, feitas e por fazer;

2º Doando-lhe valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da Doutrina, e não para aí conquistarmos uma posição da qual não necessitamos. Foi para preparar as vias desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de haver posto a primeira pedra.

Figuremos então que, de um modo ou de outro, a comissão central, em dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe uma renda de 25 a 30.000 francos. Restringindo, em começo, as suas despesas, os recursos de toda espécie de que disponha, em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que será objeto de uma contabilidade rigorosa. Reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda irá aumentar o capital comum. Proporcionalmente, com os recursos desse capital é que a comissão proverá às diversas despesas proveitosas ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais faça dele aplicação pessoal, nem fonte de especulação para qualquer de seus membros: Ao demais, o emprego dos fundos e escrituração serão submetidos à verificação de comissários especiais, designados, para esse efeito, pelos congressos ou assembleias gerais.

A comissão terá por um de seus primeiros cuidados ocupar-se com as publicações, desde que seja possível, sem esperar que o possa fazer com o auxílio das rendas. Os fundos a isso destinados não serão, em realidade, mais que um adiantamento, pois que voltarão à caixa, em virtude da venda das obras, cujo produto reverterá ao capital comum. É um negócio de administração.

Para dar a esta instituição uma existência legal, ao abrigo de toda contestação, dar-lhe, além disso, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se for julgado necessário, por ato autêntico, sob forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos, prorrogável indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se de seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias da comissão, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas ligamos; queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

A criação de uma caixa geral de socorros é impraticável e apresenta sérios inconvenientes, como já o demonstramos em artigo especial. (Revista de julho de 1866). A comissão não deve, pois, tomar um caminho que teria de abandonar ao cabo de pouco tempo, nem empreender coisa alguma que não esteja certa de poder realizar. Ela precisa ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas. Esse o meio de caminhar longo tempo e com segurança. Para isso, cumpre-lhe ficar sempre dentro dos limites do possível.

Essa caixa de socorros não pode e não deve ser mais do que uma instituição local, de ação circunscrita e cuja prudente organização sirva de modelo às do mesmo gênero que as sociedades particulares venham a criar. Pela sua multiplicidade é que elas prestarão serviços eficazes e não pela centralização dos meios de ação.

Será alimentada: 1º pelas parcelas, que se lhe destinem, tiradas da renda da caixa geral do Espiritismo; 2º pelos donativos especiais que lhe forem feitos. Ela capitalizará as somas que receber, de maneira a constituir para si um rendimento. Com essa renda é que prestará os socorros temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações do seu mandato, estipuladas no regulamento da sua constituição.

O projeto de um asilo, na acepção completa do termo, não poderá ter execução logo de começo, pelos capitais que reclamaria semelhante fundação e, ao demais, porque é preciso dar à administração tempo de se firmar e de atuar com regularidade, antes de complicar suas atribuições com empreendimentos que possam malograr-se. Fora imprudência tentar muitas coisas, antes de estar certa de dispor dos meios de execução. É o que facilmente se compreenderá, desde que se pense em todos os pormenores inerentes a estabelecimentos desse gênero. Convém, sem dúvida, alimentar boas intenções, mas, antes de tudo, mister se faz poder realizá-las.


IX.


CONCLUSÃO.

Tais são as bases principais da organização que nos propomos dar ao Espiritismo, se as circunstâncias no-lo permitirem. Tivemos que desenvolver os motivos um tanto longamente, a fim de dar a conhecer o seu espírito. Os detalhes serão objeto de uma regulamentação minuciosa, na qual todos os casos serão previstos de maneira a levantar todas as dificuldades de execução.

Consequente com os princípios de tolerância e de respeito a todas as opiniões, que o Espiritismo professa, não pretendemos impor esta organização a ninguém, nem constranger quem quer que seja a se submeter a ela. Nosso objetivo é estabelecer um primeiro laço entre os espíritas, que o desejam desde muito tempo e se lastimam de seu isolamento. Ora, esse laço, sem o qual o Espiritismo, permanecendo no estado de opinião individual, sem coesão, só pode existir com a condição de se religar a um centro por uma comunhão de vistas e de princípios. Esse centro não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, agindo no interesse geral e na qual a autoridade pessoal se apaga.

Se ele não existisse, qual teria sido o ponto de ligação dos espíritas disseminados em diferentes países? Não podendo comunicar suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, eles também espalhados, e muitas vezes sem consistência, teriam ficado isolados e, com isto, sofrido a difusão da Doutrina. Era preciso, pois, um ponto aonde todos chegassem e de onde tudo pudesse irradiar. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar inútil esse centro, faria sentir melhor a sua necessidade, porque a necessidade de aproximação e de formação de um feixe será tanto maior quanto mais considerável for o número de adeptos.

Mas qual será a extensão do círculo de atividades desse centro? É destinado a reger o mundo e a tornar-se o árbitro universal da verdade? Se tivesse essa pretensão, seria compreender mal o espírito do Espiritismo que, por isso mesmo que proclama os princípios do livre-exame e da liberdade de consciência, repudia a ideia de se erigir em autocracia; desde o começo entraria numa senda fatal.

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da Natureza, e não sobre abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira, que os espíritas do mundo inteiro estarão sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder, que deverão esperar a luz de um ponto fixo, para o qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma única nação, governada por um só chefe, regida pelo mesmo código de leis e submetidas aos mesmos costumes. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos hábitos, aos caracteres e aos climas de cada uma.

Assim será com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo inteiro terão princípios comuns, que os ligarão à grande família pelo laço sagrado da fraternidade, mas cuja aplicação poderá variar conforme as regiões, sem que, por isto, seja rompida a unidade fundamental, sem formar seitas dissidentes que se atirem a pedra e o anátema, o que seria antiespírita em alto grau. Poderão, pois, se formar, e inevitavelmente se formarão, centros gerais em diferentes países, sem outro laço além da comunhão de crença e a solidariedade moral, sem subordinação de um ao outro, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de impor-se aos espíritas americanos e reciprocamente.

A comparação dos observatórios, que citamos acima, é perfeitamente justa. Há observatórios em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, estão baseados em princípios gerais e reconhecidos da Astronomia, o que, por isso, não os torna tributários uns dos outros; cada um regula seus trabalhos como entende; comunicam-se as suas observações, e cada um põe a serviço da Ciência as descobertas de seus confrades. Dar-se-á o mesmo com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão o que tiverem de bom e aplicável aos costumes das regiões onde estiverem estabelecidos, pois o seu objetivo é o bem da Humanidade, e não a satisfação das ambições pessoais. O Espiritismo é uma questão de fundo; prender-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os diversos centros, que estiverem no verdadeiro espírito do Espiritismo, deverão estender-se a mão fraterna e se unirem no combate aos seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.








Dezembro

I. Considerações preliminares. II. Extrato do relatório da Caixa do Espiritismo. — III. Dos cismas. — IV. O chefe do Espiritismo. — V. Comissão central. — Departamentos da Comissão central. — VI. Obras fundamentais da Doutrina. — VII. Atribuições do Comitê. — VIII. Vias e meios. — IX. Conclusão.


I.


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram. Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora se exporem a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos.

Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas.

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá.

Se bem não haja ele dito ainda sua última palavra sobre todos os pontos, aproxima-se do seu complemento e soou a hora de se lhe oferecer uma base forte e durável, susceptível, contudo, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias ulteriores comportem e que ofereça toda a segurança aos que inquiram quem, depois de nós, lhe tomará as rédeas.

A Doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa nas leis da Natureza e porque, melhor do que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações dos homens. Entretanto, a sua difusão e a sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias várias, algumas das quais subordinadas à marcha geral das coisas, outras inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização. É destas que nos vamos ocupar especialmente neste momento.

Conquanto a questão de substância seja preponderante em tudo e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui importância capital; poderia mesmo sobrepujar momentaneamente e suscitar embaraços e atrasos, conforme a maneira por que fosse resolvida.

Houvéramos, pois, feito coisa incompleta e deixado grandes dificuldades para o futuro, se não prevíssemos as que podem surgir. Com o intuito de evitá-las foi que, com o concurso dos bons Espíritos que nos assistem em nossos trabalhos, elaboramos um plano de organização, pondo em jogo a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais se chocaram a maioria das doutrinas que apareceram no mundo. Podendo este plano prestar-se a todos os desenvolvimentos que reserva o futuro, demos, por isto mesmo, a esta constituição a qualificação de transitória.

O plano aqui exposto concebemo-lo há longo tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo, é certo, mas o bastante para mostrar que não é esta, hoje, uma concepção nova e que, trabalhando na parte teórica da obra, não nos descuidávamos do lado prático.

Antes de abordar a fundo a questão, parece-nos útil lembrar algumas passagens do relatório que apresentamos à Sociedade de Paris, no dia 5 de maio de 1865, a propósito da caixa do Espiritismo, e que foi publicado na Revista de junho de 1865. As considerações que ele encerra se ligam diretamente ao nosso assunto, do qual elas são as preliminares indispensáveis.


II.


EXTRATO DO RELATÓRIO DA CAIXA DO ESPIRITISMO, FEITO A SOCIEDADE DE PARIS, EM 5 DE MAIO DE 1865.

Muito se há falado dos proventos que eu retirava de minhas obras. Certamente, nenhuma pessoa séria acredita realmente em meus milhões, a despeito da afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca, tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. (Revista de junho de 1862). Além disso, não obstante o que disse o autor de uma brochura que conheceis, provando, por cálculos hiperbólicos, que o meu orçamento de receita ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porquanto, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários (Revista de junho de 1863), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém, ninguém me deu algo para mim pessoalmente; numa palavra, não vivo a expensas de ninguém, porquanto, das somas que me foram voluntariamente confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito.

As minhas imensas riquezas proviriam, pois, das minhas obras espíritas. Conquanto estas obras tenham alcançado inesperado êxito, basta ter um pouco de familiaridade com os negócios de livraria, para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns centavos por exemplar. Mas, avultado ou mínimo, sendo esse lucro fruto do meu trabalho, ninguém tem o direito de intrometer-se no emprego que lhe dou; ainda mesmo que se elevasse a milhões, ninguém tem nada a ver com isto, desde que a compra de livros, assim como a assinatura da Revista, é facultativa e não se impõe em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade. Falando comercialmente, estou na posição de todo homem que recolhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor, que tanto pode triunfar, quanto fracassar.

Mesmo não tendo, neste particular, nenhuma conta a prestar, creio útil à própria causa a que me devotei, dar algumas explicações.

Antes de mais, direi que minhas obras não são propriedade exclusiva minha, o que me obriga a comprá-las de meu editor e pagá-las como um livreiro, à exceção da Revista; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas dívidas incobráveis e pelas distribuições gratuitas, feitas no interesse da Doutrina, a pessoas que, sem isto, delas estariam privadas. Um cálculo muito fácil prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, é suficiente para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. Somando tudo e feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes; o que faço dela? Isto é o que mais preocupa certa gente.

Quem quer que outrora tenha visto a nossa habitação e a veja hoje poderá atestar que nada mudou na nossa maneira de viver, desde que entrei a ocupar-me com o Espiritismo; é tão simples agora como o era antigamente. Então é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Teria eu, então, a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Creio que meu caráter e meus hábitos jamais permitiram que se fizesse tal suposição. O que pretendem? Desde que isto não me aproveita, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia saberão a cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os fazedores de histórias pouparão a imaginação; hoje eu me limito a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto devo entrar nalguns detalhes íntimos, mas que são necessários, e para os quais vos peço perdão.

Sempre tivemos do que viver, muito modestamente é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo e o de um modesto emprego, que me vi forçado a deixar quando os trabalhos da Doutrina absorveram todo o meu tempo.

Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho; em pouco tempo vi-me arrastado por um movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr de modo algum em evidência e permanecer desconhecido; mas, prontamente ultrapassado, isto não me foi possível: tive de renunciar ao meu gosto pelo insulamento, sob pena de abdicar da obra empreendida e que crescia de dia para dia; foi preciso seguir seu impulso e tomar-lhe as rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, seguramente não fui eu que o procurei, pois é notório que nem a devo à propaganda, nem à camaradagem da imprensa, e que jamais aproveitei de minhas relações para me lançar no mundo, quando isto me teria sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto se desdobrava à minha frente, recuando os seus limites; compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorarem, as dificuldades e os obstáculos redobraram as minhas energias; vi o objetivo e resolvi atingi-lo com a assistência dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas; foi a obra de minha vida: a ela dei todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe meu repouso, minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrecusáveis.

Sem nos afastarmos do nosso gênero de vida, nem por isso essa posição excepcional deixou de nos criar menos necessidades a que só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiriam prover. Seria difícil a outrem imaginar a multiplicidade das despesas que aquela posição acarreta e que, sem ela, eu teria evitado.

Pois bem, senhores! o que me proporcionou suprimento aos meus recursos foi o produto das minhas obras. E o digo com satisfação, pois foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Assim, eu trouxe uma larga cota-parte à caixa do Espiritismo. Os que ajudam a propagação das obras não poderão, pois, dizer que trabalham para me enriquecer, porque o produto da venda de todo livro, de toda assinatura da Revista, redunda em proveito da Doutrina e não do indivíduo.

Mas, prover ao presente não era tudo: importava também pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse auxiliar aquele que me substituísse na grande tarefa que terá de desempenhar Esta fundação, a cujo respeito ainda devo guardar silêncio, se prende à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico, em melhorá-la, uma parte do que ganho. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, e a despeito de minhas economias, duvido muito que meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria destinar. Uma vez, porém, que a sua realização está nos desígnios dos meus guias espirituais, se eu mesmo não o fizer, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. Enquanto aguardo, vou elaborando os projetos no papel.

Longe de mim, senhores, o pensamento de me envaidecer, ainda que de leve, com o que acabo de expor-vos. Foi necessária a pertinácia de certas diatribes, para que eu me decidisse, embora a contragosto, a quebrar o silêncio acerca de alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que à malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por meio de documentos autênticos; mas o tempo dessas explicações ainda não chegou. A única coisa que por enquanto me importava era que ficásseis esclarecidos com relação ao destino dos fundos que a Providência faz que passem pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero mais do que um depositário, até mesmo do que ganho e, com mais forte razão, daquilo que me é confiado.

Alguém me perguntava certo dia, sem curiosidade, é claro, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que houvera sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isso seria inútil, pois os nossos adversários se encarregaram de custeá-la. Não me pondo então à disposição grandes recursos, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo só devia seus triunfos à sua própria força.

Hoje, que o horizonte se ampliou, sobretudo que o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de ordem completamente diversa. Um capital como o que supondes receberia um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes, que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte se destinaria a converter a minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra constituiria uma renda inalienável, destinada: 1º a manter o estabelecimento; 2º a assegurar uma existência a quem me suceder e aos que o ajudarem em sua missão; 3º a prover às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de auxílios eventuais, como sou obrigado a fazer, já que a maior parte de seus recursos decorrem do meu trabalho, que terá termo.

Eis o que eu faria; mas se esta satisfação não me é dada, sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo oportuno. Eis por que absolutamente não me inquieto com isto e só me ocupo com o que, para mim, é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.


III.


DOS CISMAS.

Uma questão que logo se apresenta é a dos cismas que poderão nascer no seio da Doutrina. Estará preservado deles o Espiritismo?

Não, certamente, porque terá, sobretudo no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, refratárias a se amalgamarem com as ideias dos demais; e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, se empenham por ligar seus nomes a uma inovação qualquer; dos que criam novidades só para poderem dizer que não pensam ou agem como os outros; ou porque o seu amor-próprio sofre, por não ocuparem senão uma posição secundária; ou, enfim, porque veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar. Mas, como lhes temos dito centenas de vezes: “Quem vos barra o caminho? Quem vos impede de trabalhar por vosso lado? Quem vos proíbe de publicar as vossas obras? A publicidade vos está aberta como a todo o mundo; dai algo de melhor do que o que está, ninguém, a isto se opõe; sede mais apreciados pelo público, e ele vos dará a preferência.”

Se, porém, o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia neutralizar-lhes as consequências e isto é o essencial.

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de' uma teoria racional. Hoje, raros partidários ainda contam esses primitivos sistemas. É este um, fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências se apagarão com a elucidação integral de todas as partes da Doutrina. Mas, haverá sempre os dissidentes, de ânimo prevenido e interessados, por um motivo ou por outro, a constituir bando à parte. Contra a pretensão desses é que cumpre se premunam os demais.

Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. Quando for dito peremptoriamente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém pode pretender que se quis dizer que dois e dois fazem cinco.

Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância.

O segundo ponto está em não se sair do âmbito das ideias práticas. Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.

Se, portanto, uma seita se formar à ilharga do Espiritismo, fundada ou não em seus princípios, de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como já sucedeu a tantas outras, através dos séculos; se suas ideias forem acertadas, mesmo que com relação a um único ponto, a Doutrina, que apenas procura o bem e o verdadeiro onde quer que se encontrem, as assimilará, de sorte que, em vez de ser absorvida, absorverá. Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela os imitará; se fizerem maior bem, ela se esforçará por fazer outro tanto ou mais, se possível; se fizerem mais mal, ela os deixará fazer, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem sobrepuja o mal e o verdadeiro predominará sobre o que é falso. Esta a única luta em que se empenhará.

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da moral espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros; não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo, invariável. Mas, quem poderá lisonjear-se de possuí-la toda? No estado de imperfeição em que se acham os nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdadeiro, em consequência da descoberta de novas leis, e isso tanto na ordem moral, quanto na ordem física. Contra essa eventualidade, a Doutrina nunca deverá estar desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade Em vez de ser uma força, a imobilidade se torna uma causa de fraqueza e de ruína, para quem não acompanha o movimento geral; quebra a unidade, porque os que querem avançar se separam dos que se obstinam em ficar atrás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, cumpre fazê-lo com prudência e evitar ir de cabeça baixa ao encontro dos devaneios da utopia e dos sistemas. É preciso fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Compreende-se que uma doutrina assente sobre tais bases tem que ser realmente forte; ela desafia toda concorrência e neutraliza as pretensões de seus competidores. É para este ponto que os nossos esforços tendem a conduzir a Doutrina Espírita.

Aliás, a experiência já comprovou o acerto desta previsão. Tendo marchado sempre por esse caminho desde a sua origem, a Doutrina avança constantemente, mas sem precipitação, verificando sempre se é sólido o terreno onde pisa e medindo seus passos pelo estado da opinião. Fez como o navegante que não prossegue sem ter na mão a sonda e sem consultar os ventos.


IV.


O CHEFE DO ESPIRITISMO.

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa senda? Quem terá mesmo a força? Quem disporá do tempo e da perseverança necessários para se consagrar ao trabalho incessante que semelhante tarefa exige? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não será de temer que se desvie da sua rota? e que a malevolência, com a qual ainda estará por longo tempo em luta, não procure desfigurar-lhe o espírito? É essa, com efeito, uma questão vital e cuja solução se reveste do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é tão evidente, que já causa inquietação o não ser visto, a surgir no horizonte, o seu condutor. Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar a impulsão, de estimular os zelos, de defender os fracos, de sustentar os ânimos vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de caminhar ao léu. Não somente essa direção é necessária, como também preciso se faz que preencha condições de força e de estabilidade suficientes para afrontar as tempestades.

Os que nenhuma autoridade admitem não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar toda direção, a maioria, os que não se creem infalíveis e não depositam confiança absoluta em suas próprias luzes, se sentem necessitados de um ponto de apoio, de um guia, ainda que apenas para ajudá-los a caminhar com segurança. (Vide a Revista de abril de 1866: O Espiritismo Independente).

Reconhecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados no mundo inteiro? É coisa impraticável. Se se impuser por sua própria autoridade, uns o aceitarão, enquanto que outros o recusarão, e podem surgir vinte pretendentes, levantando bandeira contra bandeira. Fora ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso e ninguém conviria menos do que um ambicioso, por isso mesmo orgulhoso, para chefiar uma doutrina que se baseia na abnegação, no devotamento, no desinteresse, na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, outra coisa não poderia fazer, senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente se daria, se de antemão se não adotassem medidas eficazes a prevenir esse inconveniente.

Admitamos, no entanto, houvesse um homem com todas as qualidades necessárias ao desempenho do seu mandato e que, por uma senda qualquer, chegasse à direção suprema. Os homens se sucedem e não se assemelham; depois de um bom, poderia vir um mau. Com o indivíduo, pode mudar o espírito da direção; sem maus desígnios, pode ele ter modos de ver mais ou menos justos; se entender de fazer que prevaleçam suas ideias pessoais, pode levar a Doutrina a transviar-se, suscitar dissidências e as mesmas dificuldades se renovarão a cada mudança. É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força. Do ponto de vista da organização, é uma criança que mal começa a andar. Insta, pois, sobretudo no princípio, premuni-lo contra os obstáculos do caminho.

Mas, dir-se-á, não virá estar à frente do Espiritismo um dos Espíritos que, segundo foi anunciado, tem que tomar parte na obra da regeneração? É provável; todavia, como esses Espíritos não trarão na fronte um sinal para serem reconhecidos; como não se afirmarão senão por seus atos, e, na maioria, só serão reconhecidos depois de terem morrido, conformemente ao que houverem produzido durante a vida; como, ao demais, não serão perpétuos, mister se torna prever todas as eventualidades.

É sabido que eles terão uma missão multíplice; que serão de todos os graus da escala espiritual e se encontrarão nos diversos ramos da economia [organização] social, onde um exercerá influência a favor das novas ideias, conforme a particularidade da sua posição; que todos, pois, trabalharão pelo ascendente da Doutrina, aqui e ali, uns como chefes de Estado, outros como legistas, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc.; que cada um dará provas de si onde lhe caiba exercer sua atividade, desde o proletário até o soberano, sem que qualquer coisa os distinga do comum dos homens, a não serem suas obras. Se a um deles couber tomar parte na direção, é provável que seja posto providencialmente na posição apropriada a fazê-lo chegar lá pelos meios legais que forem adotados; circunstâncias aparentemente fortuitas até lá o conduzirão, sem que de sua parte haja desígnio premeditado, sem mesmo ter ele consciência de sua missão. (Revista Espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868.)

Em tal caso, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias têm que ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, a só pretensão de ser um messias constituiria a negação dessas qualidades essenciais; provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou tola presunção, em havendo boa-fé, ou insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pseudo-espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou cupidez; outros que alardeiam pretensas revelações com o auxílio das quais procurem salientar-se e fascinar as imaginações por demais crédulas. É também de prever que, sob falsas aparências, indivíduos haja que tentem apoderar-se do leme, com a ideia preconcebida de fazerem soçobrar o navio, desviando-o de sua rota. O navio não soçobrará, mas poderia sofrer prejudiciais atrasos que se devem evitar.

São esses, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo precisa preservar-se. Quanto maior consistência ele adquirir, tanto mais ciladas lhe armarão seus adversários. É, portanto, dever de todos os espíritas sinceros anular as manobras da intriga que se possam urdir, assim nos pequenos, como nos grandes centros. Deverão eles, em primeiro lugar, repudiar, do modo mais absoluto, todo aquele que por si mesmo se apresente qual messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Pelo fruto é que se conhece a árvore; espere-se, pois, que a árvore dê seu fruto, para decidir se ela é boa e veja-se também se os frutos têm sabor. (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XXI, nº 9, “Caracteres do verdadeiro profeta”.)

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer que os candidatos fossem designados pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além de que este meio não obviaria a todos os inconvenientes, apresentaria outros, peculiares a semelhante modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que fora supérfluo lembrar aqui. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos consiste em nos instruir, para que nos melhoremos, porém não em se sobreporem ao nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem ideias, ajudam com seus conselhos, principalmente no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso raciocínio o encargo da execução das coisas materiais, encargo a que não lhes cabe poupar-nos. Em seu mundo eles têm atribuições que não são as da Terra; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições é expor-se às falcatruas dos Espíritos levianos. Contentem-se os homens com o serem assistidos e protegidos por Espíritos bons; não descarreguem, porém, sobre eles, a responsabilidade que incumbe ao encarnado.

Esse meio, aliás, suscitaria maiores embaraços do que se poderia supor, pela dificuldade de fazer-se que todos os grupos participassem de semelhante eleição. Seria uma complicação nas engrenagens e estas tanto menos susceptíveis se mostrarão de desarranjar-se, quanto mais simplificadas forem.

O problema é, pois, o de constituir-se uma direção central, em condições de força e estabilidade, que a ponham ao abrigo de todas as flutuações; que correspondam a todas as necessidades da causa e oponham intransponível barreira às tramas da intriga e da ambição. Tal o objetivo do plano de que vamos dar um rápido esboço.


V.


COMISSÃO CENTRAL.

Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, saídos, no estado de embriões, de uma multidão de focos, se dirigissem para um centro comum, a fim de serem aí examinados e cotejados, de sorte que um só pensamento presidisse à coordenação deles, a fim de ' estabelecer-se a unidade no conjunto e a harmonia entre todas as partes: Se não fosse assim, a Doutrina ter-se-ia assemelhado a esses edifícios híbridos, projetados por vários arquitetos, ou a um mecanismo cujas rodas não se engrenam com precisão umas nas outras.

Já o temos dito, por ser verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina não podia sair, de um único centro, completamente estruturada, da mesma maneira que toda a ciência astronômica não poderia sair, inteiramente constituída, de um único observatório. Qualquer centro que tentasse erguê-la exclusivamente sobre as suas observações faria coisa incompleta e se acharia, com relação a uma infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer cada um a sua doutrina, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo quanto aos fundamentos, difeririam inevitavelmente quanto à forma. Ora, como há muita gente que atenta mais na forma do que na substância, tantas seriam as seitas quantas as formas diferentes. Somente do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais podia resultar a unidade. Por isso é que era necessária a concentração dos trabalhos. (A Gênese, capítulo I, “Caráter da revelação espírita”, nº 51 e seguintes.)

Mas, o que era de vantagem por um certo tempo mais tarde se tornaria inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração se acha concluído, no que concerne às questões fundamentais, que estabelecidos se encontram os princípios gerais da Ciência, a direção, de individual que houve de ser em começo, tem que se tornar coletiva, primeiramente, porque um momento há de vir em que o seu peso excederá as forças de um homem e, em segundo lugar, porque maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos, a cada um dos quais caiba apenas um voto e que nada podem sem o concurso mútuo, do que um só indivíduo, capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será confiada a uma comissão central ou conselho superior permanente — pouco importa o nome — cuja organização e atribuições se definam de maneira a não dar azo ao arbítrio. Essa comissão se comporá, no máximo de doze membros titulares, que deverão, para tal efeito, preencher certas condições indispensáveis, e de igual número de conselheiros. Ela se completará a si mesma, segundo regras igualmente determinadas, de modo a evitar todo favoritismo, à medida que em seu seio se derem vagas por falecimentos ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá o modo por que serão nomeados os doze primeiros.

Cada membro presidirá por sua vez durante um ano, e aquele que preencher esta função será designado por sorteio.

Puramente administrativa será a autoridade do presidente. Ele dirigirá as deliberações da comissão, velará pela execução dos trabalhos e pelo expediente; mas, fora das atribuições que os estatutos constitutivos lhe conferirem, nenhuma decisão poderá tomar sem o concurso da comissão. Portanto, não haverá possibilidade de abusos, nem alimentos para a ambição, nem pretextos para intrigas ou ciúmes, nem supremacia chocante.

A comissão central, ou conselho superior, será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia-geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer por meio da discussão, não será bastante para que haja confusão.

Os congressos serão constituídos por delegados das sociedades particulares, regularmente constituídas, e colocadas sob o patrocínio da comissão por sua adesão e pela conformidade de seus princípios.

Para a comunidade dos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, em suma, de um corpo constituído, representando opinião coletiva, forçosamente terão uma autoridade que jamais teriam, se emanassem de um só indivíduo, que apenas representa uma opinião pessoal. É frequente uma pessoa rejeitar a opinião de outra, por entender que se humilharia, caso se submetesse a essa opinião, e acatar sem dificuldades a de muitos.

Fica bem entendido que aqui se trata de autoridade moral, no que respeita à interpretação e aplicação dos princípios morais da Doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma academia, em matéria de Ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem maior ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, apresenta uma força de resistência e dispõe de meios de ação com que um indivíduo não poderia contar; aquele luta com vantagens infinitamente maiores. Uma individualidade está sujeita a ser atacada e aniquilada; o mesmo já não se dá com uma entidade coletiva.

Há, igualmente, numa entidade coletiva, uma garantia de estabilidade, que não existe, quando tudo recai sobre uma cabeça única. Desde que o indivíduo se ache impedido por uma causa qualquer, tudo fica paralisado. A entidade coletiva, ao contrário, se perpetua incessantemente. Embora perca um ou vários de seus membros, nada periclita.

A dificuldade, dirão, consistirá em reunir, de modo permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que sejam acordes no tocante aos princípios fundamentais. Ora, isso constituirá uma condição absoluta para que sejam admitidas à direção, como para a de todos os que desta hajam de participar. Sobre as questões pendentes de detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto a opinião da maioria é que prevalecerá. Àquele cuja maneira de ver for acertada, não faltarão razões boas com que a justifique. Se algum, contrariado por não conseguir que suas ideias predominem, se retirar, nem por isso deixariam as coisas de seguir o seu curso e motivo não haveria para se lhe deplorar a saída, pois que teria dado prova de uma susceptibilidade orgulhosa, pouco espírita, e que poderia tornar-se origem de perturbações.

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, do momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião. É esta uma questão de minúcia prevista na organização.

Admitamos que entre os membros da comissão haja um irmão falso, um traidor, que os inimigos da causa tenham ganho para si: que logrará ele fazer, não dispondo senão do seu voto nas decisões? Suponhamos que, por impossível, toda a comissão enverede por mau caminho: aí estarão os congressos para reconduzi-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração pertencerá aos congressos, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra a comissão central, por infração do seu mandato, por violação dos princípios estabelecidos, ou por medidas prejudiciais à Doutrina. Por isso é que se apelará da comissão para o congresso, nas circunstâncias em que se julgue que a responsabilidade da primeira está gravemente comprometida.

Sendo os congressos um freio para a comissão, na aprovação deles haure esta última novas forças. É assim que o chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem risco para si próprio, afastar-se do caminho reto.

Quando a comissão estiver organizada, dela faremos parte como simples membro seu, dando-lhe a nossa colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.


[DEPARTAMENTOS DA COMISSÃO CENTRAL.]


Às atribuições gerais da comissão serão anexados, como dependências locais:

1º Uma biblioteca, onde se encontrem reunidas todas as obras que interessem o Espiritismo e que possam ser consultadas no local, ou cedidas para leitura fora;

2º Um museu, onde se achem colecionadas as primeiras obras de arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos a quem a causa muito deva pelo devotamento que tenham demonstrado, os dos homens a quem o Espiritismo renda homenagens, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da Humanidade, grandes gênios missionários do progresso, etc.

3º Um dispensário destinado às consultas médicas gratuitas e ao tratamento médico de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4º Uma caixa de socorros e de previdência, em condições práticas;

5º Um asilo;

6º Uma sociedade de adeptos, que celebre sessões regulares.


VI.


OBRAS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA.

Muitas pessoas lamentam que as obras fundamentais da Doutrina tenham um preço tão elevado para grande número de leitores, e pensam, com razão, que se fossem feitas edições populares a baixo custo, estariam muito mais espalhadas, com o que ganharia a Doutrina.

Estamos completamente de acordo; mas, no estado atual das coisas, as condições em que são editadas não permitem que o sejam de outro modo. Esperamos chegar um dia a esse resultado, com o auxílio de uma nova combinação que se ligue ao plano geral de organização. Mas essa operação não pode ser realizada senão empreendida em vasta escala; só de nossa parte exigiria capitais que não possuímos, e trabalhos materiais que os nossos trabalhos, que reclamam todas as nossas meditações, não nos permitem dar. É por isto que a parte comercial propriamente dita foi negligenciada ou, melhor dizendo, sacrificada ao estabelecimento da parte doutrinária. O que importava, antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da Doutrina.

Em se achando organizado pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que as gerirá e cuidará da publicação delas, pelos meios mais apropriados a popularizá-las. Ela também deverá cuidar de que sejam traduzidas nas principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário que conservasse seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade.

Fomos, por diversas vezes, solicitados a fazê-la circular mais amiúde; por muito lisonjeiro, porém, que nos fosse esse desejo, não pudemos atendê-lo, primeiramente, porque o tempo material não nos consentia esse acréscimo de trabalho e, em segundo lugar, porque importava não perdesse ela o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima do seu termo, as necessidades já não são as mesmas; a Revista se tornará, como as nossas outras obras, feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior vantagem do Espiritismo, sem que, por isso, renunciemos a lhe prestar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, falta-nos publicar vários trabalhos, que não formam a parte menos difícil, nem menos penosa. Conquanto já disponhamos de todos os elementos para o executar e o programa de cada um esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dispensar-lhes mais acurada atenção e ativá-los, se, por instituída a comissão central, estivéssemos livres de outros cuidados que absorvem grande parte do nosso tempo.


VII.


ATRIBUIÇÕES DO COMITÊ.

Serão estas as atribuições principais da comissão central:

1º Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propagação; manter-lhe a unidade, pela conservação da integridade dos princípios firmados; prover ao desenvolvimento de suas consequências;

2º O estudo dos novos princípios, susceptíveis de entrar no corpo da Doutrina;

3º A concentração, em seu poder, de todos os documentos e informações que interessem ao Espiritismo;

4º A correspondência;

5º A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos diversos países;

6º A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo e à qual se poderá juntar outra publicação periódica;

7º O exame e apreciação das obras, dos artigos de jornais e de todos os escritos que interessem à Doutrina; a refutação dos ataques, se aparecerem;

8º A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais favoráveis à sua vulgarização; a elaboração e publicação das de que daremos o plano e que não teremos tempo de executar em nossa atual existência; o apoio de que precisem as publicações que sejam de proveito para a causa;

9º A fundação e conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10º A administração da caixa de socorros, do dispensário e do asilo;

11º A administração dos negócios materiais;

12º A direção das sessões da Sociedade;

13º O ensino oral;

14º As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob o seu patrocínio;

15º A convocação dos congressos e assembleias gerais.


Estas atribuições os membros da comissão as distribuirão entre si, conforme a especialidade de cada um, sendo eles, se for preciso, assistidos por certo número de auxiliares ou de simples empregados.

Em consequência, entre os membros da comissão haverá:

Um secretário-geral para a correspondência e as atas das sessões da comissão;

Um redator-chefe para Revista e as outras publicações;

Um bibliotecário-arquivista, encarregado, além disso, do exame e das apreciações criticas das obras e artigos de jornais;

Um diretor da caixa de socorros, também encarregado da direção do dispensário, das visitas aos doentes e necessitados e de tudo o que se refere à beneficência. Será secundado por uma comissão de beneficência escolhida no seio da Sociedade, e formada de pessoas caridosas de boa vontade;

Um administrador-contador, encarregado dos negócios e dos interesses materiais;

Um diretor especial para os negócios concernentes às publicações;

Oradores para o ensino oral, encarregados, ademais, de visitar as sociedades dos Departamentos e aí dar instruções. Poderão ser tomados entre os membros auxiliares e os adeptos de boa vontade que, para tanto, receberão um mandato especial.

Seja qual for a extensão ulterior dos negócios e do pessoal administrativo, a comissão será sempre limitada ao mesmo número de membros titulares.

Até agora tivemos de nos bastar mais ou menos sozinhos a este programa. Por isso mesmo, algumas de suas partes foram negligenciadas ou apenas puderam ser esboçadas, e as que são mais especialmente da nossa alçada, tiveram que sofrer inevitáveis atrasos, pela necessidade de nos ocupar de tantas coisas, quando o tempo e as forças têm limites e uma só absorveria o tempo de um homem.


VIII.


VIAS E MEIOS.

É de lastimar, sem dúvida, que tenhamos de entrar em considerações de ordem material, para alcançarmos um objetivo todo espiritual. Cumpre, porém, observemos, que a espiritualidade mesma da obra se prende à questão da Humanidade terrena e do seu bem-estar; que já não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e de durável, para a extensão e a consolidação da Doutrina, à qual é preciso fazer produzir os frutos de que é susceptível de dar. Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com um bastão de viagem, sem cogitarem de saber onde pousariam, nem do que comeriam, fora alimentar uma ilusão que bem depressa amarga decepção destruiria. Para alguém fazer qualquer coisa de sério, tem que se submeter às necessidades impostas pelos costumes da época em que vive e essas necessidades são muito diversas da dos tempos da vida patriarcal. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que se apreciem os meios de ação, para não ser forçoso parar a meio do caminho. Apreciemo-los, portanto, uma vez que estamos num século em que é preciso calcular tudo.

São em grande número, como se vê, as atribuições da comissão central, para necessitarem de uma verdadeira administração. Tendo cada um de seus membros funções ativas e assíduas, se apenas a constituíssem homens de boa vontade, os trabalhos seriam prejudicados, porquanto ninguém teria o direito de censurar os negligentes. Para regularidade dos trabalhos e normalidade do expediente, necessário se torna contar com homens de cuja assiduidade se possa estar certo e que não considerem suas funções como simples atos de comprazer. De quanto mais independência eles forem senhores, pelos seus recursos pessoais, tanto menos se deixarão prender por ocupações assíduas; se não dispuserem de tempo, não poderão consagrá-lo àquelas funções. Importa, pois, que sejam retribuídos, assim como o pessoal administrativo. Com isso a Doutrina ganhará em força, em estabilidade, em pontualidade, do mesmo passo que constituirá um meio de prestar serviços a pessoas que dela necessitem.

Ponto essencial, na economia de toda administração previdente, é que sua existência não dependa de produtos eventuais que possam fazer falta, mas de recursos certos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não seja embaraçada. Insta, pois, que as pessoas que forem chamadas a lhe prestar concurso, não se sintam inquietas quanto ao futuro que as aguarde. Ora, a experiência demonstra que se devem considerar essencialmente aleatórios os recursos que apenas tenham por base o produto de cotas ou contribuições, sempre facultativas, quaisquer que sejam os compromissos contraídos, e de cobrança sempre difícil. Assentar despesas permanentes e regulares sobre recursos eventuais, implicaria falta de previdência, que mais tarde se haveria de deplorar. Menos graves são, sem dúvida, as consequências, quando se trate de fundações temporárias, destinadas a durar quanto possam; aqui, porém, é uma questão de futuro. A sorte de uma administração como esta não pode ficar subordinada aos azares de um negócio comercial; precisa ser, desde o seu início, se não tão florescente, pelo menos tão estável quanto o será daqui a um século. Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em tal caso a mais vulgar prudência manda se capitalizem, de forma inalienável, os recursos, à proporção que vão sendo obtidos, a fim de constituir-se uma renda perpétua, a coberto de todas as eventualidades. Regulando a administração a sua despesa pela renda que aufira, não pode a sua existência, em nenhum caso, achar-se comprometida, pois que disporá sempre de meios para funcionar. Pode, no começo, organizar-se em menor escala; o número de membros da comissão poderá ser limitado provisoriamente a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, salvo para proporcionar o desenvolvimento pelo acréscimo dos recursos e das necessidades da causa, considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora membro ativo da comissão central, não pesaremos de forma alguma no seu orçamento, nem por honorários, nem por despesas de viagens, nem por outra causa qualquer. Se nunca a ninguém nada pedimos para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância. Nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parcela dos recursos de que dispuser a comissão será desviada em proveito nosso.

Dar-lhe-emos, ao contrário, a nossa contribuição:

1º Abrindo mão, em seu favor, do que produzam as nossas obras, feitas e por fazer;

2º Doando-lhe valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da Doutrina, e não para aí conquistarmos uma posição da qual não necessitamos. Foi para preparar as vias desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de haver posto a primeira pedra.

Figuremos então que, de um modo ou de outro, a comissão central, em dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe uma renda de 25 a 30.000 francos. Restringindo, em começo, as suas despesas, os recursos de toda espécie de que disponha, em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que será objeto de uma contabilidade rigorosa. Reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda irá aumentar o capital comum. Proporcionalmente, com os recursos desse capital é que a comissão proverá às diversas despesas proveitosas ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais faça dele aplicação pessoal, nem fonte de especulação para qualquer de seus membros: Ao demais, o emprego dos fundos e escrituração serão submetidos à verificação de comissários especiais, designados, para esse efeito, pelos congressos ou assembleias gerais.

A comissão terá por um de seus primeiros cuidados ocupar-se com as publicações, desde que seja possível, sem esperar que o possa fazer com o auxílio das rendas. Os fundos a isso destinados não serão, em realidade, mais que um adiantamento, pois que voltarão à caixa, em virtude da venda das obras, cujo produto reverterá ao capital comum. É um negócio de administração.

Para dar a esta instituição uma existência legal, ao abrigo de toda contestação, dar-lhe, além disso, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se for julgado necessário, por ato autêntico, sob forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos, prorrogável indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se de seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias da comissão, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas ligamos; queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

A criação de uma caixa geral de socorros é impraticável e apresenta sérios inconvenientes, como já o demonstramos em artigo especial. (Revista de julho de 1866). A comissão não deve, pois, tomar um caminho que teria de abandonar ao cabo de pouco tempo, nem empreender coisa alguma que não esteja certa de poder realizar. Ela precisa ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas. Esse o meio de caminhar longo tempo e com segurança. Para isso, cumpre-lhe ficar sempre dentro dos limites do possível.

Essa caixa de socorros não pode e não deve ser mais do que uma instituição local, de ação circunscrita e cuja prudente organização sirva de modelo às do mesmo gênero que as sociedades particulares venham a criar. Pela sua multiplicidade é que elas prestarão serviços eficazes e não pela centralização dos meios de ação.

Será alimentada: 1º pelas parcelas, que se lhe destinem, tiradas da renda da caixa geral do Espiritismo; 2º pelos donativos especiais que lhe forem feitos. Ela capitalizará as somas que receber, de maneira a constituir para si um rendimento. Com essa renda é que prestará os socorros temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações do seu mandato, estipuladas no regulamento da sua constituição.

O projeto de um asilo, na acepção completa do termo, não poderá ter execução logo de começo, pelos capitais que reclamaria semelhante fundação e, ao demais, porque é preciso dar à administração tempo de se firmar e de atuar com regularidade, antes de complicar suas atribuições com empreendimentos que possam malograr-se. Fora imprudência tentar muitas coisas, antes de estar certa de dispor dos meios de execução. É o que facilmente se compreenderá, desde que se pense em todos os pormenores inerentes a estabelecimentos desse gênero. Convém, sem dúvida, alimentar boas intenções, mas, antes de tudo, mister se faz poder realizá-las.


IX.


CONCLUSÃO.

Tais são as bases principais da organização que nos propomos dar ao Espiritismo, se as circunstâncias no-lo permitirem. Tivemos que desenvolver os motivos um tanto longamente, a fim de dar a conhecer o seu espírito. Os detalhes serão objeto de uma regulamentação minuciosa, na qual todos os casos serão previstos de maneira a levantar todas as dificuldades de execução.

Consequente com os princípios de tolerância e de respeito a todas as opiniões, que o Espiritismo professa, não pretendemos impor esta organização a ninguém, nem constranger quem quer que seja a se submeter a ela. Nosso objetivo é estabelecer um primeiro laço entre os espíritas, que o desejam desde muito tempo e se lastimam de seu isolamento. Ora, esse laço, sem o qual o Espiritismo, permanecendo no estado de opinião individual, sem coesão, só pode existir com a condição de se religar a um centro por uma comunhão de vistas e de princípios. Esse centro não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, agindo no interesse geral e na qual a autoridade pessoal se apaga.

Se ele não existisse, qual teria sido o ponto de ligação dos espíritas disseminados em diferentes países? Não podendo comunicar suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, eles também espalhados, e muitas vezes sem consistência, teriam ficado isolados e, com isto, sofrido a difusão da Doutrina. Era preciso, pois, um ponto aonde todos chegassem e de onde tudo pudesse irradiar. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar inútil esse centro, faria sentir melhor a sua necessidade, porque a necessidade de aproximação e de formação de um feixe será tanto maior quanto mais considerável for o número de adeptos.

Mas qual será a extensão do círculo de atividades desse centro? É destinado a reger o mundo e a tornar-se o árbitro universal da verdade? Se tivesse essa pretensão, seria compreender mal o espírito do Espiritismo que, por isso mesmo que proclama os princípios do livre-exame e da liberdade de consciência, repudia a ideia de se erigir em autocracia; desde o começo entraria numa senda fatal.

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da Natureza, e não sobre abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira, que os espíritas do mundo inteiro estarão sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder, que deverão esperar a luz de um ponto fixo, para o qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma única nação, governada por um só chefe, regida pelo mesmo código de leis e submetidas aos mesmos costumes. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos hábitos, aos caracteres e aos climas de cada uma.

Assim será com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo inteiro terão princípios comuns, que os ligarão à grande família pelo laço sagrado da fraternidade, mas cuja aplicação poderá variar conforme as regiões, sem que, por isto, seja rompida a unidade fundamental, sem formar seitas dissidentes que se atirem a pedra e o anátema, o que seria antiespírita em alto grau. Poderão, pois, se formar, e inevitavelmente se formarão, centros gerais em diferentes países, sem outro laço além da comunhão de crença e a solidariedade moral, sem subordinação de um ao outro, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de impor-se aos espíritas americanos e reciprocamente.

A comparação dos observatórios, que citamos acima, é perfeitamente justa. Há observatórios em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, estão baseados em princípios gerais e reconhecidos da Astronomia, o que, por isso, não os torna tributários uns dos outros; cada um regula seus trabalhos como entende; comunicam-se as suas observações, e cada um põe a serviço da Ciência as descobertas de seus confrades. Dar-se-á o mesmo com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão o que tiverem de bom e aplicável aos costumes das regiões onde estiverem estabelecidos, pois o seu objetivo é o bem da Humanidade, e não a satisfação das ambições pessoais. O Espiritismo é uma questão de fundo; prender-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os diversos centros, que estiverem no verdadeiro espírito do Espiritismo, deverão estender-se a mão fraterna e se unirem no combate aos seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.








Dezembro

I. Considerações preliminares. II. Extrato do relatório da Caixa do Espiritismo. — III. Dos cismas. — IV. O chefe do Espiritismo. — V. Comissão central. — Departamentos da Comissão central. — VI. Obras fundamentais da Doutrina. — VII. Atribuições do Comitê. — VIII. Vias e meios. — IX. Conclusão.


I.


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram. Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora se exporem a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos.

Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas.

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá.

Se bem não haja ele dito ainda sua última palavra sobre todos os pontos, aproxima-se do seu complemento e soou a hora de se lhe oferecer uma base forte e durável, susceptível, contudo, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias ulteriores comportem e que ofereça toda a segurança aos que inquiram quem, depois de nós, lhe tomará as rédeas.

A Doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa nas leis da Natureza e porque, melhor do que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações dos homens. Entretanto, a sua difusão e a sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias várias, algumas das quais subordinadas à marcha geral das coisas, outras inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização. É destas que nos vamos ocupar especialmente neste momento.

Conquanto a questão de substância seja preponderante em tudo e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui importância capital; poderia mesmo sobrepujar momentaneamente e suscitar embaraços e atrasos, conforme a maneira por que fosse resolvida.

Houvéramos, pois, feito coisa incompleta e deixado grandes dificuldades para o futuro, se não prevíssemos as que podem surgir. Com o intuito de evitá-las foi que, com o concurso dos bons Espíritos que nos assistem em nossos trabalhos, elaboramos um plano de organização, pondo em jogo a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais se chocaram a maioria das doutrinas que apareceram no mundo. Podendo este plano prestar-se a todos os desenvolvimentos que reserva o futuro, demos, por isto mesmo, a esta constituição a qualificação de transitória.

O plano aqui exposto concebemo-lo há longo tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo, é certo, mas o bastante para mostrar que não é esta, hoje, uma concepção nova e que, trabalhando na parte teórica da obra, não nos descuidávamos do lado prático.

Antes de abordar a fundo a questão, parece-nos útil lembrar algumas passagens do relatório que apresentamos à Sociedade de Paris, no dia 5 de maio de 1865, a propósito da caixa do Espiritismo, e que foi publicado na Revista de junho de 1865. As considerações que ele encerra se ligam diretamente ao nosso assunto, do qual elas são as preliminares indispensáveis.


II.


EXTRATO DO RELATÓRIO DA CAIXA DO ESPIRITISMO, FEITO A SOCIEDADE DE PARIS, EM 5 DE MAIO DE 1865.

Muito se há falado dos proventos que eu retirava de minhas obras. Certamente, nenhuma pessoa séria acredita realmente em meus milhões, a despeito da afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca, tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. (Revista de junho de 1862). Além disso, não obstante o que disse o autor de uma brochura que conheceis, provando, por cálculos hiperbólicos, que o meu orçamento de receita ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porquanto, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários (Revista de junho de 1863), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém, ninguém me deu algo para mim pessoalmente; numa palavra, não vivo a expensas de ninguém, porquanto, das somas que me foram voluntariamente confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito.

As minhas imensas riquezas proviriam, pois, das minhas obras espíritas. Conquanto estas obras tenham alcançado inesperado êxito, basta ter um pouco de familiaridade com os negócios de livraria, para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns centavos por exemplar. Mas, avultado ou mínimo, sendo esse lucro fruto do meu trabalho, ninguém tem o direito de intrometer-se no emprego que lhe dou; ainda mesmo que se elevasse a milhões, ninguém tem nada a ver com isto, desde que a compra de livros, assim como a assinatura da Revista, é facultativa e não se impõe em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade. Falando comercialmente, estou na posição de todo homem que recolhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor, que tanto pode triunfar, quanto fracassar.

Mesmo não tendo, neste particular, nenhuma conta a prestar, creio útil à própria causa a que me devotei, dar algumas explicações.

Antes de mais, direi que minhas obras não são propriedade exclusiva minha, o que me obriga a comprá-las de meu editor e pagá-las como um livreiro, à exceção da Revista; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas dívidas incobráveis e pelas distribuições gratuitas, feitas no interesse da Doutrina, a pessoas que, sem isto, delas estariam privadas. Um cálculo muito fácil prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, é suficiente para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. Somando tudo e feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes; o que faço dela? Isto é o que mais preocupa certa gente.

Quem quer que outrora tenha visto a nossa habitação e a veja hoje poderá atestar que nada mudou na nossa maneira de viver, desde que entrei a ocupar-me com o Espiritismo; é tão simples agora como o era antigamente. Então é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Teria eu, então, a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Creio que meu caráter e meus hábitos jamais permitiram que se fizesse tal suposição. O que pretendem? Desde que isto não me aproveita, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia saberão a cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os fazedores de histórias pouparão a imaginação; hoje eu me limito a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto devo entrar nalguns detalhes íntimos, mas que são necessários, e para os quais vos peço perdão.

Sempre tivemos do que viver, muito modestamente é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo e o de um modesto emprego, que me vi forçado a deixar quando os trabalhos da Doutrina absorveram todo o meu tempo.

Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho; em pouco tempo vi-me arrastado por um movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr de modo algum em evidência e permanecer desconhecido; mas, prontamente ultrapassado, isto não me foi possível: tive de renunciar ao meu gosto pelo insulamento, sob pena de abdicar da obra empreendida e que crescia de dia para dia; foi preciso seguir seu impulso e tomar-lhe as rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, seguramente não fui eu que o procurei, pois é notório que nem a devo à propaganda, nem à camaradagem da imprensa, e que jamais aproveitei de minhas relações para me lançar no mundo, quando isto me teria sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto se desdobrava à minha frente, recuando os seus limites; compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorarem, as dificuldades e os obstáculos redobraram as minhas energias; vi o objetivo e resolvi atingi-lo com a assistência dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas; foi a obra de minha vida: a ela dei todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe meu repouso, minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrecusáveis.

Sem nos afastarmos do nosso gênero de vida, nem por isso essa posição excepcional deixou de nos criar menos necessidades a que só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiriam prover. Seria difícil a outrem imaginar a multiplicidade das despesas que aquela posição acarreta e que, sem ela, eu teria evitado.

Pois bem, senhores! o que me proporcionou suprimento aos meus recursos foi o produto das minhas obras. E o digo com satisfação, pois foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Assim, eu trouxe uma larga cota-parte à caixa do Espiritismo. Os que ajudam a propagação das obras não poderão, pois, dizer que trabalham para me enriquecer, porque o produto da venda de todo livro, de toda assinatura da Revista, redunda em proveito da Doutrina e não do indivíduo.

Mas, prover ao presente não era tudo: importava também pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse auxiliar aquele que me substituísse na grande tarefa que terá de desempenhar Esta fundação, a cujo respeito ainda devo guardar silêncio, se prende à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico, em melhorá-la, uma parte do que ganho. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, e a despeito de minhas economias, duvido muito que meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria destinar. Uma vez, porém, que a sua realização está nos desígnios dos meus guias espirituais, se eu mesmo não o fizer, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. Enquanto aguardo, vou elaborando os projetos no papel.

Longe de mim, senhores, o pensamento de me envaidecer, ainda que de leve, com o que acabo de expor-vos. Foi necessária a pertinácia de certas diatribes, para que eu me decidisse, embora a contragosto, a quebrar o silêncio acerca de alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que à malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por meio de documentos autênticos; mas o tempo dessas explicações ainda não chegou. A única coisa que por enquanto me importava era que ficásseis esclarecidos com relação ao destino dos fundos que a Providência faz que passem pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero mais do que um depositário, até mesmo do que ganho e, com mais forte razão, daquilo que me é confiado.

Alguém me perguntava certo dia, sem curiosidade, é claro, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que houvera sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isso seria inútil, pois os nossos adversários se encarregaram de custeá-la. Não me pondo então à disposição grandes recursos, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo só devia seus triunfos à sua própria força.

Hoje, que o horizonte se ampliou, sobretudo que o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de ordem completamente diversa. Um capital como o que supondes receberia um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes, que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte se destinaria a converter a minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra constituiria uma renda inalienável, destinada: 1º a manter o estabelecimento; 2º a assegurar uma existência a quem me suceder e aos que o ajudarem em sua missão; 3º a prover às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de auxílios eventuais, como sou obrigado a fazer, já que a maior parte de seus recursos decorrem do meu trabalho, que terá termo.

Eis o que eu faria; mas se esta satisfação não me é dada, sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo oportuno. Eis por que absolutamente não me inquieto com isto e só me ocupo com o que, para mim, é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.


III.


DOS CISMAS.

Uma questão que logo se apresenta é a dos cismas que poderão nascer no seio da Doutrina. Estará preservado deles o Espiritismo?

Não, certamente, porque terá, sobretudo no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, refratárias a se amalgamarem com as ideias dos demais; e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, se empenham por ligar seus nomes a uma inovação qualquer; dos que criam novidades só para poderem dizer que não pensam ou agem como os outros; ou porque o seu amor-próprio sofre, por não ocuparem senão uma posição secundária; ou, enfim, porque veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar. Mas, como lhes temos dito centenas de vezes: “Quem vos barra o caminho? Quem vos impede de trabalhar por vosso lado? Quem vos proíbe de publicar as vossas obras? A publicidade vos está aberta como a todo o mundo; dai algo de melhor do que o que está, ninguém, a isto se opõe; sede mais apreciados pelo público, e ele vos dará a preferência.”

Se, porém, o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia neutralizar-lhes as consequências e isto é o essencial.

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de' uma teoria racional. Hoje, raros partidários ainda contam esses primitivos sistemas. É este um, fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências se apagarão com a elucidação integral de todas as partes da Doutrina. Mas, haverá sempre os dissidentes, de ânimo prevenido e interessados, por um motivo ou por outro, a constituir bando à parte. Contra a pretensão desses é que cumpre se premunam os demais.

Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. Quando for dito peremptoriamente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém pode pretender que se quis dizer que dois e dois fazem cinco.

Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância.

O segundo ponto está em não se sair do âmbito das ideias práticas. Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.

Se, portanto, uma seita se formar à ilharga do Espiritismo, fundada ou não em seus princípios, de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como já sucedeu a tantas outras, através dos séculos; se suas ideias forem acertadas, mesmo que com relação a um único ponto, a Doutrina, que apenas procura o bem e o verdadeiro onde quer que se encontrem, as assimilará, de sorte que, em vez de ser absorvida, absorverá. Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela os imitará; se fizerem maior bem, ela se esforçará por fazer outro tanto ou mais, se possível; se fizerem mais mal, ela os deixará fazer, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem sobrepuja o mal e o verdadeiro predominará sobre o que é falso. Esta a única luta em que se empenhará.

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da moral espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros; não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo, invariável. Mas, quem poderá lisonjear-se de possuí-la toda? No estado de imperfeição em que se acham os nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdadeiro, em consequência da descoberta de novas leis, e isso tanto na ordem moral, quanto na ordem física. Contra essa eventualidade, a Doutrina nunca deverá estar desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade Em vez de ser uma força, a imobilidade se torna uma causa de fraqueza e de ruína, para quem não acompanha o movimento geral; quebra a unidade, porque os que querem avançar se separam dos que se obstinam em ficar atrás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, cumpre fazê-lo com prudência e evitar ir de cabeça baixa ao encontro dos devaneios da utopia e dos sistemas. É preciso fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Compreende-se que uma doutrina assente sobre tais bases tem que ser realmente forte; ela desafia toda concorrência e neutraliza as pretensões de seus competidores. É para este ponto que os nossos esforços tendem a conduzir a Doutrina Espírita.

Aliás, a experiência já comprovou o acerto desta previsão. Tendo marchado sempre por esse caminho desde a sua origem, a Doutrina avança constantemente, mas sem precipitação, verificando sempre se é sólido o terreno onde pisa e medindo seus passos pelo estado da opinião. Fez como o navegante que não prossegue sem ter na mão a sonda e sem consultar os ventos.


IV.


O CHEFE DO ESPIRITISMO.

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa senda? Quem terá mesmo a força? Quem disporá do tempo e da perseverança necessários para se consagrar ao trabalho incessante que semelhante tarefa exige? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não será de temer que se desvie da sua rota? e que a malevolência, com a qual ainda estará por longo tempo em luta, não procure desfigurar-lhe o espírito? É essa, com efeito, uma questão vital e cuja solução se reveste do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é tão evidente, que já causa inquietação o não ser visto, a surgir no horizonte, o seu condutor. Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar a impulsão, de estimular os zelos, de defender os fracos, de sustentar os ânimos vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de caminhar ao léu. Não somente essa direção é necessária, como também preciso se faz que preencha condições de força e de estabilidade suficientes para afrontar as tempestades.

Os que nenhuma autoridade admitem não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar toda direção, a maioria, os que não se creem infalíveis e não depositam confiança absoluta em suas próprias luzes, se sentem necessitados de um ponto de apoio, de um guia, ainda que apenas para ajudá-los a caminhar com segurança. (Vide a Revista de abril de 1866: O Espiritismo Independente).

Reconhecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados no mundo inteiro? É coisa impraticável. Se se impuser por sua própria autoridade, uns o aceitarão, enquanto que outros o recusarão, e podem surgir vinte pretendentes, levantando bandeira contra bandeira. Fora ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso e ninguém conviria menos do que um ambicioso, por isso mesmo orgulhoso, para chefiar uma doutrina que se baseia na abnegação, no devotamento, no desinteresse, na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, outra coisa não poderia fazer, senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente se daria, se de antemão se não adotassem medidas eficazes a prevenir esse inconveniente.

Admitamos, no entanto, houvesse um homem com todas as qualidades necessárias ao desempenho do seu mandato e que, por uma senda qualquer, chegasse à direção suprema. Os homens se sucedem e não se assemelham; depois de um bom, poderia vir um mau. Com o indivíduo, pode mudar o espírito da direção; sem maus desígnios, pode ele ter modos de ver mais ou menos justos; se entender de fazer que prevaleçam suas ideias pessoais, pode levar a Doutrina a transviar-se, suscitar dissidências e as mesmas dificuldades se renovarão a cada mudança. É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força. Do ponto de vista da organização, é uma criança que mal começa a andar. Insta, pois, sobretudo no princípio, premuni-lo contra os obstáculos do caminho.

Mas, dir-se-á, não virá estar à frente do Espiritismo um dos Espíritos que, segundo foi anunciado, tem que tomar parte na obra da regeneração? É provável; todavia, como esses Espíritos não trarão na fronte um sinal para serem reconhecidos; como não se afirmarão senão por seus atos, e, na maioria, só serão reconhecidos depois de terem morrido, conformemente ao que houverem produzido durante a vida; como, ao demais, não serão perpétuos, mister se torna prever todas as eventualidades.

É sabido que eles terão uma missão multíplice; que serão de todos os graus da escala espiritual e se encontrarão nos diversos ramos da economia [organização] social, onde um exercerá influência a favor das novas ideias, conforme a particularidade da sua posição; que todos, pois, trabalharão pelo ascendente da Doutrina, aqui e ali, uns como chefes de Estado, outros como legistas, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc.; que cada um dará provas de si onde lhe caiba exercer sua atividade, desde o proletário até o soberano, sem que qualquer coisa os distinga do comum dos homens, a não serem suas obras. Se a um deles couber tomar parte na direção, é provável que seja posto providencialmente na posição apropriada a fazê-lo chegar lá pelos meios legais que forem adotados; circunstâncias aparentemente fortuitas até lá o conduzirão, sem que de sua parte haja desígnio premeditado, sem mesmo ter ele consciência de sua missão. (Revista Espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868.)

Em tal caso, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias têm que ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, a só pretensão de ser um messias constituiria a negação dessas qualidades essenciais; provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou tola presunção, em havendo boa-fé, ou insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pseudo-espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou cupidez; outros que alardeiam pretensas revelações com o auxílio das quais procurem salientar-se e fascinar as imaginações por demais crédulas. É também de prever que, sob falsas aparências, indivíduos haja que tentem apoderar-se do leme, com a ideia preconcebida de fazerem soçobrar o navio, desviando-o de sua rota. O navio não soçobrará, mas poderia sofrer prejudiciais atrasos que se devem evitar.

São esses, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo precisa preservar-se. Quanto maior consistência ele adquirir, tanto mais ciladas lhe armarão seus adversários. É, portanto, dever de todos os espíritas sinceros anular as manobras da intriga que se possam urdir, assim nos pequenos, como nos grandes centros. Deverão eles, em primeiro lugar, repudiar, do modo mais absoluto, todo aquele que por si mesmo se apresente qual messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Pelo fruto é que se conhece a árvore; espere-se, pois, que a árvore dê seu fruto, para decidir se ela é boa e veja-se também se os frutos têm sabor. (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XXI, nº 9, “Caracteres do verdadeiro profeta”.)

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer que os candidatos fossem designados pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além de que este meio não obviaria a todos os inconvenientes, apresentaria outros, peculiares a semelhante modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que fora supérfluo lembrar aqui. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos consiste em nos instruir, para que nos melhoremos, porém não em se sobreporem ao nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem ideias, ajudam com seus conselhos, principalmente no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso raciocínio o encargo da execução das coisas materiais, encargo a que não lhes cabe poupar-nos. Em seu mundo eles têm atribuições que não são as da Terra; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições é expor-se às falcatruas dos Espíritos levianos. Contentem-se os homens com o serem assistidos e protegidos por Espíritos bons; não descarreguem, porém, sobre eles, a responsabilidade que incumbe ao encarnado.

Esse meio, aliás, suscitaria maiores embaraços do que se poderia supor, pela dificuldade de fazer-se que todos os grupos participassem de semelhante eleição. Seria uma complicação nas engrenagens e estas tanto menos susceptíveis se mostrarão de desarranjar-se, quanto mais simplificadas forem.

O problema é, pois, o de constituir-se uma direção central, em condições de força e estabilidade, que a ponham ao abrigo de todas as flutuações; que correspondam a todas as necessidades da causa e oponham intransponível barreira às tramas da intriga e da ambição. Tal o objetivo do plano de que vamos dar um rápido esboço.


V.


COMISSÃO CENTRAL.

Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, saídos, no estado de embriões, de uma multidão de focos, se dirigissem para um centro comum, a fim de serem aí examinados e cotejados, de sorte que um só pensamento presidisse à coordenação deles, a fim de ' estabelecer-se a unidade no conjunto e a harmonia entre todas as partes: Se não fosse assim, a Doutrina ter-se-ia assemelhado a esses edifícios híbridos, projetados por vários arquitetos, ou a um mecanismo cujas rodas não se engrenam com precisão umas nas outras.

Já o temos dito, por ser verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina não podia sair, de um único centro, completamente estruturada, da mesma maneira que toda a ciência astronômica não poderia sair, inteiramente constituída, de um único observatório. Qualquer centro que tentasse erguê-la exclusivamente sobre as suas observações faria coisa incompleta e se acharia, com relação a uma infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer cada um a sua doutrina, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo quanto aos fundamentos, difeririam inevitavelmente quanto à forma. Ora, como há muita gente que atenta mais na forma do que na substância, tantas seriam as seitas quantas as formas diferentes. Somente do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais podia resultar a unidade. Por isso é que era necessária a concentração dos trabalhos. (A Gênese, capítulo I, “Caráter da revelação espírita”, nº 51 e seguintes.)

Mas, o que era de vantagem por um certo tempo mais tarde se tornaria inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração se acha concluído, no que concerne às questões fundamentais, que estabelecidos se encontram os princípios gerais da Ciência, a direção, de individual que houve de ser em começo, tem que se tornar coletiva, primeiramente, porque um momento há de vir em que o seu peso excederá as forças de um homem e, em segundo lugar, porque maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos, a cada um dos quais caiba apenas um voto e que nada podem sem o concurso mútuo, do que um só indivíduo, capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será confiada a uma comissão central ou conselho superior permanente — pouco importa o nome — cuja organização e atribuições se definam de maneira a não dar azo ao arbítrio. Essa comissão se comporá, no máximo de doze membros titulares, que deverão, para tal efeito, preencher certas condições indispensáveis, e de igual número de conselheiros. Ela se completará a si mesma, segundo regras igualmente determinadas, de modo a evitar todo favoritismo, à medida que em seu seio se derem vagas por falecimentos ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá o modo por que serão nomeados os doze primeiros.

Cada membro presidirá por sua vez durante um ano, e aquele que preencher esta função será designado por sorteio.

Puramente administrativa será a autoridade do presidente. Ele dirigirá as deliberações da comissão, velará pela execução dos trabalhos e pelo expediente; mas, fora das atribuições que os estatutos constitutivos lhe conferirem, nenhuma decisão poderá tomar sem o concurso da comissão. Portanto, não haverá possibilidade de abusos, nem alimentos para a ambição, nem pretextos para intrigas ou ciúmes, nem supremacia chocante.

A comissão central, ou conselho superior, será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia-geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer por meio da discussão, não será bastante para que haja confusão.

Os congressos serão constituídos por delegados das sociedades particulares, regularmente constituídas, e colocadas sob o patrocínio da comissão por sua adesão e pela conformidade de seus princípios.

Para a comunidade dos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, em suma, de um corpo constituído, representando opinião coletiva, forçosamente terão uma autoridade que jamais teriam, se emanassem de um só indivíduo, que apenas representa uma opinião pessoal. É frequente uma pessoa rejeitar a opinião de outra, por entender que se humilharia, caso se submetesse a essa opinião, e acatar sem dificuldades a de muitos.

Fica bem entendido que aqui se trata de autoridade moral, no que respeita à interpretação e aplicação dos princípios morais da Doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma academia, em matéria de Ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem maior ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, apresenta uma força de resistência e dispõe de meios de ação com que um indivíduo não poderia contar; aquele luta com vantagens infinitamente maiores. Uma individualidade está sujeita a ser atacada e aniquilada; o mesmo já não se dá com uma entidade coletiva.

Há, igualmente, numa entidade coletiva, uma garantia de estabilidade, que não existe, quando tudo recai sobre uma cabeça única. Desde que o indivíduo se ache impedido por uma causa qualquer, tudo fica paralisado. A entidade coletiva, ao contrário, se perpetua incessantemente. Embora perca um ou vários de seus membros, nada periclita.

A dificuldade, dirão, consistirá em reunir, de modo permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que sejam acordes no tocante aos princípios fundamentais. Ora, isso constituirá uma condição absoluta para que sejam admitidas à direção, como para a de todos os que desta hajam de participar. Sobre as questões pendentes de detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto a opinião da maioria é que prevalecerá. Àquele cuja maneira de ver for acertada, não faltarão razões boas com que a justifique. Se algum, contrariado por não conseguir que suas ideias predominem, se retirar, nem por isso deixariam as coisas de seguir o seu curso e motivo não haveria para se lhe deplorar a saída, pois que teria dado prova de uma susceptibilidade orgulhosa, pouco espírita, e que poderia tornar-se origem de perturbações.

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, do momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião. É esta uma questão de minúcia prevista na organização.

Admitamos que entre os membros da comissão haja um irmão falso, um traidor, que os inimigos da causa tenham ganho para si: que logrará ele fazer, não dispondo senão do seu voto nas decisões? Suponhamos que, por impossível, toda a comissão enverede por mau caminho: aí estarão os congressos para reconduzi-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração pertencerá aos congressos, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra a comissão central, por infração do seu mandato, por violação dos princípios estabelecidos, ou por medidas prejudiciais à Doutrina. Por isso é que se apelará da comissão para o congresso, nas circunstâncias em que se julgue que a responsabilidade da primeira está gravemente comprometida.

Sendo os congressos um freio para a comissão, na aprovação deles haure esta última novas forças. É assim que o chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem risco para si próprio, afastar-se do caminho reto.

Quando a comissão estiver organizada, dela faremos parte como simples membro seu, dando-lhe a nossa colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.


[DEPARTAMENTOS DA COMISSÃO CENTRAL.]


Às atribuições gerais da comissão serão anexados, como dependências locais:

1º Uma biblioteca, onde se encontrem reunidas todas as obras que interessem o Espiritismo e que possam ser consultadas no local, ou cedidas para leitura fora;

2º Um museu, onde se achem colecionadas as primeiras obras de arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos a quem a causa muito deva pelo devotamento que tenham demonstrado, os dos homens a quem o Espiritismo renda homenagens, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da Humanidade, grandes gênios missionários do progresso, etc.

3º Um dispensário destinado às consultas médicas gratuitas e ao tratamento médico de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4º Uma caixa de socorros e de previdência, em condições práticas;

5º Um asilo;

6º Uma sociedade de adeptos, que celebre sessões regulares.


VI.


OBRAS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA.

Muitas pessoas lamentam que as obras fundamentais da Doutrina tenham um preço tão elevado para grande número de leitores, e pensam, com razão, que se fossem feitas edições populares a baixo custo, estariam muito mais espalhadas, com o que ganharia a Doutrina.

Estamos completamente de acordo; mas, no estado atual das coisas, as condições em que são editadas não permitem que o sejam de outro modo. Esperamos chegar um dia a esse resultado, com o auxílio de uma nova combinação que se ligue ao plano geral de organização. Mas essa operação não pode ser realizada senão empreendida em vasta escala; só de nossa parte exigiria capitais que não possuímos, e trabalhos materiais que os nossos trabalhos, que reclamam todas as nossas meditações, não nos permitem dar. É por isto que a parte comercial propriamente dita foi negligenciada ou, melhor dizendo, sacrificada ao estabelecimento da parte doutrinária. O que importava, antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da Doutrina.

Em se achando organizado pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que as gerirá e cuidará da publicação delas, pelos meios mais apropriados a popularizá-las. Ela também deverá cuidar de que sejam traduzidas nas principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário que conservasse seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade.

Fomos, por diversas vezes, solicitados a fazê-la circular mais amiúde; por muito lisonjeiro, porém, que nos fosse esse desejo, não pudemos atendê-lo, primeiramente, porque o tempo material não nos consentia esse acréscimo de trabalho e, em segundo lugar, porque importava não perdesse ela o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima do seu termo, as necessidades já não são as mesmas; a Revista se tornará, como as nossas outras obras, feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior vantagem do Espiritismo, sem que, por isso, renunciemos a lhe prestar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, falta-nos publicar vários trabalhos, que não formam a parte menos difícil, nem menos penosa. Conquanto já disponhamos de todos os elementos para o executar e o programa de cada um esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dispensar-lhes mais acurada atenção e ativá-los, se, por instituída a comissão central, estivéssemos livres de outros cuidados que absorvem grande parte do nosso tempo.


VII.


ATRIBUIÇÕES DO COMITÊ.

Serão estas as atribuições principais da comissão central:

1º Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propagação; manter-lhe a unidade, pela conservação da integridade dos princípios firmados; prover ao desenvolvimento de suas consequências;

2º O estudo dos novos princípios, susceptíveis de entrar no corpo da Doutrina;

3º A concentração, em seu poder, de todos os documentos e informações que interessem ao Espiritismo;

4º A correspondência;

5º A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos diversos países;

6º A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo e à qual se poderá juntar outra publicação periódica;

7º O exame e apreciação das obras, dos artigos de jornais e de todos os escritos que interessem à Doutrina; a refutação dos ataques, se aparecerem;

8º A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais favoráveis à sua vulgarização; a elaboração e publicação das de que daremos o plano e que não teremos tempo de executar em nossa atual existência; o apoio de que precisem as publicações que sejam de proveito para a causa;

9º A fundação e conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10º A administração da caixa de socorros, do dispensário e do asilo;

11º A administração dos negócios materiais;

12º A direção das sessões da Sociedade;

13º O ensino oral;

14º As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob o seu patrocínio;

15º A convocação dos congressos e assembleias gerais.


Estas atribuições os membros da comissão as distribuirão entre si, conforme a especialidade de cada um, sendo eles, se for preciso, assistidos por certo número de auxiliares ou de simples empregados.

Em consequência, entre os membros da comissão haverá:

Um secretário-geral para a correspondência e as atas das sessões da comissão;

Um redator-chefe para Revista e as outras publicações;

Um bibliotecário-arquivista, encarregado, além disso, do exame e das apreciações criticas das obras e artigos de jornais;

Um diretor da caixa de socorros, também encarregado da direção do dispensário, das visitas aos doentes e necessitados e de tudo o que se refere à beneficência. Será secundado por uma comissão de beneficência escolhida no seio da Sociedade, e formada de pessoas caridosas de boa vontade;

Um administrador-contador, encarregado dos negócios e dos interesses materiais;

Um diretor especial para os negócios concernentes às publicações;

Oradores para o ensino oral, encarregados, ademais, de visitar as sociedades dos Departamentos e aí dar instruções. Poderão ser tomados entre os membros auxiliares e os adeptos de boa vontade que, para tanto, receberão um mandato especial.

Seja qual for a extensão ulterior dos negócios e do pessoal administrativo, a comissão será sempre limitada ao mesmo número de membros titulares.

Até agora tivemos de nos bastar mais ou menos sozinhos a este programa. Por isso mesmo, algumas de suas partes foram negligenciadas ou apenas puderam ser esboçadas, e as que são mais especialmente da nossa alçada, tiveram que sofrer inevitáveis atrasos, pela necessidade de nos ocupar de tantas coisas, quando o tempo e as forças têm limites e uma só absorveria o tempo de um homem.


VIII.


VIAS E MEIOS.

É de lastimar, sem dúvida, que tenhamos de entrar em considerações de ordem material, para alcançarmos um objetivo todo espiritual. Cumpre, porém, observemos, que a espiritualidade mesma da obra se prende à questão da Humanidade terrena e do seu bem-estar; que já não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e de durável, para a extensão e a consolidação da Doutrina, à qual é preciso fazer produzir os frutos de que é susceptível de dar. Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com um bastão de viagem, sem cogitarem de saber onde pousariam, nem do que comeriam, fora alimentar uma ilusão que bem depressa amarga decepção destruiria. Para alguém fazer qualquer coisa de sério, tem que se submeter às necessidades impostas pelos costumes da época em que vive e essas necessidades são muito diversas da dos tempos da vida patriarcal. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que se apreciem os meios de ação, para não ser forçoso parar a meio do caminho. Apreciemo-los, portanto, uma vez que estamos num século em que é preciso calcular tudo.

São em grande número, como se vê, as atribuições da comissão central, para necessitarem de uma verdadeira administração. Tendo cada um de seus membros funções ativas e assíduas, se apenas a constituíssem homens de boa vontade, os trabalhos seriam prejudicados, porquanto ninguém teria o direito de censurar os negligentes. Para regularidade dos trabalhos e normalidade do expediente, necessário se torna contar com homens de cuja assiduidade se possa estar certo e que não considerem suas funções como simples atos de comprazer. De quanto mais independência eles forem senhores, pelos seus recursos pessoais, tanto menos se deixarão prender por ocupações assíduas; se não dispuserem de tempo, não poderão consagrá-lo àquelas funções. Importa, pois, que sejam retribuídos, assim como o pessoal administrativo. Com isso a Doutrina ganhará em força, em estabilidade, em pontualidade, do mesmo passo que constituirá um meio de prestar serviços a pessoas que dela necessitem.

Ponto essencial, na economia de toda administração previdente, é que sua existência não dependa de produtos eventuais que possam fazer falta, mas de recursos certos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não seja embaraçada. Insta, pois, que as pessoas que forem chamadas a lhe prestar concurso, não se sintam inquietas quanto ao futuro que as aguarde. Ora, a experiência demonstra que se devem considerar essencialmente aleatórios os recursos que apenas tenham por base o produto de cotas ou contribuições, sempre facultativas, quaisquer que sejam os compromissos contraídos, e de cobrança sempre difícil. Assentar despesas permanentes e regulares sobre recursos eventuais, implicaria falta de previdência, que mais tarde se haveria de deplorar. Menos graves são, sem dúvida, as consequências, quando se trate de fundações temporárias, destinadas a durar quanto possam; aqui, porém, é uma questão de futuro. A sorte de uma administração como esta não pode ficar subordinada aos azares de um negócio comercial; precisa ser, desde o seu início, se não tão florescente, pelo menos tão estável quanto o será daqui a um século. Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em tal caso a mais vulgar prudência manda se capitalizem, de forma inalienável, os recursos, à proporção que vão sendo obtidos, a fim de constituir-se uma renda perpétua, a coberto de todas as eventualidades. Regulando a administração a sua despesa pela renda que aufira, não pode a sua existência, em nenhum caso, achar-se comprometida, pois que disporá sempre de meios para funcionar. Pode, no começo, organizar-se em menor escala; o número de membros da comissão poderá ser limitado provisoriamente a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, salvo para proporcionar o desenvolvimento pelo acréscimo dos recursos e das necessidades da causa, considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora membro ativo da comissão central, não pesaremos de forma alguma no seu orçamento, nem por honorários, nem por despesas de viagens, nem por outra causa qualquer. Se nunca a ninguém nada pedimos para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância. Nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parcela dos recursos de que dispuser a comissão será desviada em proveito nosso.

Dar-lhe-emos, ao contrário, a nossa contribuição:

1º Abrindo mão, em seu favor, do que produzam as nossas obras, feitas e por fazer;

2º Doando-lhe valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da Doutrina, e não para aí conquistarmos uma posição da qual não necessitamos. Foi para preparar as vias desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de haver posto a primeira pedra.

Figuremos então que, de um modo ou de outro, a comissão central, em dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe uma renda de 25 a 30.000 francos. Restringindo, em começo, as suas despesas, os recursos de toda espécie de que disponha, em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que será objeto de uma contabilidade rigorosa. Reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda irá aumentar o capital comum. Proporcionalmente, com os recursos desse capital é que a comissão proverá às diversas despesas proveitosas ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais faça dele aplicação pessoal, nem fonte de especulação para qualquer de seus membros: Ao demais, o emprego dos fundos e escrituração serão submetidos à verificação de comissários especiais, designados, para esse efeito, pelos congressos ou assembleias gerais.

A comissão terá por um de seus primeiros cuidados ocupar-se com as publicações, desde que seja possível, sem esperar que o possa fazer com o auxílio das rendas. Os fundos a isso destinados não serão, em realidade, mais que um adiantamento, pois que voltarão à caixa, em virtude da venda das obras, cujo produto reverterá ao capital comum. É um negócio de administração.

Para dar a esta instituição uma existência legal, ao abrigo de toda contestação, dar-lhe, além disso, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se for julgado necessário, por ato autêntico, sob forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos, prorrogável indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se de seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias da comissão, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas ligamos; queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

A criação de uma caixa geral de socorros é impraticável e apresenta sérios inconvenientes, como já o demonstramos em artigo especial. (Revista de julho de 1866). A comissão não deve, pois, tomar um caminho que teria de abandonar ao cabo de pouco tempo, nem empreender coisa alguma que não esteja certa de poder realizar. Ela precisa ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas. Esse o meio de caminhar longo tempo e com segurança. Para isso, cumpre-lhe ficar sempre dentro dos limites do possível.

Essa caixa de socorros não pode e não deve ser mais do que uma instituição local, de ação circunscrita e cuja prudente organização sirva de modelo às do mesmo gênero que as sociedades particulares venham a criar. Pela sua multiplicidade é que elas prestarão serviços eficazes e não pela centralização dos meios de ação.

Será alimentada: 1º pelas parcelas, que se lhe destinem, tiradas da renda da caixa geral do Espiritismo; 2º pelos donativos especiais que lhe forem feitos. Ela capitalizará as somas que receber, de maneira a constituir para si um rendimento. Com essa renda é que prestará os socorros temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações do seu mandato, estipuladas no regulamento da sua constituição.

O projeto de um asilo, na acepção completa do termo, não poderá ter execução logo de começo, pelos capitais que reclamaria semelhante fundação e, ao demais, porque é preciso dar à administração tempo de se firmar e de atuar com regularidade, antes de complicar suas atribuições com empreendimentos que possam malograr-se. Fora imprudência tentar muitas coisas, antes de estar certa de dispor dos meios de execução. É o que facilmente se compreenderá, desde que se pense em todos os pormenores inerentes a estabelecimentos desse gênero. Convém, sem dúvida, alimentar boas intenções, mas, antes de tudo, mister se faz poder realizá-las.


IX.


CONCLUSÃO.

Tais são as bases principais da organização que nos propomos dar ao Espiritismo, se as circunstâncias no-lo permitirem. Tivemos que desenvolver os motivos um tanto longamente, a fim de dar a conhecer o seu espírito. Os detalhes serão objeto de uma regulamentação minuciosa, na qual todos os casos serão previstos de maneira a levantar todas as dificuldades de execução.

Consequente com os princípios de tolerância e de respeito a todas as opiniões, que o Espiritismo professa, não pretendemos impor esta organização a ninguém, nem constranger quem quer que seja a se submeter a ela. Nosso objetivo é estabelecer um primeiro laço entre os espíritas, que o desejam desde muito tempo e se lastimam de seu isolamento. Ora, esse laço, sem o qual o Espiritismo, permanecendo no estado de opinião individual, sem coesão, só pode existir com a condição de se religar a um centro por uma comunhão de vistas e de princípios. Esse centro não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, agindo no interesse geral e na qual a autoridade pessoal se apaga.

Se ele não existisse, qual teria sido o ponto de ligação dos espíritas disseminados em diferentes países? Não podendo comunicar suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, eles também espalhados, e muitas vezes sem consistência, teriam ficado isolados e, com isto, sofrido a difusão da Doutrina. Era preciso, pois, um ponto aonde todos chegassem e de onde tudo pudesse irradiar. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar inútil esse centro, faria sentir melhor a sua necessidade, porque a necessidade de aproximação e de formação de um feixe será tanto maior quanto mais considerável for o número de adeptos.

Mas qual será a extensão do círculo de atividades desse centro? É destinado a reger o mundo e a tornar-se o árbitro universal da verdade? Se tivesse essa pretensão, seria compreender mal o espírito do Espiritismo que, por isso mesmo que proclama os princípios do livre-exame e da liberdade de consciência, repudia a ideia de se erigir em autocracia; desde o começo entraria numa senda fatal.

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da Natureza, e não sobre abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira, que os espíritas do mundo inteiro estarão sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder, que deverão esperar a luz de um ponto fixo, para o qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma única nação, governada por um só chefe, regida pelo mesmo código de leis e submetidas aos mesmos costumes. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos hábitos, aos caracteres e aos climas de cada uma.

Assim será com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo inteiro terão princípios comuns, que os ligarão à grande família pelo laço sagrado da fraternidade, mas cuja aplicação poderá variar conforme as regiões, sem que, por isto, seja rompida a unidade fundamental, sem formar seitas dissidentes que se atirem a pedra e o anátema, o que seria antiespírita em alto grau. Poderão, pois, se formar, e inevitavelmente se formarão, centros gerais em diferentes países, sem outro laço além da comunhão de crença e a solidariedade moral, sem subordinação de um ao outro, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de impor-se aos espíritas americanos e reciprocamente.

A comparação dos observatórios, que citamos acima, é perfeitamente justa. Há observatórios em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, estão baseados em princípios gerais e reconhecidos da Astronomia, o que, por isso, não os torna tributários uns dos outros; cada um regula seus trabalhos como entende; comunicam-se as suas observações, e cada um põe a serviço da Ciência as descobertas de seus confrades. Dar-se-á o mesmo com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão o que tiverem de bom e aplicável aos costumes das regiões onde estiverem estabelecidos, pois o seu objetivo é o bem da Humanidade, e não a satisfação das ambições pessoais. O Espiritismo é uma questão de fundo; prender-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os diversos centros, que estiverem no verdadeiro espírito do Espiritismo, deverão estender-se a mão fraterna e se unirem no combate aos seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.








Dezembro

I. Considerações preliminares. II. Extrato do relatório da Caixa do Espiritismo. — III. Dos cismas. — IV. O chefe do Espiritismo. — V. Comissão central. — Departamentos da Comissão central. — VI. Obras fundamentais da Doutrina. — VII. Atribuições do Comitê. — VIII. Vias e meios. — IX. Conclusão.


I.


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram. Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora se exporem a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos.

Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas.

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá.

Se bem não haja ele dito ainda sua última palavra sobre todos os pontos, aproxima-se do seu complemento e soou a hora de se lhe oferecer uma base forte e durável, susceptível, contudo, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias ulteriores comportem e que ofereça toda a segurança aos que inquiram quem, depois de nós, lhe tomará as rédeas.

A Doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa nas leis da Natureza e porque, melhor do que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações dos homens. Entretanto, a sua difusão e a sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias várias, algumas das quais subordinadas à marcha geral das coisas, outras inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização. É destas que nos vamos ocupar especialmente neste momento.

Conquanto a questão de substância seja preponderante em tudo e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui importância capital; poderia mesmo sobrepujar momentaneamente e suscitar embaraços e atrasos, conforme a maneira por que fosse resolvida.

Houvéramos, pois, feito coisa incompleta e deixado grandes dificuldades para o futuro, se não prevíssemos as que podem surgir. Com o intuito de evitá-las foi que, com o concurso dos bons Espíritos que nos assistem em nossos trabalhos, elaboramos um plano de organização, pondo em jogo a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais se chocaram a maioria das doutrinas que apareceram no mundo. Podendo este plano prestar-se a todos os desenvolvimentos que reserva o futuro, demos, por isto mesmo, a esta constituição a qualificação de transitória.

O plano aqui exposto concebemo-lo há longo tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo, é certo, mas o bastante para mostrar que não é esta, hoje, uma concepção nova e que, trabalhando na parte teórica da obra, não nos descuidávamos do lado prático.

Antes de abordar a fundo a questão, parece-nos útil lembrar algumas passagens do relatório que apresentamos à Sociedade de Paris, no dia 5 de maio de 1865, a propósito da caixa do Espiritismo, e que foi publicado na Revista de junho de 1865. As considerações que ele encerra se ligam diretamente ao nosso assunto, do qual elas são as preliminares indispensáveis.


II.


EXTRATO DO RELATÓRIO DA CAIXA DO ESPIRITISMO, FEITO A SOCIEDADE DE PARIS, EM 5 DE MAIO DE 1865.

Muito se há falado dos proventos que eu retirava de minhas obras. Certamente, nenhuma pessoa séria acredita realmente em meus milhões, a despeito da afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca, tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. (Revista de junho de 1862). Além disso, não obstante o que disse o autor de uma brochura que conheceis, provando, por cálculos hiperbólicos, que o meu orçamento de receita ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porquanto, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários (Revista de junho de 1863), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém, ninguém me deu algo para mim pessoalmente; numa palavra, não vivo a expensas de ninguém, porquanto, das somas que me foram voluntariamente confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito.

As minhas imensas riquezas proviriam, pois, das minhas obras espíritas. Conquanto estas obras tenham alcançado inesperado êxito, basta ter um pouco de familiaridade com os negócios de livraria, para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns centavos por exemplar. Mas, avultado ou mínimo, sendo esse lucro fruto do meu trabalho, ninguém tem o direito de intrometer-se no emprego que lhe dou; ainda mesmo que se elevasse a milhões, ninguém tem nada a ver com isto, desde que a compra de livros, assim como a assinatura da Revista, é facultativa e não se impõe em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade. Falando comercialmente, estou na posição de todo homem que recolhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor, que tanto pode triunfar, quanto fracassar.

Mesmo não tendo, neste particular, nenhuma conta a prestar, creio útil à própria causa a que me devotei, dar algumas explicações.

Antes de mais, direi que minhas obras não são propriedade exclusiva minha, o que me obriga a comprá-las de meu editor e pagá-las como um livreiro, à exceção da Revista; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas dívidas incobráveis e pelas distribuições gratuitas, feitas no interesse da Doutrina, a pessoas que, sem isto, delas estariam privadas. Um cálculo muito fácil prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, é suficiente para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. Somando tudo e feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes; o que faço dela? Isto é o que mais preocupa certa gente.

Quem quer que outrora tenha visto a nossa habitação e a veja hoje poderá atestar que nada mudou na nossa maneira de viver, desde que entrei a ocupar-me com o Espiritismo; é tão simples agora como o era antigamente. Então é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Teria eu, então, a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Creio que meu caráter e meus hábitos jamais permitiram que se fizesse tal suposição. O que pretendem? Desde que isto não me aproveita, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia saberão a cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os fazedores de histórias pouparão a imaginação; hoje eu me limito a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto devo entrar nalguns detalhes íntimos, mas que são necessários, e para os quais vos peço perdão.

Sempre tivemos do que viver, muito modestamente é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo e o de um modesto emprego, que me vi forçado a deixar quando os trabalhos da Doutrina absorveram todo o meu tempo.

Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho; em pouco tempo vi-me arrastado por um movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr de modo algum em evidência e permanecer desconhecido; mas, prontamente ultrapassado, isto não me foi possível: tive de renunciar ao meu gosto pelo insulamento, sob pena de abdicar da obra empreendida e que crescia de dia para dia; foi preciso seguir seu impulso e tomar-lhe as rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, seguramente não fui eu que o procurei, pois é notório que nem a devo à propaganda, nem à camaradagem da imprensa, e que jamais aproveitei de minhas relações para me lançar no mundo, quando isto me teria sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto se desdobrava à minha frente, recuando os seus limites; compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorarem, as dificuldades e os obstáculos redobraram as minhas energias; vi o objetivo e resolvi atingi-lo com a assistência dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas; foi a obra de minha vida: a ela dei todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe meu repouso, minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrecusáveis.

Sem nos afastarmos do nosso gênero de vida, nem por isso essa posição excepcional deixou de nos criar menos necessidades a que só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiriam prover. Seria difícil a outrem imaginar a multiplicidade das despesas que aquela posição acarreta e que, sem ela, eu teria evitado.

Pois bem, senhores! o que me proporcionou suprimento aos meus recursos foi o produto das minhas obras. E o digo com satisfação, pois foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Assim, eu trouxe uma larga cota-parte à caixa do Espiritismo. Os que ajudam a propagação das obras não poderão, pois, dizer que trabalham para me enriquecer, porque o produto da venda de todo livro, de toda assinatura da Revista, redunda em proveito da Doutrina e não do indivíduo.

Mas, prover ao presente não era tudo: importava também pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse auxiliar aquele que me substituísse na grande tarefa que terá de desempenhar Esta fundação, a cujo respeito ainda devo guardar silêncio, se prende à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico, em melhorá-la, uma parte do que ganho. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, e a despeito de minhas economias, duvido muito que meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria destinar. Uma vez, porém, que a sua realização está nos desígnios dos meus guias espirituais, se eu mesmo não o fizer, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. Enquanto aguardo, vou elaborando os projetos no papel.

Longe de mim, senhores, o pensamento de me envaidecer, ainda que de leve, com o que acabo de expor-vos. Foi necessária a pertinácia de certas diatribes, para que eu me decidisse, embora a contragosto, a quebrar o silêncio acerca de alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que à malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por meio de documentos autênticos; mas o tempo dessas explicações ainda não chegou. A única coisa que por enquanto me importava era que ficásseis esclarecidos com relação ao destino dos fundos que a Providência faz que passem pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero mais do que um depositário, até mesmo do que ganho e, com mais forte razão, daquilo que me é confiado.

Alguém me perguntava certo dia, sem curiosidade, é claro, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que houvera sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isso seria inútil, pois os nossos adversários se encarregaram de custeá-la. Não me pondo então à disposição grandes recursos, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo só devia seus triunfos à sua própria força.

Hoje, que o horizonte se ampliou, sobretudo que o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de ordem completamente diversa. Um capital como o que supondes receberia um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes, que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte se destinaria a converter a minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra constituiria uma renda inalienável, destinada: 1º a manter o estabelecimento; 2º a assegurar uma existência a quem me suceder e aos que o ajudarem em sua missão; 3º a prover às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de auxílios eventuais, como sou obrigado a fazer, já que a maior parte de seus recursos decorrem do meu trabalho, que terá termo.

Eis o que eu faria; mas se esta satisfação não me é dada, sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo oportuno. Eis por que absolutamente não me inquieto com isto e só me ocupo com o que, para mim, é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.


III.


DOS CISMAS.

Uma questão que logo se apresenta é a dos cismas que poderão nascer no seio da Doutrina. Estará preservado deles o Espiritismo?

Não, certamente, porque terá, sobretudo no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, refratárias a se amalgamarem com as ideias dos demais; e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, se empenham por ligar seus nomes a uma inovação qualquer; dos que criam novidades só para poderem dizer que não pensam ou agem como os outros; ou porque o seu amor-próprio sofre, por não ocuparem senão uma posição secundária; ou, enfim, porque veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar. Mas, como lhes temos dito centenas de vezes: “Quem vos barra o caminho? Quem vos impede de trabalhar por vosso lado? Quem vos proíbe de publicar as vossas obras? A publicidade vos está aberta como a todo o mundo; dai algo de melhor do que o que está, ninguém, a isto se opõe; sede mais apreciados pelo público, e ele vos dará a preferência.”

Se, porém, o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia neutralizar-lhes as consequências e isto é o essencial.

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de' uma teoria racional. Hoje, raros partidários ainda contam esses primitivos sistemas. É este um, fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências se apagarão com a elucidação integral de todas as partes da Doutrina. Mas, haverá sempre os dissidentes, de ânimo prevenido e interessados, por um motivo ou por outro, a constituir bando à parte. Contra a pretensão desses é que cumpre se premunam os demais.

Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. Quando for dito peremptoriamente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém pode pretender que se quis dizer que dois e dois fazem cinco.

Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância.

O segundo ponto está em não se sair do âmbito das ideias práticas. Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.

Se, portanto, uma seita se formar à ilharga do Espiritismo, fundada ou não em seus princípios, de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como já sucedeu a tantas outras, através dos séculos; se suas ideias forem acertadas, mesmo que com relação a um único ponto, a Doutrina, que apenas procura o bem e o verdadeiro onde quer que se encontrem, as assimilará, de sorte que, em vez de ser absorvida, absorverá. Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela os imitará; se fizerem maior bem, ela se esforçará por fazer outro tanto ou mais, se possível; se fizerem mais mal, ela os deixará fazer, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem sobrepuja o mal e o verdadeiro predominará sobre o que é falso. Esta a única luta em que se empenhará.

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da moral espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros; não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo, invariável. Mas, quem poderá lisonjear-se de possuí-la toda? No estado de imperfeição em que se acham os nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdadeiro, em consequência da descoberta de novas leis, e isso tanto na ordem moral, quanto na ordem física. Contra essa eventualidade, a Doutrina nunca deverá estar desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade Em vez de ser uma força, a imobilidade se torna uma causa de fraqueza e de ruína, para quem não acompanha o movimento geral; quebra a unidade, porque os que querem avançar se separam dos que se obstinam em ficar atrás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, cumpre fazê-lo com prudência e evitar ir de cabeça baixa ao encontro dos devaneios da utopia e dos sistemas. É preciso fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Compreende-se que uma doutrina assente sobre tais bases tem que ser realmente forte; ela desafia toda concorrência e neutraliza as pretensões de seus competidores. É para este ponto que os nossos esforços tendem a conduzir a Doutrina Espírita.

Aliás, a experiência já comprovou o acerto desta previsão. Tendo marchado sempre por esse caminho desde a sua origem, a Doutrina avança constantemente, mas sem precipitação, verificando sempre se é sólido o terreno onde pisa e medindo seus passos pelo estado da opinião. Fez como o navegante que não prossegue sem ter na mão a sonda e sem consultar os ventos.


IV.


O CHEFE DO ESPIRITISMO.

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa senda? Quem terá mesmo a força? Quem disporá do tempo e da perseverança necessários para se consagrar ao trabalho incessante que semelhante tarefa exige? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não será de temer que se desvie da sua rota? e que a malevolência, com a qual ainda estará por longo tempo em luta, não procure desfigurar-lhe o espírito? É essa, com efeito, uma questão vital e cuja solução se reveste do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é tão evidente, que já causa inquietação o não ser visto, a surgir no horizonte, o seu condutor. Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar a impulsão, de estimular os zelos, de defender os fracos, de sustentar os ânimos vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de caminhar ao léu. Não somente essa direção é necessária, como também preciso se faz que preencha condições de força e de estabilidade suficientes para afrontar as tempestades.

Os que nenhuma autoridade admitem não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar toda direção, a maioria, os que não se creem infalíveis e não depositam confiança absoluta em suas próprias luzes, se sentem necessitados de um ponto de apoio, de um guia, ainda que apenas para ajudá-los a caminhar com segurança. (Vide a Revista de abril de 1866: O Espiritismo Independente).

Reconhecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados no mundo inteiro? É coisa impraticável. Se se impuser por sua própria autoridade, uns o aceitarão, enquanto que outros o recusarão, e podem surgir vinte pretendentes, levantando bandeira contra bandeira. Fora ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso e ninguém conviria menos do que um ambicioso, por isso mesmo orgulhoso, para chefiar uma doutrina que se baseia na abnegação, no devotamento, no desinteresse, na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, outra coisa não poderia fazer, senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente se daria, se de antemão se não adotassem medidas eficazes a prevenir esse inconveniente.

Admitamos, no entanto, houvesse um homem com todas as qualidades necessárias ao desempenho do seu mandato e que, por uma senda qualquer, chegasse à direção suprema. Os homens se sucedem e não se assemelham; depois de um bom, poderia vir um mau. Com o indivíduo, pode mudar o espírito da direção; sem maus desígnios, pode ele ter modos de ver mais ou menos justos; se entender de fazer que prevaleçam suas ideias pessoais, pode levar a Doutrina a transviar-se, suscitar dissidências e as mesmas dificuldades se renovarão a cada mudança. É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força. Do ponto de vista da organização, é uma criança que mal começa a andar. Insta, pois, sobretudo no princípio, premuni-lo contra os obstáculos do caminho.

Mas, dir-se-á, não virá estar à frente do Espiritismo um dos Espíritos que, segundo foi anunciado, tem que tomar parte na obra da regeneração? É provável; todavia, como esses Espíritos não trarão na fronte um sinal para serem reconhecidos; como não se afirmarão senão por seus atos, e, na maioria, só serão reconhecidos depois de terem morrido, conformemente ao que houverem produzido durante a vida; como, ao demais, não serão perpétuos, mister se torna prever todas as eventualidades.

É sabido que eles terão uma missão multíplice; que serão de todos os graus da escala espiritual e se encontrarão nos diversos ramos da economia [organização] social, onde um exercerá influência a favor das novas ideias, conforme a particularidade da sua posição; que todos, pois, trabalharão pelo ascendente da Doutrina, aqui e ali, uns como chefes de Estado, outros como legistas, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc.; que cada um dará provas de si onde lhe caiba exercer sua atividade, desde o proletário até o soberano, sem que qualquer coisa os distinga do comum dos homens, a não serem suas obras. Se a um deles couber tomar parte na direção, é provável que seja posto providencialmente na posição apropriada a fazê-lo chegar lá pelos meios legais que forem adotados; circunstâncias aparentemente fortuitas até lá o conduzirão, sem que de sua parte haja desígnio premeditado, sem mesmo ter ele consciência de sua missão. (Revista Espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868.)

Em tal caso, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias têm que ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, a só pretensão de ser um messias constituiria a negação dessas qualidades essenciais; provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou tola presunção, em havendo boa-fé, ou insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pseudo-espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou cupidez; outros que alardeiam pretensas revelações com o auxílio das quais procurem salientar-se e fascinar as imaginações por demais crédulas. É também de prever que, sob falsas aparências, indivíduos haja que tentem apoderar-se do leme, com a ideia preconcebida de fazerem soçobrar o navio, desviando-o de sua rota. O navio não soçobrará, mas poderia sofrer prejudiciais atrasos que se devem evitar.

São esses, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo precisa preservar-se. Quanto maior consistência ele adquirir, tanto mais ciladas lhe armarão seus adversários. É, portanto, dever de todos os espíritas sinceros anular as manobras da intriga que se possam urdir, assim nos pequenos, como nos grandes centros. Deverão eles, em primeiro lugar, repudiar, do modo mais absoluto, todo aquele que por si mesmo se apresente qual messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Pelo fruto é que se conhece a árvore; espere-se, pois, que a árvore dê seu fruto, para decidir se ela é boa e veja-se também se os frutos têm sabor. (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XXI, nº 9, “Caracteres do verdadeiro profeta”.)

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer que os candidatos fossem designados pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além de que este meio não obviaria a todos os inconvenientes, apresentaria outros, peculiares a semelhante modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que fora supérfluo lembrar aqui. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos consiste em nos instruir, para que nos melhoremos, porém não em se sobreporem ao nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem ideias, ajudam com seus conselhos, principalmente no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso raciocínio o encargo da execução das coisas materiais, encargo a que não lhes cabe poupar-nos. Em seu mundo eles têm atribuições que não são as da Terra; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições é expor-se às falcatruas dos Espíritos levianos. Contentem-se os homens com o serem assistidos e protegidos por Espíritos bons; não descarreguem, porém, sobre eles, a responsabilidade que incumbe ao encarnado.

Esse meio, aliás, suscitaria maiores embaraços do que se poderia supor, pela dificuldade de fazer-se que todos os grupos participassem de semelhante eleição. Seria uma complicação nas engrenagens e estas tanto menos susceptíveis se mostrarão de desarranjar-se, quanto mais simplificadas forem.

O problema é, pois, o de constituir-se uma direção central, em condições de força e estabilidade, que a ponham ao abrigo de todas as flutuações; que correspondam a todas as necessidades da causa e oponham intransponível barreira às tramas da intriga e da ambição. Tal o objetivo do plano de que vamos dar um rápido esboço.


V.


COMISSÃO CENTRAL.

Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, saídos, no estado de embriões, de uma multidão de focos, se dirigissem para um centro comum, a fim de serem aí examinados e cotejados, de sorte que um só pensamento presidisse à coordenação deles, a fim de ' estabelecer-se a unidade no conjunto e a harmonia entre todas as partes: Se não fosse assim, a Doutrina ter-se-ia assemelhado a esses edifícios híbridos, projetados por vários arquitetos, ou a um mecanismo cujas rodas não se engrenam com precisão umas nas outras.

Já o temos dito, por ser verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina não podia sair, de um único centro, completamente estruturada, da mesma maneira que toda a ciência astronômica não poderia sair, inteiramente constituída, de um único observatório. Qualquer centro que tentasse erguê-la exclusivamente sobre as suas observações faria coisa incompleta e se acharia, com relação a uma infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer cada um a sua doutrina, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo quanto aos fundamentos, difeririam inevitavelmente quanto à forma. Ora, como há muita gente que atenta mais na forma do que na substância, tantas seriam as seitas quantas as formas diferentes. Somente do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais podia resultar a unidade. Por isso é que era necessária a concentração dos trabalhos. (A Gênese, capítulo I, “Caráter da revelação espírita”, nº 51 e seguintes.)

Mas, o que era de vantagem por um certo tempo mais tarde se tornaria inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração se acha concluído, no que concerne às questões fundamentais, que estabelecidos se encontram os princípios gerais da Ciência, a direção, de individual que houve de ser em começo, tem que se tornar coletiva, primeiramente, porque um momento há de vir em que o seu peso excederá as forças de um homem e, em segundo lugar, porque maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos, a cada um dos quais caiba apenas um voto e que nada podem sem o concurso mútuo, do que um só indivíduo, capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será confiada a uma comissão central ou conselho superior permanente — pouco importa o nome — cuja organização e atribuições se definam de maneira a não dar azo ao arbítrio. Essa comissão se comporá, no máximo de doze membros titulares, que deverão, para tal efeito, preencher certas condições indispensáveis, e de igual número de conselheiros. Ela se completará a si mesma, segundo regras igualmente determinadas, de modo a evitar todo favoritismo, à medida que em seu seio se derem vagas por falecimentos ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá o modo por que serão nomeados os doze primeiros.

Cada membro presidirá por sua vez durante um ano, e aquele que preencher esta função será designado por sorteio.

Puramente administrativa será a autoridade do presidente. Ele dirigirá as deliberações da comissão, velará pela execução dos trabalhos e pelo expediente; mas, fora das atribuições que os estatutos constitutivos lhe conferirem, nenhuma decisão poderá tomar sem o concurso da comissão. Portanto, não haverá possibilidade de abusos, nem alimentos para a ambição, nem pretextos para intrigas ou ciúmes, nem supremacia chocante.

A comissão central, ou conselho superior, será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia-geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer por meio da discussão, não será bastante para que haja confusão.

Os congressos serão constituídos por delegados das sociedades particulares, regularmente constituídas, e colocadas sob o patrocínio da comissão por sua adesão e pela conformidade de seus princípios.

Para a comunidade dos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, em suma, de um corpo constituído, representando opinião coletiva, forçosamente terão uma autoridade que jamais teriam, se emanassem de um só indivíduo, que apenas representa uma opinião pessoal. É frequente uma pessoa rejeitar a opinião de outra, por entender que se humilharia, caso se submetesse a essa opinião, e acatar sem dificuldades a de muitos.

Fica bem entendido que aqui se trata de autoridade moral, no que respeita à interpretação e aplicação dos princípios morais da Doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma academia, em matéria de Ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem maior ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, apresenta uma força de resistência e dispõe de meios de ação com que um indivíduo não poderia contar; aquele luta com vantagens infinitamente maiores. Uma individualidade está sujeita a ser atacada e aniquilada; o mesmo já não se dá com uma entidade coletiva.

Há, igualmente, numa entidade coletiva, uma garantia de estabilidade, que não existe, quando tudo recai sobre uma cabeça única. Desde que o indivíduo se ache impedido por uma causa qualquer, tudo fica paralisado. A entidade coletiva, ao contrário, se perpetua incessantemente. Embora perca um ou vários de seus membros, nada periclita.

A dificuldade, dirão, consistirá em reunir, de modo permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que sejam acordes no tocante aos princípios fundamentais. Ora, isso constituirá uma condição absoluta para que sejam admitidas à direção, como para a de todos os que desta hajam de participar. Sobre as questões pendentes de detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto a opinião da maioria é que prevalecerá. Àquele cuja maneira de ver for acertada, não faltarão razões boas com que a justifique. Se algum, contrariado por não conseguir que suas ideias predominem, se retirar, nem por isso deixariam as coisas de seguir o seu curso e motivo não haveria para se lhe deplorar a saída, pois que teria dado prova de uma susceptibilidade orgulhosa, pouco espírita, e que poderia tornar-se origem de perturbações.

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, do momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião. É esta uma questão de minúcia prevista na organização.

Admitamos que entre os membros da comissão haja um irmão falso, um traidor, que os inimigos da causa tenham ganho para si: que logrará ele fazer, não dispondo senão do seu voto nas decisões? Suponhamos que, por impossível, toda a comissão enverede por mau caminho: aí estarão os congressos para reconduzi-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração pertencerá aos congressos, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra a comissão central, por infração do seu mandato, por violação dos princípios estabelecidos, ou por medidas prejudiciais à Doutrina. Por isso é que se apelará da comissão para o congresso, nas circunstâncias em que se julgue que a responsabilidade da primeira está gravemente comprometida.

Sendo os congressos um freio para a comissão, na aprovação deles haure esta última novas forças. É assim que o chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem risco para si próprio, afastar-se do caminho reto.

Quando a comissão estiver organizada, dela faremos parte como simples membro seu, dando-lhe a nossa colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.


[DEPARTAMENTOS DA COMISSÃO CENTRAL.]


Às atribuições gerais da comissão serão anexados, como dependências locais:

1º Uma biblioteca, onde se encontrem reunidas todas as obras que interessem o Espiritismo e que possam ser consultadas no local, ou cedidas para leitura fora;

2º Um museu, onde se achem colecionadas as primeiras obras de arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos a quem a causa muito deva pelo devotamento que tenham demonstrado, os dos homens a quem o Espiritismo renda homenagens, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da Humanidade, grandes gênios missionários do progresso, etc.

3º Um dispensário destinado às consultas médicas gratuitas e ao tratamento médico de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4º Uma caixa de socorros e de previdência, em condições práticas;

5º Um asilo;

6º Uma sociedade de adeptos, que celebre sessões regulares.


VI.


OBRAS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA.

Muitas pessoas lamentam que as obras fundamentais da Doutrina tenham um preço tão elevado para grande número de leitores, e pensam, com razão, que se fossem feitas edições populares a baixo custo, estariam muito mais espalhadas, com o que ganharia a Doutrina.

Estamos completamente de acordo; mas, no estado atual das coisas, as condições em que são editadas não permitem que o sejam de outro modo. Esperamos chegar um dia a esse resultado, com o auxílio de uma nova combinação que se ligue ao plano geral de organização. Mas essa operação não pode ser realizada senão empreendida em vasta escala; só de nossa parte exigiria capitais que não possuímos, e trabalhos materiais que os nossos trabalhos, que reclamam todas as nossas meditações, não nos permitem dar. É por isto que a parte comercial propriamente dita foi negligenciada ou, melhor dizendo, sacrificada ao estabelecimento da parte doutrinária. O que importava, antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da Doutrina.

Em se achando organizado pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que as gerirá e cuidará da publicação delas, pelos meios mais apropriados a popularizá-las. Ela também deverá cuidar de que sejam traduzidas nas principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário que conservasse seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade.

Fomos, por diversas vezes, solicitados a fazê-la circular mais amiúde; por muito lisonjeiro, porém, que nos fosse esse desejo, não pudemos atendê-lo, primeiramente, porque o tempo material não nos consentia esse acréscimo de trabalho e, em segundo lugar, porque importava não perdesse ela o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima do seu termo, as necessidades já não são as mesmas; a Revista se tornará, como as nossas outras obras, feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior vantagem do Espiritismo, sem que, por isso, renunciemos a lhe prestar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, falta-nos publicar vários trabalhos, que não formam a parte menos difícil, nem menos penosa. Conquanto já disponhamos de todos os elementos para o executar e o programa de cada um esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dispensar-lhes mais acurada atenção e ativá-los, se, por instituída a comissão central, estivéssemos livres de outros cuidados que absorvem grande parte do nosso tempo.


VII.


ATRIBUIÇÕES DO COMITÊ.

Serão estas as atribuições principais da comissão central:

1º Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propagação; manter-lhe a unidade, pela conservação da integridade dos princípios firmados; prover ao desenvolvimento de suas consequências;

2º O estudo dos novos princípios, susceptíveis de entrar no corpo da Doutrina;

3º A concentração, em seu poder, de todos os documentos e informações que interessem ao Espiritismo;

4º A correspondência;

5º A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos diversos países;

6º A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo e à qual se poderá juntar outra publicação periódica;

7º O exame e apreciação das obras, dos artigos de jornais e de todos os escritos que interessem à Doutrina; a refutação dos ataques, se aparecerem;

8º A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais favoráveis à sua vulgarização; a elaboração e publicação das de que daremos o plano e que não teremos tempo de executar em nossa atual existência; o apoio de que precisem as publicações que sejam de proveito para a causa;

9º A fundação e conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10º A administração da caixa de socorros, do dispensário e do asilo;

11º A administração dos negócios materiais;

12º A direção das sessões da Sociedade;

13º O ensino oral;

14º As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob o seu patrocínio;

15º A convocação dos congressos e assembleias gerais.


Estas atribuições os membros da comissão as distribuirão entre si, conforme a especialidade de cada um, sendo eles, se for preciso, assistidos por certo número de auxiliares ou de simples empregados.

Em consequência, entre os membros da comissão haverá:

Um secretário-geral para a correspondência e as atas das sessões da comissão;

Um redator-chefe para Revista e as outras publicações;

Um bibliotecário-arquivista, encarregado, além disso, do exame e das apreciações criticas das obras e artigos de jornais;

Um diretor da caixa de socorros, também encarregado da direção do dispensário, das visitas aos doentes e necessitados e de tudo o que se refere à beneficência. Será secundado por uma comissão de beneficência escolhida no seio da Sociedade, e formada de pessoas caridosas de boa vontade;

Um administrador-contador, encarregado dos negócios e dos interesses materiais;

Um diretor especial para os negócios concernentes às publicações;

Oradores para o ensino oral, encarregados, ademais, de visitar as sociedades dos Departamentos e aí dar instruções. Poderão ser tomados entre os membros auxiliares e os adeptos de boa vontade que, para tanto, receberão um mandato especial.

Seja qual for a extensão ulterior dos negócios e do pessoal administrativo, a comissão será sempre limitada ao mesmo número de membros titulares.

Até agora tivemos de nos bastar mais ou menos sozinhos a este programa. Por isso mesmo, algumas de suas partes foram negligenciadas ou apenas puderam ser esboçadas, e as que são mais especialmente da nossa alçada, tiveram que sofrer inevitáveis atrasos, pela necessidade de nos ocupar de tantas coisas, quando o tempo e as forças têm limites e uma só absorveria o tempo de um homem.


VIII.


VIAS E MEIOS.

É de lastimar, sem dúvida, que tenhamos de entrar em considerações de ordem material, para alcançarmos um objetivo todo espiritual. Cumpre, porém, observemos, que a espiritualidade mesma da obra se prende à questão da Humanidade terrena e do seu bem-estar; que já não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e de durável, para a extensão e a consolidação da Doutrina, à qual é preciso fazer produzir os frutos de que é susceptível de dar. Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com um bastão de viagem, sem cogitarem de saber onde pousariam, nem do que comeriam, fora alimentar uma ilusão que bem depressa amarga decepção destruiria. Para alguém fazer qualquer coisa de sério, tem que se submeter às necessidades impostas pelos costumes da época em que vive e essas necessidades são muito diversas da dos tempos da vida patriarcal. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que se apreciem os meios de ação, para não ser forçoso parar a meio do caminho. Apreciemo-los, portanto, uma vez que estamos num século em que é preciso calcular tudo.

São em grande número, como se vê, as atribuições da comissão central, para necessitarem de uma verdadeira administração. Tendo cada um de seus membros funções ativas e assíduas, se apenas a constituíssem homens de boa vontade, os trabalhos seriam prejudicados, porquanto ninguém teria o direito de censurar os negligentes. Para regularidade dos trabalhos e normalidade do expediente, necessário se torna contar com homens de cuja assiduidade se possa estar certo e que não considerem suas funções como simples atos de comprazer. De quanto mais independência eles forem senhores, pelos seus recursos pessoais, tanto menos se deixarão prender por ocupações assíduas; se não dispuserem de tempo, não poderão consagrá-lo àquelas funções. Importa, pois, que sejam retribuídos, assim como o pessoal administrativo. Com isso a Doutrina ganhará em força, em estabilidade, em pontualidade, do mesmo passo que constituirá um meio de prestar serviços a pessoas que dela necessitem.

Ponto essencial, na economia de toda administração previdente, é que sua existência não dependa de produtos eventuais que possam fazer falta, mas de recursos certos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não seja embaraçada. Insta, pois, que as pessoas que forem chamadas a lhe prestar concurso, não se sintam inquietas quanto ao futuro que as aguarde. Ora, a experiência demonstra que se devem considerar essencialmente aleatórios os recursos que apenas tenham por base o produto de cotas ou contribuições, sempre facultativas, quaisquer que sejam os compromissos contraídos, e de cobrança sempre difícil. Assentar despesas permanentes e regulares sobre recursos eventuais, implicaria falta de previdência, que mais tarde se haveria de deplorar. Menos graves são, sem dúvida, as consequências, quando se trate de fundações temporárias, destinadas a durar quanto possam; aqui, porém, é uma questão de futuro. A sorte de uma administração como esta não pode ficar subordinada aos azares de um negócio comercial; precisa ser, desde o seu início, se não tão florescente, pelo menos tão estável quanto o será daqui a um século. Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em tal caso a mais vulgar prudência manda se capitalizem, de forma inalienável, os recursos, à proporção que vão sendo obtidos, a fim de constituir-se uma renda perpétua, a coberto de todas as eventualidades. Regulando a administração a sua despesa pela renda que aufira, não pode a sua existência, em nenhum caso, achar-se comprometida, pois que disporá sempre de meios para funcionar. Pode, no começo, organizar-se em menor escala; o número de membros da comissão poderá ser limitado provisoriamente a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, salvo para proporcionar o desenvolvimento pelo acréscimo dos recursos e das necessidades da causa, considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora membro ativo da comissão central, não pesaremos de forma alguma no seu orçamento, nem por honorários, nem por despesas de viagens, nem por outra causa qualquer. Se nunca a ninguém nada pedimos para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância. Nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parcela dos recursos de que dispuser a comissão será desviada em proveito nosso.

Dar-lhe-emos, ao contrário, a nossa contribuição:

1º Abrindo mão, em seu favor, do que produzam as nossas obras, feitas e por fazer;

2º Doando-lhe valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da Doutrina, e não para aí conquistarmos uma posição da qual não necessitamos. Foi para preparar as vias desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de haver posto a primeira pedra.

Figuremos então que, de um modo ou de outro, a comissão central, em dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe uma renda de 25 a 30.000 francos. Restringindo, em começo, as suas despesas, os recursos de toda espécie de que disponha, em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que será objeto de uma contabilidade rigorosa. Reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda irá aumentar o capital comum. Proporcionalmente, com os recursos desse capital é que a comissão proverá às diversas despesas proveitosas ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais faça dele aplicação pessoal, nem fonte de especulação para qualquer de seus membros: Ao demais, o emprego dos fundos e escrituração serão submetidos à verificação de comissários especiais, designados, para esse efeito, pelos congressos ou assembleias gerais.

A comissão terá por um de seus primeiros cuidados ocupar-se com as publicações, desde que seja possível, sem esperar que o possa fazer com o auxílio das rendas. Os fundos a isso destinados não serão, em realidade, mais que um adiantamento, pois que voltarão à caixa, em virtude da venda das obras, cujo produto reverterá ao capital comum. É um negócio de administração.

Para dar a esta instituição uma existência legal, ao abrigo de toda contestação, dar-lhe, além disso, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se for julgado necessário, por ato autêntico, sob forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos, prorrogável indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se de seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias da comissão, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas ligamos; queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

A criação de uma caixa geral de socorros é impraticável e apresenta sérios inconvenientes, como já o demonstramos em artigo especial. (Revista de julho de 1866). A comissão não deve, pois, tomar um caminho que teria de abandonar ao cabo de pouco tempo, nem empreender coisa alguma que não esteja certa de poder realizar. Ela precisa ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas. Esse o meio de caminhar longo tempo e com segurança. Para isso, cumpre-lhe ficar sempre dentro dos limites do possível.

Essa caixa de socorros não pode e não deve ser mais do que uma instituição local, de ação circunscrita e cuja prudente organização sirva de modelo às do mesmo gênero que as sociedades particulares venham a criar. Pela sua multiplicidade é que elas prestarão serviços eficazes e não pela centralização dos meios de ação.

Será alimentada: 1º pelas parcelas, que se lhe destinem, tiradas da renda da caixa geral do Espiritismo; 2º pelos donativos especiais que lhe forem feitos. Ela capitalizará as somas que receber, de maneira a constituir para si um rendimento. Com essa renda é que prestará os socorros temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações do seu mandato, estipuladas no regulamento da sua constituição.

O projeto de um asilo, na acepção completa do termo, não poderá ter execução logo de começo, pelos capitais que reclamaria semelhante fundação e, ao demais, porque é preciso dar à administração tempo de se firmar e de atuar com regularidade, antes de complicar suas atribuições com empreendimentos que possam malograr-se. Fora imprudência tentar muitas coisas, antes de estar certa de dispor dos meios de execução. É o que facilmente se compreenderá, desde que se pense em todos os pormenores inerentes a estabelecimentos desse gênero. Convém, sem dúvida, alimentar boas intenções, mas, antes de tudo, mister se faz poder realizá-las.


IX.


CONCLUSÃO.

Tais são as bases principais da organização que nos propomos dar ao Espiritismo, se as circunstâncias no-lo permitirem. Tivemos que desenvolver os motivos um tanto longamente, a fim de dar a conhecer o seu espírito. Os detalhes serão objeto de uma regulamentação minuciosa, na qual todos os casos serão previstos de maneira a levantar todas as dificuldades de execução.

Consequente com os princípios de tolerância e de respeito a todas as opiniões, que o Espiritismo professa, não pretendemos impor esta organização a ninguém, nem constranger quem quer que seja a se submeter a ela. Nosso objetivo é estabelecer um primeiro laço entre os espíritas, que o desejam desde muito tempo e se lastimam de seu isolamento. Ora, esse laço, sem o qual o Espiritismo, permanecendo no estado de opinião individual, sem coesão, só pode existir com a condição de se religar a um centro por uma comunhão de vistas e de princípios. Esse centro não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, agindo no interesse geral e na qual a autoridade pessoal se apaga.

Se ele não existisse, qual teria sido o ponto de ligação dos espíritas disseminados em diferentes países? Não podendo comunicar suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, eles também espalhados, e muitas vezes sem consistência, teriam ficado isolados e, com isto, sofrido a difusão da Doutrina. Era preciso, pois, um ponto aonde todos chegassem e de onde tudo pudesse irradiar. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar inútil esse centro, faria sentir melhor a sua necessidade, porque a necessidade de aproximação e de formação de um feixe será tanto maior quanto mais considerável for o número de adeptos.

Mas qual será a extensão do círculo de atividades desse centro? É destinado a reger o mundo e a tornar-se o árbitro universal da verdade? Se tivesse essa pretensão, seria compreender mal o espírito do Espiritismo que, por isso mesmo que proclama os princípios do livre-exame e da liberdade de consciência, repudia a ideia de se erigir em autocracia; desde o começo entraria numa senda fatal.

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da Natureza, e não sobre abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira, que os espíritas do mundo inteiro estarão sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder, que deverão esperar a luz de um ponto fixo, para o qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma única nação, governada por um só chefe, regida pelo mesmo código de leis e submetidas aos mesmos costumes. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos hábitos, aos caracteres e aos climas de cada uma.

Assim será com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo inteiro terão princípios comuns, que os ligarão à grande família pelo laço sagrado da fraternidade, mas cuja aplicação poderá variar conforme as regiões, sem que, por isto, seja rompida a unidade fundamental, sem formar seitas dissidentes que se atirem a pedra e o anátema, o que seria antiespírita em alto grau. Poderão, pois, se formar, e inevitavelmente se formarão, centros gerais em diferentes países, sem outro laço além da comunhão de crença e a solidariedade moral, sem subordinação de um ao outro, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de impor-se aos espíritas americanos e reciprocamente.

A comparação dos observatórios, que citamos acima, é perfeitamente justa. Há observatórios em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, estão baseados em princípios gerais e reconhecidos da Astronomia, o que, por isso, não os torna tributários uns dos outros; cada um regula seus trabalhos como entende; comunicam-se as suas observações, e cada um põe a serviço da Ciência as descobertas de seus confrades. Dar-se-á o mesmo com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão o que tiverem de bom e aplicável aos costumes das regiões onde estiverem estabelecidos, pois o seu objetivo é o bem da Humanidade, e não a satisfação das ambições pessoais. O Espiritismo é uma questão de fundo; prender-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os diversos centros, que estiverem no verdadeiro espírito do Espiritismo, deverão estender-se a mão fraterna e se unirem no combate aos seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.








Dezembro

I. Considerações preliminares. II. Extrato do relatório da Caixa do Espiritismo. — III. Dos cismas. — IV. O chefe do Espiritismo. — V. Comissão central. — Departamentos da Comissão central. — VI. Obras fundamentais da Doutrina. — VII. Atribuições do Comitê. — VIII. Vias e meios. — IX. Conclusão.


I.


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram. Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora se exporem a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos.

Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas.

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá.

Se bem não haja ele dito ainda sua última palavra sobre todos os pontos, aproxima-se do seu complemento e soou a hora de se lhe oferecer uma base forte e durável, susceptível, contudo, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias ulteriores comportem e que ofereça toda a segurança aos que inquiram quem, depois de nós, lhe tomará as rédeas.

A Doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa nas leis da Natureza e porque, melhor do que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações dos homens. Entretanto, a sua difusão e a sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias várias, algumas das quais subordinadas à marcha geral das coisas, outras inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização. É destas que nos vamos ocupar especialmente neste momento.

Conquanto a questão de substância seja preponderante em tudo e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui importância capital; poderia mesmo sobrepujar momentaneamente e suscitar embaraços e atrasos, conforme a maneira por que fosse resolvida.

Houvéramos, pois, feito coisa incompleta e deixado grandes dificuldades para o futuro, se não prevíssemos as que podem surgir. Com o intuito de evitá-las foi que, com o concurso dos bons Espíritos que nos assistem em nossos trabalhos, elaboramos um plano de organização, pondo em jogo a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais se chocaram a maioria das doutrinas que apareceram no mundo. Podendo este plano prestar-se a todos os desenvolvimentos que reserva o futuro, demos, por isto mesmo, a esta constituição a qualificação de transitória.

O plano aqui exposto concebemo-lo há longo tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo, é certo, mas o bastante para mostrar que não é esta, hoje, uma concepção nova e que, trabalhando na parte teórica da obra, não nos descuidávamos do lado prático.

Antes de abordar a fundo a questão, parece-nos útil lembrar algumas passagens do relatório que apresentamos à Sociedade de Paris, no dia 5 de maio de 1865, a propósito da caixa do Espiritismo, e que foi publicado na Revista de junho de 1865. As considerações que ele encerra se ligam diretamente ao nosso assunto, do qual elas são as preliminares indispensáveis.


II.


EXTRATO DO RELATÓRIO DA CAIXA DO ESPIRITISMO, FEITO A SOCIEDADE DE PARIS, EM 5 DE MAIO DE 1865.

Muito se há falado dos proventos que eu retirava de minhas obras. Certamente, nenhuma pessoa séria acredita realmente em meus milhões, a despeito da afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca, tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. (Revista de junho de 1862). Além disso, não obstante o que disse o autor de uma brochura que conheceis, provando, por cálculos hiperbólicos, que o meu orçamento de receita ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porquanto, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários (Revista de junho de 1863), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém, ninguém me deu algo para mim pessoalmente; numa palavra, não vivo a expensas de ninguém, porquanto, das somas que me foram voluntariamente confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito.

As minhas imensas riquezas proviriam, pois, das minhas obras espíritas. Conquanto estas obras tenham alcançado inesperado êxito, basta ter um pouco de familiaridade com os negócios de livraria, para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns centavos por exemplar. Mas, avultado ou mínimo, sendo esse lucro fruto do meu trabalho, ninguém tem o direito de intrometer-se no emprego que lhe dou; ainda mesmo que se elevasse a milhões, ninguém tem nada a ver com isto, desde que a compra de livros, assim como a assinatura da Revista, é facultativa e não se impõe em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade. Falando comercialmente, estou na posição de todo homem que recolhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor, que tanto pode triunfar, quanto fracassar.

Mesmo não tendo, neste particular, nenhuma conta a prestar, creio útil à própria causa a que me devotei, dar algumas explicações.

Antes de mais, direi que minhas obras não são propriedade exclusiva minha, o que me obriga a comprá-las de meu editor e pagá-las como um livreiro, à exceção da Revista; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas dívidas incobráveis e pelas distribuições gratuitas, feitas no interesse da Doutrina, a pessoas que, sem isto, delas estariam privadas. Um cálculo muito fácil prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, é suficiente para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. Somando tudo e feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes; o que faço dela? Isto é o que mais preocupa certa gente.

Quem quer que outrora tenha visto a nossa habitação e a veja hoje poderá atestar que nada mudou na nossa maneira de viver, desde que entrei a ocupar-me com o Espiritismo; é tão simples agora como o era antigamente. Então é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Teria eu, então, a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Creio que meu caráter e meus hábitos jamais permitiram que se fizesse tal suposição. O que pretendem? Desde que isto não me aproveita, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia saberão a cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os fazedores de histórias pouparão a imaginação; hoje eu me limito a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto devo entrar nalguns detalhes íntimos, mas que são necessários, e para os quais vos peço perdão.

Sempre tivemos do que viver, muito modestamente é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo e o de um modesto emprego, que me vi forçado a deixar quando os trabalhos da Doutrina absorveram todo o meu tempo.

Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho; em pouco tempo vi-me arrastado por um movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr de modo algum em evidência e permanecer desconhecido; mas, prontamente ultrapassado, isto não me foi possível: tive de renunciar ao meu gosto pelo insulamento, sob pena de abdicar da obra empreendida e que crescia de dia para dia; foi preciso seguir seu impulso e tomar-lhe as rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, seguramente não fui eu que o procurei, pois é notório que nem a devo à propaganda, nem à camaradagem da imprensa, e que jamais aproveitei de minhas relações para me lançar no mundo, quando isto me teria sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto se desdobrava à minha frente, recuando os seus limites; compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorarem, as dificuldades e os obstáculos redobraram as minhas energias; vi o objetivo e resolvi atingi-lo com a assistência dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas; foi a obra de minha vida: a ela dei todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe meu repouso, minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrecusáveis.

Sem nos afastarmos do nosso gênero de vida, nem por isso essa posição excepcional deixou de nos criar menos necessidades a que só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiriam prover. Seria difícil a outrem imaginar a multiplicidade das despesas que aquela posição acarreta e que, sem ela, eu teria evitado.

Pois bem, senhores! o que me proporcionou suprimento aos meus recursos foi o produto das minhas obras. E o digo com satisfação, pois foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Assim, eu trouxe uma larga cota-parte à caixa do Espiritismo. Os que ajudam a propagação das obras não poderão, pois, dizer que trabalham para me enriquecer, porque o produto da venda de todo livro, de toda assinatura da Revista, redunda em proveito da Doutrina e não do indivíduo.

Mas, prover ao presente não era tudo: importava também pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse auxiliar aquele que me substituísse na grande tarefa que terá de desempenhar Esta fundação, a cujo respeito ainda devo guardar silêncio, se prende à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico, em melhorá-la, uma parte do que ganho. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, e a despeito de minhas economias, duvido muito que meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria destinar. Uma vez, porém, que a sua realização está nos desígnios dos meus guias espirituais, se eu mesmo não o fizer, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. Enquanto aguardo, vou elaborando os projetos no papel.

Longe de mim, senhores, o pensamento de me envaidecer, ainda que de leve, com o que acabo de expor-vos. Foi necessária a pertinácia de certas diatribes, para que eu me decidisse, embora a contragosto, a quebrar o silêncio acerca de alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que à malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por meio de documentos autênticos; mas o tempo dessas explicações ainda não chegou. A única coisa que por enquanto me importava era que ficásseis esclarecidos com relação ao destino dos fundos que a Providência faz que passem pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero mais do que um depositário, até mesmo do que ganho e, com mais forte razão, daquilo que me é confiado.

Alguém me perguntava certo dia, sem curiosidade, é claro, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que houvera sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isso seria inútil, pois os nossos adversários se encarregaram de custeá-la. Não me pondo então à disposição grandes recursos, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo só devia seus triunfos à sua própria força.

Hoje, que o horizonte se ampliou, sobretudo que o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de ordem completamente diversa. Um capital como o que supondes receberia um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes, que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte se destinaria a converter a minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra constituiria uma renda inalienável, destinada: 1º a manter o estabelecimento; 2º a assegurar uma existência a quem me suceder e aos que o ajudarem em sua missão; 3º a prover às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de auxílios eventuais, como sou obrigado a fazer, já que a maior parte de seus recursos decorrem do meu trabalho, que terá termo.

Eis o que eu faria; mas se esta satisfação não me é dada, sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo oportuno. Eis por que absolutamente não me inquieto com isto e só me ocupo com o que, para mim, é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.


III.


DOS CISMAS.

Uma questão que logo se apresenta é a dos cismas que poderão nascer no seio da Doutrina. Estará preservado deles o Espiritismo?

Não, certamente, porque terá, sobretudo no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, refratárias a se amalgamarem com as ideias dos demais; e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, se empenham por ligar seus nomes a uma inovação qualquer; dos que criam novidades só para poderem dizer que não pensam ou agem como os outros; ou porque o seu amor-próprio sofre, por não ocuparem senão uma posição secundária; ou, enfim, porque veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar. Mas, como lhes temos dito centenas de vezes: “Quem vos barra o caminho? Quem vos impede de trabalhar por vosso lado? Quem vos proíbe de publicar as vossas obras? A publicidade vos está aberta como a todo o mundo; dai algo de melhor do que o que está, ninguém, a isto se opõe; sede mais apreciados pelo público, e ele vos dará a preferência.”

Se, porém, o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia neutralizar-lhes as consequências e isto é o essencial.

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de' uma teoria racional. Hoje, raros partidários ainda contam esses primitivos sistemas. É este um, fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências se apagarão com a elucidação integral de todas as partes da Doutrina. Mas, haverá sempre os dissidentes, de ânimo prevenido e interessados, por um motivo ou por outro, a constituir bando à parte. Contra a pretensão desses é que cumpre se premunam os demais.

Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. Quando for dito peremptoriamente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém pode pretender que se quis dizer que dois e dois fazem cinco.

Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância.

O segundo ponto está em não se sair do âmbito das ideias práticas. Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.

Se, portanto, uma seita se formar à ilharga do Espiritismo, fundada ou não em seus princípios, de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como já sucedeu a tantas outras, através dos séculos; se suas ideias forem acertadas, mesmo que com relação a um único ponto, a Doutrina, que apenas procura o bem e o verdadeiro onde quer que se encontrem, as assimilará, de sorte que, em vez de ser absorvida, absorverá. Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela os imitará; se fizerem maior bem, ela se esforçará por fazer outro tanto ou mais, se possível; se fizerem mais mal, ela os deixará fazer, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem sobrepuja o mal e o verdadeiro predominará sobre o que é falso. Esta a única luta em que se empenhará.

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da moral espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros; não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo, invariável. Mas, quem poderá lisonjear-se de possuí-la toda? No estado de imperfeição em que se acham os nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdadeiro, em consequência da descoberta de novas leis, e isso tanto na ordem moral, quanto na ordem física. Contra essa eventualidade, a Doutrina nunca deverá estar desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade Em vez de ser uma força, a imobilidade se torna uma causa de fraqueza e de ruína, para quem não acompanha o movimento geral; quebra a unidade, porque os que querem avançar se separam dos que se obstinam em ficar atrás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, cumpre fazê-lo com prudência e evitar ir de cabeça baixa ao encontro dos devaneios da utopia e dos sistemas. É preciso fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Compreende-se que uma doutrina assente sobre tais bases tem que ser realmente forte; ela desafia toda concorrência e neutraliza as pretensões de seus competidores. É para este ponto que os nossos esforços tendem a conduzir a Doutrina Espírita.

Aliás, a experiência já comprovou o acerto desta previsão. Tendo marchado sempre por esse caminho desde a sua origem, a Doutrina avança constantemente, mas sem precipitação, verificando sempre se é sólido o terreno onde pisa e medindo seus passos pelo estado da opinião. Fez como o navegante que não prossegue sem ter na mão a sonda e sem consultar os ventos.


IV.


O CHEFE DO ESPIRITISMO.

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa senda? Quem terá mesmo a força? Quem disporá do tempo e da perseverança necessários para se consagrar ao trabalho incessante que semelhante tarefa exige? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não será de temer que se desvie da sua rota? e que a malevolência, com a qual ainda estará por longo tempo em luta, não procure desfigurar-lhe o espírito? É essa, com efeito, uma questão vital e cuja solução se reveste do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é tão evidente, que já causa inquietação o não ser visto, a surgir no horizonte, o seu condutor. Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar a impulsão, de estimular os zelos, de defender os fracos, de sustentar os ânimos vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de caminhar ao léu. Não somente essa direção é necessária, como também preciso se faz que preencha condições de força e de estabilidade suficientes para afrontar as tempestades.

Os que nenhuma autoridade admitem não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar toda direção, a maioria, os que não se creem infalíveis e não depositam confiança absoluta em suas próprias luzes, se sentem necessitados de um ponto de apoio, de um guia, ainda que apenas para ajudá-los a caminhar com segurança. (Vide a Revista de abril de 1866: O Espiritismo Independente).

Reconhecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados no mundo inteiro? É coisa impraticável. Se se impuser por sua própria autoridade, uns o aceitarão, enquanto que outros o recusarão, e podem surgir vinte pretendentes, levantando bandeira contra bandeira. Fora ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso e ninguém conviria menos do que um ambicioso, por isso mesmo orgulhoso, para chefiar uma doutrina que se baseia na abnegação, no devotamento, no desinteresse, na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, outra coisa não poderia fazer, senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente se daria, se de antemão se não adotassem medidas eficazes a prevenir esse inconveniente.

Admitamos, no entanto, houvesse um homem com todas as qualidades necessárias ao desempenho do seu mandato e que, por uma senda qualquer, chegasse à direção suprema. Os homens se sucedem e não se assemelham; depois de um bom, poderia vir um mau. Com o indivíduo, pode mudar o espírito da direção; sem maus desígnios, pode ele ter modos de ver mais ou menos justos; se entender de fazer que prevaleçam suas ideias pessoais, pode levar a Doutrina a transviar-se, suscitar dissidências e as mesmas dificuldades se renovarão a cada mudança. É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força. Do ponto de vista da organização, é uma criança que mal começa a andar. Insta, pois, sobretudo no princípio, premuni-lo contra os obstáculos do caminho.

Mas, dir-se-á, não virá estar à frente do Espiritismo um dos Espíritos que, segundo foi anunciado, tem que tomar parte na obra da regeneração? É provável; todavia, como esses Espíritos não trarão na fronte um sinal para serem reconhecidos; como não se afirmarão senão por seus atos, e, na maioria, só serão reconhecidos depois de terem morrido, conformemente ao que houverem produzido durante a vida; como, ao demais, não serão perpétuos, mister se torna prever todas as eventualidades.

É sabido que eles terão uma missão multíplice; que serão de todos os graus da escala espiritual e se encontrarão nos diversos ramos da economia [organização] social, onde um exercerá influência a favor das novas ideias, conforme a particularidade da sua posição; que todos, pois, trabalharão pelo ascendente da Doutrina, aqui e ali, uns como chefes de Estado, outros como legistas, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc.; que cada um dará provas de si onde lhe caiba exercer sua atividade, desde o proletário até o soberano, sem que qualquer coisa os distinga do comum dos homens, a não serem suas obras. Se a um deles couber tomar parte na direção, é provável que seja posto providencialmente na posição apropriada a fazê-lo chegar lá pelos meios legais que forem adotados; circunstâncias aparentemente fortuitas até lá o conduzirão, sem que de sua parte haja desígnio premeditado, sem mesmo ter ele consciência de sua missão. (Revista Espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868.)

Em tal caso, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias têm que ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, a só pretensão de ser um messias constituiria a negação dessas qualidades essenciais; provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou tola presunção, em havendo boa-fé, ou insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pseudo-espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou cupidez; outros que alardeiam pretensas revelações com o auxílio das quais procurem salientar-se e fascinar as imaginações por demais crédulas. É também de prever que, sob falsas aparências, indivíduos haja que tentem apoderar-se do leme, com a ideia preconcebida de fazerem soçobrar o navio, desviando-o de sua rota. O navio não soçobrará, mas poderia sofrer prejudiciais atrasos que se devem evitar.

São esses, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo precisa preservar-se. Quanto maior consistência ele adquirir, tanto mais ciladas lhe armarão seus adversários. É, portanto, dever de todos os espíritas sinceros anular as manobras da intriga que se possam urdir, assim nos pequenos, como nos grandes centros. Deverão eles, em primeiro lugar, repudiar, do modo mais absoluto, todo aquele que por si mesmo se apresente qual messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Pelo fruto é que se conhece a árvore; espere-se, pois, que a árvore dê seu fruto, para decidir se ela é boa e veja-se também se os frutos têm sabor. (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XXI, nº 9, “Caracteres do verdadeiro profeta”.)

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer que os candidatos fossem designados pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além de que este meio não obviaria a todos os inconvenientes, apresentaria outros, peculiares a semelhante modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que fora supérfluo lembrar aqui. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos consiste em nos instruir, para que nos melhoremos, porém não em se sobreporem ao nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem ideias, ajudam com seus conselhos, principalmente no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso raciocínio o encargo da execução das coisas materiais, encargo a que não lhes cabe poupar-nos. Em seu mundo eles têm atribuições que não são as da Terra; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições é expor-se às falcatruas dos Espíritos levianos. Contentem-se os homens com o serem assistidos e protegidos por Espíritos bons; não descarreguem, porém, sobre eles, a responsabilidade que incumbe ao encarnado.

Esse meio, aliás, suscitaria maiores embaraços do que se poderia supor, pela dificuldade de fazer-se que todos os grupos participassem de semelhante eleição. Seria uma complicação nas engrenagens e estas tanto menos susceptíveis se mostrarão de desarranjar-se, quanto mais simplificadas forem.

O problema é, pois, o de constituir-se uma direção central, em condições de força e estabilidade, que a ponham ao abrigo de todas as flutuações; que correspondam a todas as necessidades da causa e oponham intransponível barreira às tramas da intriga e da ambição. Tal o objetivo do plano de que vamos dar um rápido esboço.


V.


COMISSÃO CENTRAL.

Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, saídos, no estado de embriões, de uma multidão de focos, se dirigissem para um centro comum, a fim de serem aí examinados e cotejados, de sorte que um só pensamento presidisse à coordenação deles, a fim de ' estabelecer-se a unidade no conjunto e a harmonia entre todas as partes: Se não fosse assim, a Doutrina ter-se-ia assemelhado a esses edifícios híbridos, projetados por vários arquitetos, ou a um mecanismo cujas rodas não se engrenam com precisão umas nas outras.

Já o temos dito, por ser verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina não podia sair, de um único centro, completamente estruturada, da mesma maneira que toda a ciência astronômica não poderia sair, inteiramente constituída, de um único observatório. Qualquer centro que tentasse erguê-la exclusivamente sobre as suas observações faria coisa incompleta e se acharia, com relação a uma infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer cada um a sua doutrina, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo quanto aos fundamentos, difeririam inevitavelmente quanto à forma. Ora, como há muita gente que atenta mais na forma do que na substância, tantas seriam as seitas quantas as formas diferentes. Somente do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais podia resultar a unidade. Por isso é que era necessária a concentração dos trabalhos. (A Gênese, capítulo I, “Caráter da revelação espírita”, nº 51 e seguintes.)

Mas, o que era de vantagem por um certo tempo mais tarde se tornaria inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração se acha concluído, no que concerne às questões fundamentais, que estabelecidos se encontram os princípios gerais da Ciência, a direção, de individual que houve de ser em começo, tem que se tornar coletiva, primeiramente, porque um momento há de vir em que o seu peso excederá as forças de um homem e, em segundo lugar, porque maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos, a cada um dos quais caiba apenas um voto e que nada podem sem o concurso mútuo, do que um só indivíduo, capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será confiada a uma comissão central ou conselho superior permanente — pouco importa o nome — cuja organização e atribuições se definam de maneira a não dar azo ao arbítrio. Essa comissão se comporá, no máximo de doze membros titulares, que deverão, para tal efeito, preencher certas condições indispensáveis, e de igual número de conselheiros. Ela se completará a si mesma, segundo regras igualmente determinadas, de modo a evitar todo favoritismo, à medida que em seu seio se derem vagas por falecimentos ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá o modo por que serão nomeados os doze primeiros.

Cada membro presidirá por sua vez durante um ano, e aquele que preencher esta função será designado por sorteio.

Puramente administrativa será a autoridade do presidente. Ele dirigirá as deliberações da comissão, velará pela execução dos trabalhos e pelo expediente; mas, fora das atribuições que os estatutos constitutivos lhe conferirem, nenhuma decisão poderá tomar sem o concurso da comissão. Portanto, não haverá possibilidade de abusos, nem alimentos para a ambição, nem pretextos para intrigas ou ciúmes, nem supremacia chocante.

A comissão central, ou conselho superior, será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia-geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer por meio da discussão, não será bastante para que haja confusão.

Os congressos serão constituídos por delegados das sociedades particulares, regularmente constituídas, e colocadas sob o patrocínio da comissão por sua adesão e pela conformidade de seus princípios.

Para a comunidade dos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, em suma, de um corpo constituído, representando opinião coletiva, forçosamente terão uma autoridade que jamais teriam, se emanassem de um só indivíduo, que apenas representa uma opinião pessoal. É frequente uma pessoa rejeitar a opinião de outra, por entender que se humilharia, caso se submetesse a essa opinião, e acatar sem dificuldades a de muitos.

Fica bem entendido que aqui se trata de autoridade moral, no que respeita à interpretação e aplicação dos princípios morais da Doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma academia, em matéria de Ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem maior ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, apresenta uma força de resistência e dispõe de meios de ação com que um indivíduo não poderia contar; aquele luta com vantagens infinitamente maiores. Uma individualidade está sujeita a ser atacada e aniquilada; o mesmo já não se dá com uma entidade coletiva.

Há, igualmente, numa entidade coletiva, uma garantia de estabilidade, que não existe, quando tudo recai sobre uma cabeça única. Desde que o indivíduo se ache impedido por uma causa qualquer, tudo fica paralisado. A entidade coletiva, ao contrário, se perpetua incessantemente. Embora perca um ou vários de seus membros, nada periclita.

A dificuldade, dirão, consistirá em reunir, de modo permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que sejam acordes no tocante aos princípios fundamentais. Ora, isso constituirá uma condição absoluta para que sejam admitidas à direção, como para a de todos os que desta hajam de participar. Sobre as questões pendentes de detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto a opinião da maioria é que prevalecerá. Àquele cuja maneira de ver for acertada, não faltarão razões boas com que a justifique. Se algum, contrariado por não conseguir que suas ideias predominem, se retirar, nem por isso deixariam as coisas de seguir o seu curso e motivo não haveria para se lhe deplorar a saída, pois que teria dado prova de uma susceptibilidade orgulhosa, pouco espírita, e que poderia tornar-se origem de perturbações.

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, do momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião. É esta uma questão de minúcia prevista na organização.

Admitamos que entre os membros da comissão haja um irmão falso, um traidor, que os inimigos da causa tenham ganho para si: que logrará ele fazer, não dispondo senão do seu voto nas decisões? Suponhamos que, por impossível, toda a comissão enverede por mau caminho: aí estarão os congressos para reconduzi-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração pertencerá aos congressos, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra a comissão central, por infração do seu mandato, por violação dos princípios estabelecidos, ou por medidas prejudiciais à Doutrina. Por isso é que se apelará da comissão para o congresso, nas circunstâncias em que se julgue que a responsabilidade da primeira está gravemente comprometida.

Sendo os congressos um freio para a comissão, na aprovação deles haure esta última novas forças. É assim que o chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem risco para si próprio, afastar-se do caminho reto.

Quando a comissão estiver organizada, dela faremos parte como simples membro seu, dando-lhe a nossa colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.


[DEPARTAMENTOS DA COMISSÃO CENTRAL.]


Às atribuições gerais da comissão serão anexados, como dependências locais:

1º Uma biblioteca, onde se encontrem reunidas todas as obras que interessem o Espiritismo e que possam ser consultadas no local, ou cedidas para leitura fora;

2º Um museu, onde se achem colecionadas as primeiras obras de arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos a quem a causa muito deva pelo devotamento que tenham demonstrado, os dos homens a quem o Espiritismo renda homenagens, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da Humanidade, grandes gênios missionários do progresso, etc.

3º Um dispensário destinado às consultas médicas gratuitas e ao tratamento médico de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4º Uma caixa de socorros e de previdência, em condições práticas;

5º Um asilo;

6º Uma sociedade de adeptos, que celebre sessões regulares.


VI.


OBRAS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA.

Muitas pessoas lamentam que as obras fundamentais da Doutrina tenham um preço tão elevado para grande número de leitores, e pensam, com razão, que se fossem feitas edições populares a baixo custo, estariam muito mais espalhadas, com o que ganharia a Doutrina.

Estamos completamente de acordo; mas, no estado atual das coisas, as condições em que são editadas não permitem que o sejam de outro modo. Esperamos chegar um dia a esse resultado, com o auxílio de uma nova combinação que se ligue ao plano geral de organização. Mas essa operação não pode ser realizada senão empreendida em vasta escala; só de nossa parte exigiria capitais que não possuímos, e trabalhos materiais que os nossos trabalhos, que reclamam todas as nossas meditações, não nos permitem dar. É por isto que a parte comercial propriamente dita foi negligenciada ou, melhor dizendo, sacrificada ao estabelecimento da parte doutrinária. O que importava, antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da Doutrina.

Em se achando organizado pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que as gerirá e cuidará da publicação delas, pelos meios mais apropriados a popularizá-las. Ela também deverá cuidar de que sejam traduzidas nas principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário que conservasse seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade.

Fomos, por diversas vezes, solicitados a fazê-la circular mais amiúde; por muito lisonjeiro, porém, que nos fosse esse desejo, não pudemos atendê-lo, primeiramente, porque o tempo material não nos consentia esse acréscimo de trabalho e, em segundo lugar, porque importava não perdesse ela o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima do seu termo, as necessidades já não são as mesmas; a Revista se tornará, como as nossas outras obras, feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior vantagem do Espiritismo, sem que, por isso, renunciemos a lhe prestar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, falta-nos publicar vários trabalhos, que não formam a parte menos difícil, nem menos penosa. Conquanto já disponhamos de todos os elementos para o executar e o programa de cada um esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dispensar-lhes mais acurada atenção e ativá-los, se, por instituída a comissão central, estivéssemos livres de outros cuidados que absorvem grande parte do nosso tempo.


VII.


ATRIBUIÇÕES DO COMITÊ.

Serão estas as atribuições principais da comissão central:

1º Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propagação; manter-lhe a unidade, pela conservação da integridade dos princípios firmados; prover ao desenvolvimento de suas consequências;

2º O estudo dos novos princípios, susceptíveis de entrar no corpo da Doutrina;

3º A concentração, em seu poder, de todos os documentos e informações que interessem ao Espiritismo;

4º A correspondência;

5º A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos diversos países;

6º A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo e à qual se poderá juntar outra publicação periódica;

7º O exame e apreciação das obras, dos artigos de jornais e de todos os escritos que interessem à Doutrina; a refutação dos ataques, se aparecerem;

8º A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais favoráveis à sua vulgarização; a elaboração e publicação das de que daremos o plano e que não teremos tempo de executar em nossa atual existência; o apoio de que precisem as publicações que sejam de proveito para a causa;

9º A fundação e conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10º A administração da caixa de socorros, do dispensário e do asilo;

11º A administração dos negócios materiais;

12º A direção das sessões da Sociedade;

13º O ensino oral;

14º As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob o seu patrocínio;

15º A convocação dos congressos e assembleias gerais.


Estas atribuições os membros da comissão as distribuirão entre si, conforme a especialidade de cada um, sendo eles, se for preciso, assistidos por certo número de auxiliares ou de simples empregados.

Em consequência, entre os membros da comissão haverá:

Um secretário-geral para a correspondência e as atas das sessões da comissão;

Um redator-chefe para Revista e as outras publicações;

Um bibliotecário-arquivista, encarregado, além disso, do exame e das apreciações criticas das obras e artigos de jornais;

Um diretor da caixa de socorros, também encarregado da direção do dispensário, das visitas aos doentes e necessitados e de tudo o que se refere à beneficência. Será secundado por uma comissão de beneficência escolhida no seio da Sociedade, e formada de pessoas caridosas de boa vontade;

Um administrador-contador, encarregado dos negócios e dos interesses materiais;

Um diretor especial para os negócios concernentes às publicações;

Oradores para o ensino oral, encarregados, ademais, de visitar as sociedades dos Departamentos e aí dar instruções. Poderão ser tomados entre os membros auxiliares e os adeptos de boa vontade que, para tanto, receberão um mandato especial.

Seja qual for a extensão ulterior dos negócios e do pessoal administrativo, a comissão será sempre limitada ao mesmo número de membros titulares.

Até agora tivemos de nos bastar mais ou menos sozinhos a este programa. Por isso mesmo, algumas de suas partes foram negligenciadas ou apenas puderam ser esboçadas, e as que são mais especialmente da nossa alçada, tiveram que sofrer inevitáveis atrasos, pela necessidade de nos ocupar de tantas coisas, quando o tempo e as forças têm limites e uma só absorveria o tempo de um homem.


VIII.


VIAS E MEIOS.

É de lastimar, sem dúvida, que tenhamos de entrar em considerações de ordem material, para alcançarmos um objetivo todo espiritual. Cumpre, porém, observemos, que a espiritualidade mesma da obra se prende à questão da Humanidade terrena e do seu bem-estar; que já não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e de durável, para a extensão e a consolidação da Doutrina, à qual é preciso fazer produzir os frutos de que é susceptível de dar. Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com um bastão de viagem, sem cogitarem de saber onde pousariam, nem do que comeriam, fora alimentar uma ilusão que bem depressa amarga decepção destruiria. Para alguém fazer qualquer coisa de sério, tem que se submeter às necessidades impostas pelos costumes da época em que vive e essas necessidades são muito diversas da dos tempos da vida patriarcal. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que se apreciem os meios de ação, para não ser forçoso parar a meio do caminho. Apreciemo-los, portanto, uma vez que estamos num século em que é preciso calcular tudo.

São em grande número, como se vê, as atribuições da comissão central, para necessitarem de uma verdadeira administração. Tendo cada um de seus membros funções ativas e assíduas, se apenas a constituíssem homens de boa vontade, os trabalhos seriam prejudicados, porquanto ninguém teria o direito de censurar os negligentes. Para regularidade dos trabalhos e normalidade do expediente, necessário se torna contar com homens de cuja assiduidade se possa estar certo e que não considerem suas funções como simples atos de comprazer. De quanto mais independência eles forem senhores, pelos seus recursos pessoais, tanto menos se deixarão prender por ocupações assíduas; se não dispuserem de tempo, não poderão consagrá-lo àquelas funções. Importa, pois, que sejam retribuídos, assim como o pessoal administrativo. Com isso a Doutrina ganhará em força, em estabilidade, em pontualidade, do mesmo passo que constituirá um meio de prestar serviços a pessoas que dela necessitem.

Ponto essencial, na economia de toda administração previdente, é que sua existência não dependa de produtos eventuais que possam fazer falta, mas de recursos certos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não seja embaraçada. Insta, pois, que as pessoas que forem chamadas a lhe prestar concurso, não se sintam inquietas quanto ao futuro que as aguarde. Ora, a experiência demonstra que se devem considerar essencialmente aleatórios os recursos que apenas tenham por base o produto de cotas ou contribuições, sempre facultativas, quaisquer que sejam os compromissos contraídos, e de cobrança sempre difícil. Assentar despesas permanentes e regulares sobre recursos eventuais, implicaria falta de previdência, que mais tarde se haveria de deplorar. Menos graves são, sem dúvida, as consequências, quando se trate de fundações temporárias, destinadas a durar quanto possam; aqui, porém, é uma questão de futuro. A sorte de uma administração como esta não pode ficar subordinada aos azares de um negócio comercial; precisa ser, desde o seu início, se não tão florescente, pelo menos tão estável quanto o será daqui a um século. Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em tal caso a mais vulgar prudência manda se capitalizem, de forma inalienável, os recursos, à proporção que vão sendo obtidos, a fim de constituir-se uma renda perpétua, a coberto de todas as eventualidades. Regulando a administração a sua despesa pela renda que aufira, não pode a sua existência, em nenhum caso, achar-se comprometida, pois que disporá sempre de meios para funcionar. Pode, no começo, organizar-se em menor escala; o número de membros da comissão poderá ser limitado provisoriamente a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, salvo para proporcionar o desenvolvimento pelo acréscimo dos recursos e das necessidades da causa, considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora membro ativo da comissão central, não pesaremos de forma alguma no seu orçamento, nem por honorários, nem por despesas de viagens, nem por outra causa qualquer. Se nunca a ninguém nada pedimos para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância. Nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parcela dos recursos de que dispuser a comissão será desviada em proveito nosso.

Dar-lhe-emos, ao contrário, a nossa contribuição:

1º Abrindo mão, em seu favor, do que produzam as nossas obras, feitas e por fazer;

2º Doando-lhe valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da Doutrina, e não para aí conquistarmos uma posição da qual não necessitamos. Foi para preparar as vias desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de haver posto a primeira pedra.

Figuremos então que, de um modo ou de outro, a comissão central, em dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe uma renda de 25 a 30.000 francos. Restringindo, em começo, as suas despesas, os recursos de toda espécie de que disponha, em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que será objeto de uma contabilidade rigorosa. Reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda irá aumentar o capital comum. Proporcionalmente, com os recursos desse capital é que a comissão proverá às diversas despesas proveitosas ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais faça dele aplicação pessoal, nem fonte de especulação para qualquer de seus membros: Ao demais, o emprego dos fundos e escrituração serão submetidos à verificação de comissários especiais, designados, para esse efeito, pelos congressos ou assembleias gerais.

A comissão terá por um de seus primeiros cuidados ocupar-se com as publicações, desde que seja possível, sem esperar que o possa fazer com o auxílio das rendas. Os fundos a isso destinados não serão, em realidade, mais que um adiantamento, pois que voltarão à caixa, em virtude da venda das obras, cujo produto reverterá ao capital comum. É um negócio de administração.

Para dar a esta instituição uma existência legal, ao abrigo de toda contestação, dar-lhe, além disso, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se for julgado necessário, por ato autêntico, sob forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos, prorrogável indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se de seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias da comissão, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas ligamos; queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

A criação de uma caixa geral de socorros é impraticável e apresenta sérios inconvenientes, como já o demonstramos em artigo especial. (Revista de julho de 1866). A comissão não deve, pois, tomar um caminho que teria de abandonar ao cabo de pouco tempo, nem empreender coisa alguma que não esteja certa de poder realizar. Ela precisa ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas. Esse o meio de caminhar longo tempo e com segurança. Para isso, cumpre-lhe ficar sempre dentro dos limites do possível.

Essa caixa de socorros não pode e não deve ser mais do que uma instituição local, de ação circunscrita e cuja prudente organização sirva de modelo às do mesmo gênero que as sociedades particulares venham a criar. Pela sua multiplicidade é que elas prestarão serviços eficazes e não pela centralização dos meios de ação.

Será alimentada: 1º pelas parcelas, que se lhe destinem, tiradas da renda da caixa geral do Espiritismo; 2º pelos donativos especiais que lhe forem feitos. Ela capitalizará as somas que receber, de maneira a constituir para si um rendimento. Com essa renda é que prestará os socorros temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações do seu mandato, estipuladas no regulamento da sua constituição.

O projeto de um asilo, na acepção completa do termo, não poderá ter execução logo de começo, pelos capitais que reclamaria semelhante fundação e, ao demais, porque é preciso dar à administração tempo de se firmar e de atuar com regularidade, antes de complicar suas atribuições com empreendimentos que possam malograr-se. Fora imprudência tentar muitas coisas, antes de estar certa de dispor dos meios de execução. É o que facilmente se compreenderá, desde que se pense em todos os pormenores inerentes a estabelecimentos desse gênero. Convém, sem dúvida, alimentar boas intenções, mas, antes de tudo, mister se faz poder realizá-las.


IX.


CONCLUSÃO.

Tais são as bases principais da organização que nos propomos dar ao Espiritismo, se as circunstâncias no-lo permitirem. Tivemos que desenvolver os motivos um tanto longamente, a fim de dar a conhecer o seu espírito. Os detalhes serão objeto de uma regulamentação minuciosa, na qual todos os casos serão previstos de maneira a levantar todas as dificuldades de execução.

Consequente com os princípios de tolerância e de respeito a todas as opiniões, que o Espiritismo professa, não pretendemos impor esta organização a ninguém, nem constranger quem quer que seja a se submeter a ela. Nosso objetivo é estabelecer um primeiro laço entre os espíritas, que o desejam desde muito tempo e se lastimam de seu isolamento. Ora, esse laço, sem o qual o Espiritismo, permanecendo no estado de opinião individual, sem coesão, só pode existir com a condição de se religar a um centro por uma comunhão de vistas e de princípios. Esse centro não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, agindo no interesse geral e na qual a autoridade pessoal se apaga.

Se ele não existisse, qual teria sido o ponto de ligação dos espíritas disseminados em diferentes países? Não podendo comunicar suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, eles também espalhados, e muitas vezes sem consistência, teriam ficado isolados e, com isto, sofrido a difusão da Doutrina. Era preciso, pois, um ponto aonde todos chegassem e de onde tudo pudesse irradiar. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar inútil esse centro, faria sentir melhor a sua necessidade, porque a necessidade de aproximação e de formação de um feixe será tanto maior quanto mais considerável for o número de adeptos.

Mas qual será a extensão do círculo de atividades desse centro? É destinado a reger o mundo e a tornar-se o árbitro universal da verdade? Se tivesse essa pretensão, seria compreender mal o espírito do Espiritismo que, por isso mesmo que proclama os princípios do livre-exame e da liberdade de consciência, repudia a ideia de se erigir em autocracia; desde o começo entraria numa senda fatal.

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da Natureza, e não sobre abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira, que os espíritas do mundo inteiro estarão sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder, que deverão esperar a luz de um ponto fixo, para o qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma única nação, governada por um só chefe, regida pelo mesmo código de leis e submetidas aos mesmos costumes. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos hábitos, aos caracteres e aos climas de cada uma.

Assim será com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo inteiro terão princípios comuns, que os ligarão à grande família pelo laço sagrado da fraternidade, mas cuja aplicação poderá variar conforme as regiões, sem que, por isto, seja rompida a unidade fundamental, sem formar seitas dissidentes que se atirem a pedra e o anátema, o que seria antiespírita em alto grau. Poderão, pois, se formar, e inevitavelmente se formarão, centros gerais em diferentes países, sem outro laço além da comunhão de crença e a solidariedade moral, sem subordinação de um ao outro, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de impor-se aos espíritas americanos e reciprocamente.

A comparação dos observatórios, que citamos acima, é perfeitamente justa. Há observatórios em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, estão baseados em princípios gerais e reconhecidos da Astronomia, o que, por isso, não os torna tributários uns dos outros; cada um regula seus trabalhos como entende; comunicam-se as suas observações, e cada um põe a serviço da Ciência as descobertas de seus confrades. Dar-se-á o mesmo com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão o que tiverem de bom e aplicável aos costumes das regiões onde estiverem estabelecidos, pois o seu objetivo é o bem da Humanidade, e não a satisfação das ambições pessoais. O Espiritismo é uma questão de fundo; prender-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os diversos centros, que estiverem no verdadeiro espírito do Espiritismo, deverão estender-se a mão fraterna e se unirem no combate aos seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.








Dezembro

I. Considerações preliminares. II. Extrato do relatório da Caixa do Espiritismo. — III. Dos cismas. — IV. O chefe do Espiritismo. — V. Comissão central. — Departamentos da Comissão central. — VI. Obras fundamentais da Doutrina. — VII. Atribuições do Comitê. — VIII. Vias e meios. — IX. Conclusão.


I.


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram. Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora se exporem a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos.

Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas.

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá.

Se bem não haja ele dito ainda sua última palavra sobre todos os pontos, aproxima-se do seu complemento e soou a hora de se lhe oferecer uma base forte e durável, susceptível, contudo, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias ulteriores comportem e que ofereça toda a segurança aos que inquiram quem, depois de nós, lhe tomará as rédeas.

A Doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa nas leis da Natureza e porque, melhor do que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações dos homens. Entretanto, a sua difusão e a sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias várias, algumas das quais subordinadas à marcha geral das coisas, outras inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização. É destas que nos vamos ocupar especialmente neste momento.

Conquanto a questão de substância seja preponderante em tudo e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui importância capital; poderia mesmo sobrepujar momentaneamente e suscitar embaraços e atrasos, conforme a maneira por que fosse resolvida.

Houvéramos, pois, feito coisa incompleta e deixado grandes dificuldades para o futuro, se não prevíssemos as que podem surgir. Com o intuito de evitá-las foi que, com o concurso dos bons Espíritos que nos assistem em nossos trabalhos, elaboramos um plano de organização, pondo em jogo a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais se chocaram a maioria das doutrinas que apareceram no mundo. Podendo este plano prestar-se a todos os desenvolvimentos que reserva o futuro, demos, por isto mesmo, a esta constituição a qualificação de transitória.

O plano aqui exposto concebemo-lo há longo tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo, é certo, mas o bastante para mostrar que não é esta, hoje, uma concepção nova e que, trabalhando na parte teórica da obra, não nos descuidávamos do lado prático.

Antes de abordar a fundo a questão, parece-nos útil lembrar algumas passagens do relatório que apresentamos à Sociedade de Paris, no dia 5 de maio de 1865, a propósito da caixa do Espiritismo, e que foi publicado na Revista de junho de 1865. As considerações que ele encerra se ligam diretamente ao nosso assunto, do qual elas são as preliminares indispensáveis.


II.


EXTRATO DO RELATÓRIO DA CAIXA DO ESPIRITISMO, FEITO A SOCIEDADE DE PARIS, EM 5 DE MAIO DE 1865.

Muito se há falado dos proventos que eu retirava de minhas obras. Certamente, nenhuma pessoa séria acredita realmente em meus milhões, a despeito da afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca, tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. (Revista de junho de 1862). Além disso, não obstante o que disse o autor de uma brochura que conheceis, provando, por cálculos hiperbólicos, que o meu orçamento de receita ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porquanto, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários (Revista de junho de 1863), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém, ninguém me deu algo para mim pessoalmente; numa palavra, não vivo a expensas de ninguém, porquanto, das somas que me foram voluntariamente confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito.

As minhas imensas riquezas proviriam, pois, das minhas obras espíritas. Conquanto estas obras tenham alcançado inesperado êxito, basta ter um pouco de familiaridade com os negócios de livraria, para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns centavos por exemplar. Mas, avultado ou mínimo, sendo esse lucro fruto do meu trabalho, ninguém tem o direito de intrometer-se no emprego que lhe dou; ainda mesmo que se elevasse a milhões, ninguém tem nada a ver com isto, desde que a compra de livros, assim como a assinatura da Revista, é facultativa e não se impõe em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade. Falando comercialmente, estou na posição de todo homem que recolhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor, que tanto pode triunfar, quanto fracassar.

Mesmo não tendo, neste particular, nenhuma conta a prestar, creio útil à própria causa a que me devotei, dar algumas explicações.

Antes de mais, direi que minhas obras não são propriedade exclusiva minha, o que me obriga a comprá-las de meu editor e pagá-las como um livreiro, à exceção da Revista; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas dívidas incobráveis e pelas distribuições gratuitas, feitas no interesse da Doutrina, a pessoas que, sem isto, delas estariam privadas. Um cálculo muito fácil prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, é suficiente para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. Somando tudo e feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes; o que faço dela? Isto é o que mais preocupa certa gente.

Quem quer que outrora tenha visto a nossa habitação e a veja hoje poderá atestar que nada mudou na nossa maneira de viver, desde que entrei a ocupar-me com o Espiritismo; é tão simples agora como o era antigamente. Então é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Teria eu, então, a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Creio que meu caráter e meus hábitos jamais permitiram que se fizesse tal suposição. O que pretendem? Desde que isto não me aproveita, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia saberão a cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os fazedores de histórias pouparão a imaginação; hoje eu me limito a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto devo entrar nalguns detalhes íntimos, mas que são necessários, e para os quais vos peço perdão.

Sempre tivemos do que viver, muito modestamente é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo e o de um modesto emprego, que me vi forçado a deixar quando os trabalhos da Doutrina absorveram todo o meu tempo.

Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho; em pouco tempo vi-me arrastado por um movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr de modo algum em evidência e permanecer desconhecido; mas, prontamente ultrapassado, isto não me foi possível: tive de renunciar ao meu gosto pelo insulamento, sob pena de abdicar da obra empreendida e que crescia de dia para dia; foi preciso seguir seu impulso e tomar-lhe as rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, seguramente não fui eu que o procurei, pois é notório que nem a devo à propaganda, nem à camaradagem da imprensa, e que jamais aproveitei de minhas relações para me lançar no mundo, quando isto me teria sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto se desdobrava à minha frente, recuando os seus limites; compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorarem, as dificuldades e os obstáculos redobraram as minhas energias; vi o objetivo e resolvi atingi-lo com a assistência dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas; foi a obra de minha vida: a ela dei todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe meu repouso, minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrecusáveis.

Sem nos afastarmos do nosso gênero de vida, nem por isso essa posição excepcional deixou de nos criar menos necessidades a que só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiriam prover. Seria difícil a outrem imaginar a multiplicidade das despesas que aquela posição acarreta e que, sem ela, eu teria evitado.

Pois bem, senhores! o que me proporcionou suprimento aos meus recursos foi o produto das minhas obras. E o digo com satisfação, pois foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Assim, eu trouxe uma larga cota-parte à caixa do Espiritismo. Os que ajudam a propagação das obras não poderão, pois, dizer que trabalham para me enriquecer, porque o produto da venda de todo livro, de toda assinatura da Revista, redunda em proveito da Doutrina e não do indivíduo.

Mas, prover ao presente não era tudo: importava também pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse auxiliar aquele que me substituísse na grande tarefa que terá de desempenhar Esta fundação, a cujo respeito ainda devo guardar silêncio, se prende à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico, em melhorá-la, uma parte do que ganho. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, e a despeito de minhas economias, duvido muito que meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria destinar. Uma vez, porém, que a sua realização está nos desígnios dos meus guias espirituais, se eu mesmo não o fizer, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. Enquanto aguardo, vou elaborando os projetos no papel.

Longe de mim, senhores, o pensamento de me envaidecer, ainda que de leve, com o que acabo de expor-vos. Foi necessária a pertinácia de certas diatribes, para que eu me decidisse, embora a contragosto, a quebrar o silêncio acerca de alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que à malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por meio de documentos autênticos; mas o tempo dessas explicações ainda não chegou. A única coisa que por enquanto me importava era que ficásseis esclarecidos com relação ao destino dos fundos que a Providência faz que passem pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero mais do que um depositário, até mesmo do que ganho e, com mais forte razão, daquilo que me é confiado.

Alguém me perguntava certo dia, sem curiosidade, é claro, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que houvera sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isso seria inútil, pois os nossos adversários se encarregaram de custeá-la. Não me pondo então à disposição grandes recursos, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo só devia seus triunfos à sua própria força.

Hoje, que o horizonte se ampliou, sobretudo que o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de ordem completamente diversa. Um capital como o que supondes receberia um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes, que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte se destinaria a converter a minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra constituiria uma renda inalienável, destinada: 1º a manter o estabelecimento; 2º a assegurar uma existência a quem me suceder e aos que o ajudarem em sua missão; 3º a prover às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de auxílios eventuais, como sou obrigado a fazer, já que a maior parte de seus recursos decorrem do meu trabalho, que terá termo.

Eis o que eu faria; mas se esta satisfação não me é dada, sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo oportuno. Eis por que absolutamente não me inquieto com isto e só me ocupo com o que, para mim, é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.


III.


DOS CISMAS.

Uma questão que logo se apresenta é a dos cismas que poderão nascer no seio da Doutrina. Estará preservado deles o Espiritismo?

Não, certamente, porque terá, sobretudo no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, refratárias a se amalgamarem com as ideias dos demais; e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, se empenham por ligar seus nomes a uma inovação qualquer; dos que criam novidades só para poderem dizer que não pensam ou agem como os outros; ou porque o seu amor-próprio sofre, por não ocuparem senão uma posição secundária; ou, enfim, porque veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar. Mas, como lhes temos dito centenas de vezes: “Quem vos barra o caminho? Quem vos impede de trabalhar por vosso lado? Quem vos proíbe de publicar as vossas obras? A publicidade vos está aberta como a todo o mundo; dai algo de melhor do que o que está, ninguém, a isto se opõe; sede mais apreciados pelo público, e ele vos dará a preferência.”

Se, porém, o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia neutralizar-lhes as consequências e isto é o essencial.

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de' uma teoria racional. Hoje, raros partidários ainda contam esses primitivos sistemas. É este um, fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências se apagarão com a elucidação integral de todas as partes da Doutrina. Mas, haverá sempre os dissidentes, de ânimo prevenido e interessados, por um motivo ou por outro, a constituir bando à parte. Contra a pretensão desses é que cumpre se premunam os demais.

Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. Quando for dito peremptoriamente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém pode pretender que se quis dizer que dois e dois fazem cinco.

Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância.

O segundo ponto está em não se sair do âmbito das ideias práticas. Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.

Se, portanto, uma seita se formar à ilharga do Espiritismo, fundada ou não em seus princípios, de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como já sucedeu a tantas outras, através dos séculos; se suas ideias forem acertadas, mesmo que com relação a um único ponto, a Doutrina, que apenas procura o bem e o verdadeiro onde quer que se encontrem, as assimilará, de sorte que, em vez de ser absorvida, absorverá. Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela os imitará; se fizerem maior bem, ela se esforçará por fazer outro tanto ou mais, se possível; se fizerem mais mal, ela os deixará fazer, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem sobrepuja o mal e o verdadeiro predominará sobre o que é falso. Esta a única luta em que se empenhará.

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da moral espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros; não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo, invariável. Mas, quem poderá lisonjear-se de possuí-la toda? No estado de imperfeição em que se acham os nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdadeiro, em consequência da descoberta de novas leis, e isso tanto na ordem moral, quanto na ordem física. Contra essa eventualidade, a Doutrina nunca deverá estar desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade Em vez de ser uma força, a imobilidade se torna uma causa de fraqueza e de ruína, para quem não acompanha o movimento geral; quebra a unidade, porque os que querem avançar se separam dos que se obstinam em ficar atrás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, cumpre fazê-lo com prudência e evitar ir de cabeça baixa ao encontro dos devaneios da utopia e dos sistemas. É preciso fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Compreende-se que uma doutrina assente sobre tais bases tem que ser realmente forte; ela desafia toda concorrência e neutraliza as pretensões de seus competidores. É para este ponto que os nossos esforços tendem a conduzir a Doutrina Espírita.

Aliás, a experiência já comprovou o acerto desta previsão. Tendo marchado sempre por esse caminho desde a sua origem, a Doutrina avança constantemente, mas sem precipitação, verificando sempre se é sólido o terreno onde pisa e medindo seus passos pelo estado da opinião. Fez como o navegante que não prossegue sem ter na mão a sonda e sem consultar os ventos.


IV.


O CHEFE DO ESPIRITISMO.

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa senda? Quem terá mesmo a força? Quem disporá do tempo e da perseverança necessários para se consagrar ao trabalho incessante que semelhante tarefa exige? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não será de temer que se desvie da sua rota? e que a malevolência, com a qual ainda estará por longo tempo em luta, não procure desfigurar-lhe o espírito? É essa, com efeito, uma questão vital e cuja solução se reveste do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é tão evidente, que já causa inquietação o não ser visto, a surgir no horizonte, o seu condutor. Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar a impulsão, de estimular os zelos, de defender os fracos, de sustentar os ânimos vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de caminhar ao léu. Não somente essa direção é necessária, como também preciso se faz que preencha condições de força e de estabilidade suficientes para afrontar as tempestades.

Os que nenhuma autoridade admitem não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar toda direção, a maioria, os que não se creem infalíveis e não depositam confiança absoluta em suas próprias luzes, se sentem necessitados de um ponto de apoio, de um guia, ainda que apenas para ajudá-los a caminhar com segurança. (Vide a Revista de abril de 1866: O Espiritismo Independente).

Reconhecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados no mundo inteiro? É coisa impraticável. Se se impuser por sua própria autoridade, uns o aceitarão, enquanto que outros o recusarão, e podem surgir vinte pretendentes, levantando bandeira contra bandeira. Fora ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso e ninguém conviria menos do que um ambicioso, por isso mesmo orgulhoso, para chefiar uma doutrina que se baseia na abnegação, no devotamento, no desinteresse, na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, outra coisa não poderia fazer, senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente se daria, se de antemão se não adotassem medidas eficazes a prevenir esse inconveniente.

Admitamos, no entanto, houvesse um homem com todas as qualidades necessárias ao desempenho do seu mandato e que, por uma senda qualquer, chegasse à direção suprema. Os homens se sucedem e não se assemelham; depois de um bom, poderia vir um mau. Com o indivíduo, pode mudar o espírito da direção; sem maus desígnios, pode ele ter modos de ver mais ou menos justos; se entender de fazer que prevaleçam suas ideias pessoais, pode levar a Doutrina a transviar-se, suscitar dissidências e as mesmas dificuldades se renovarão a cada mudança. É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força. Do ponto de vista da organização, é uma criança que mal começa a andar. Insta, pois, sobretudo no princípio, premuni-lo contra os obstáculos do caminho.

Mas, dir-se-á, não virá estar à frente do Espiritismo um dos Espíritos que, segundo foi anunciado, tem que tomar parte na obra da regeneração? É provável; todavia, como esses Espíritos não trarão na fronte um sinal para serem reconhecidos; como não se afirmarão senão por seus atos, e, na maioria, só serão reconhecidos depois de terem morrido, conformemente ao que houverem produzido durante a vida; como, ao demais, não serão perpétuos, mister se torna prever todas as eventualidades.

É sabido que eles terão uma missão multíplice; que serão de todos os graus da escala espiritual e se encontrarão nos diversos ramos da economia [organização] social, onde um exercerá influência a favor das novas ideias, conforme a particularidade da sua posição; que todos, pois, trabalharão pelo ascendente da Doutrina, aqui e ali, uns como chefes de Estado, outros como legistas, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc.; que cada um dará provas de si onde lhe caiba exercer sua atividade, desde o proletário até o soberano, sem que qualquer coisa os distinga do comum dos homens, a não serem suas obras. Se a um deles couber tomar parte na direção, é provável que seja posto providencialmente na posição apropriada a fazê-lo chegar lá pelos meios legais que forem adotados; circunstâncias aparentemente fortuitas até lá o conduzirão, sem que de sua parte haja desígnio premeditado, sem mesmo ter ele consciência de sua missão. (Revista Espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868.)

Em tal caso, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias têm que ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, a só pretensão de ser um messias constituiria a negação dessas qualidades essenciais; provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou tola presunção, em havendo boa-fé, ou insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pseudo-espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou cupidez; outros que alardeiam pretensas revelações com o auxílio das quais procurem salientar-se e fascinar as imaginações por demais crédulas. É também de prever que, sob falsas aparências, indivíduos haja que tentem apoderar-se do leme, com a ideia preconcebida de fazerem soçobrar o navio, desviando-o de sua rota. O navio não soçobrará, mas poderia sofrer prejudiciais atrasos que se devem evitar.

São esses, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo precisa preservar-se. Quanto maior consistência ele adquirir, tanto mais ciladas lhe armarão seus adversários. É, portanto, dever de todos os espíritas sinceros anular as manobras da intriga que se possam urdir, assim nos pequenos, como nos grandes centros. Deverão eles, em primeiro lugar, repudiar, do modo mais absoluto, todo aquele que por si mesmo se apresente qual messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Pelo fruto é que se conhece a árvore; espere-se, pois, que a árvore dê seu fruto, para decidir se ela é boa e veja-se também se os frutos têm sabor. (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XXI, nº 9, “Caracteres do verdadeiro profeta”.)

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer que os candidatos fossem designados pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além de que este meio não obviaria a todos os inconvenientes, apresentaria outros, peculiares a semelhante modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que fora supérfluo lembrar aqui. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos consiste em nos instruir, para que nos melhoremos, porém não em se sobreporem ao nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem ideias, ajudam com seus conselhos, principalmente no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso raciocínio o encargo da execução das coisas materiais, encargo a que não lhes cabe poupar-nos. Em seu mundo eles têm atribuições que não são as da Terra; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições é expor-se às falcatruas dos Espíritos levianos. Contentem-se os homens com o serem assistidos e protegidos por Espíritos bons; não descarreguem, porém, sobre eles, a responsabilidade que incumbe ao encarnado.

Esse meio, aliás, suscitaria maiores embaraços do que se poderia supor, pela dificuldade de fazer-se que todos os grupos participassem de semelhante eleição. Seria uma complicação nas engrenagens e estas tanto menos susceptíveis se mostrarão de desarranjar-se, quanto mais simplificadas forem.

O problema é, pois, o de constituir-se uma direção central, em condições de força e estabilidade, que a ponham ao abrigo de todas as flutuações; que correspondam a todas as necessidades da causa e oponham intransponível barreira às tramas da intriga e da ambição. Tal o objetivo do plano de que vamos dar um rápido esboço.


V.


COMISSÃO CENTRAL.

Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, saídos, no estado de embriões, de uma multidão de focos, se dirigissem para um centro comum, a fim de serem aí examinados e cotejados, de sorte que um só pensamento presidisse à coordenação deles, a fim de ' estabelecer-se a unidade no conjunto e a harmonia entre todas as partes: Se não fosse assim, a Doutrina ter-se-ia assemelhado a esses edifícios híbridos, projetados por vários arquitetos, ou a um mecanismo cujas rodas não se engrenam com precisão umas nas outras.

Já o temos dito, por ser verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina não podia sair, de um único centro, completamente estruturada, da mesma maneira que toda a ciência astronômica não poderia sair, inteiramente constituída, de um único observatório. Qualquer centro que tentasse erguê-la exclusivamente sobre as suas observações faria coisa incompleta e se acharia, com relação a uma infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer cada um a sua doutrina, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo quanto aos fundamentos, difeririam inevitavelmente quanto à forma. Ora, como há muita gente que atenta mais na forma do que na substância, tantas seriam as seitas quantas as formas diferentes. Somente do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais podia resultar a unidade. Por isso é que era necessária a concentração dos trabalhos. (A Gênese, capítulo I, “Caráter da revelação espírita”, nº 51 e seguintes.)

Mas, o que era de vantagem por um certo tempo mais tarde se tornaria inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração se acha concluído, no que concerne às questões fundamentais, que estabelecidos se encontram os princípios gerais da Ciência, a direção, de individual que houve de ser em começo, tem que se tornar coletiva, primeiramente, porque um momento há de vir em que o seu peso excederá as forças de um homem e, em segundo lugar, porque maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos, a cada um dos quais caiba apenas um voto e que nada podem sem o concurso mútuo, do que um só indivíduo, capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será confiada a uma comissão central ou conselho superior permanente — pouco importa o nome — cuja organização e atribuições se definam de maneira a não dar azo ao arbítrio. Essa comissão se comporá, no máximo de doze membros titulares, que deverão, para tal efeito, preencher certas condições indispensáveis, e de igual número de conselheiros. Ela se completará a si mesma, segundo regras igualmente determinadas, de modo a evitar todo favoritismo, à medida que em seu seio se derem vagas por falecimentos ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá o modo por que serão nomeados os doze primeiros.

Cada membro presidirá por sua vez durante um ano, e aquele que preencher esta função será designado por sorteio.

Puramente administrativa será a autoridade do presidente. Ele dirigirá as deliberações da comissão, velará pela execução dos trabalhos e pelo expediente; mas, fora das atribuições que os estatutos constitutivos lhe conferirem, nenhuma decisão poderá tomar sem o concurso da comissão. Portanto, não haverá possibilidade de abusos, nem alimentos para a ambição, nem pretextos para intrigas ou ciúmes, nem supremacia chocante.

A comissão central, ou conselho superior, será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia-geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer por meio da discussão, não será bastante para que haja confusão.

Os congressos serão constituídos por delegados das sociedades particulares, regularmente constituídas, e colocadas sob o patrocínio da comissão por sua adesão e pela conformidade de seus princípios.

Para a comunidade dos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, em suma, de um corpo constituído, representando opinião coletiva, forçosamente terão uma autoridade que jamais teriam, se emanassem de um só indivíduo, que apenas representa uma opinião pessoal. É frequente uma pessoa rejeitar a opinião de outra, por entender que se humilharia, caso se submetesse a essa opinião, e acatar sem dificuldades a de muitos.

Fica bem entendido que aqui se trata de autoridade moral, no que respeita à interpretação e aplicação dos princípios morais da Doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma academia, em matéria de Ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem maior ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, apresenta uma força de resistência e dispõe de meios de ação com que um indivíduo não poderia contar; aquele luta com vantagens infinitamente maiores. Uma individualidade está sujeita a ser atacada e aniquilada; o mesmo já não se dá com uma entidade coletiva.

Há, igualmente, numa entidade coletiva, uma garantia de estabilidade, que não existe, quando tudo recai sobre uma cabeça única. Desde que o indivíduo se ache impedido por uma causa qualquer, tudo fica paralisado. A entidade coletiva, ao contrário, se perpetua incessantemente. Embora perca um ou vários de seus membros, nada periclita.

A dificuldade, dirão, consistirá em reunir, de modo permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que sejam acordes no tocante aos princípios fundamentais. Ora, isso constituirá uma condição absoluta para que sejam admitidas à direção, como para a de todos os que desta hajam de participar. Sobre as questões pendentes de detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto a opinião da maioria é que prevalecerá. Àquele cuja maneira de ver for acertada, não faltarão razões boas com que a justifique. Se algum, contrariado por não conseguir que suas ideias predominem, se retirar, nem por isso deixariam as coisas de seguir o seu curso e motivo não haveria para se lhe deplorar a saída, pois que teria dado prova de uma susceptibilidade orgulhosa, pouco espírita, e que poderia tornar-se origem de perturbações.

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, do momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião. É esta uma questão de minúcia prevista na organização.

Admitamos que entre os membros da comissão haja um irmão falso, um traidor, que os inimigos da causa tenham ganho para si: que logrará ele fazer, não dispondo senão do seu voto nas decisões? Suponhamos que, por impossível, toda a comissão enverede por mau caminho: aí estarão os congressos para reconduzi-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração pertencerá aos congressos, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra a comissão central, por infração do seu mandato, por violação dos princípios estabelecidos, ou por medidas prejudiciais à Doutrina. Por isso é que se apelará da comissão para o congresso, nas circunstâncias em que se julgue que a responsabilidade da primeira está gravemente comprometida.

Sendo os congressos um freio para a comissão, na aprovação deles haure esta última novas forças. É assim que o chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem risco para si próprio, afastar-se do caminho reto.

Quando a comissão estiver organizada, dela faremos parte como simples membro seu, dando-lhe a nossa colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.


[DEPARTAMENTOS DA COMISSÃO CENTRAL.]


Às atribuições gerais da comissão serão anexados, como dependências locais:

1º Uma biblioteca, onde se encontrem reunidas todas as obras que interessem o Espiritismo e que possam ser consultadas no local, ou cedidas para leitura fora;

2º Um museu, onde se achem colecionadas as primeiras obras de arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos a quem a causa muito deva pelo devotamento que tenham demonstrado, os dos homens a quem o Espiritismo renda homenagens, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da Humanidade, grandes gênios missionários do progresso, etc.

3º Um dispensário destinado às consultas médicas gratuitas e ao tratamento médico de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4º Uma caixa de socorros e de previdência, em condições práticas;

5º Um asilo;

6º Uma sociedade de adeptos, que celebre sessões regulares.


VI.


OBRAS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA.

Muitas pessoas lamentam que as obras fundamentais da Doutrina tenham um preço tão elevado para grande número de leitores, e pensam, com razão, que se fossem feitas edições populares a baixo custo, estariam muito mais espalhadas, com o que ganharia a Doutrina.

Estamos completamente de acordo; mas, no estado atual das coisas, as condições em que são editadas não permitem que o sejam de outro modo. Esperamos chegar um dia a esse resultado, com o auxílio de uma nova combinação que se ligue ao plano geral de organização. Mas essa operação não pode ser realizada senão empreendida em vasta escala; só de nossa parte exigiria capitais que não possuímos, e trabalhos materiais que os nossos trabalhos, que reclamam todas as nossas meditações, não nos permitem dar. É por isto que a parte comercial propriamente dita foi negligenciada ou, melhor dizendo, sacrificada ao estabelecimento da parte doutrinária. O que importava, antes de tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da Doutrina.

Em se achando organizado pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que as gerirá e cuidará da publicação delas, pelos meios mais apropriados a popularizá-las. Ela também deverá cuidar de que sejam traduzidas nas principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário que conservasse seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade.

Fomos, por diversas vezes, solicitados a fazê-la circular mais amiúde; por muito lisonjeiro, porém, que nos fosse esse desejo, não pudemos atendê-lo, primeiramente, porque o tempo material não nos consentia esse acréscimo de trabalho e, em segundo lugar, porque importava não perdesse ela o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima do seu termo, as necessidades já não são as mesmas; a Revista se tornará, como as nossas outras obras, feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior vantagem do Espiritismo, sem que, por isso, renunciemos a lhe prestar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, falta-nos publicar vários trabalhos, que não formam a parte menos difícil, nem menos penosa. Conquanto já disponhamos de todos os elementos para o executar e o programa de cada um esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dispensar-lhes mais acurada atenção e ativá-los, se, por instituída a comissão central, estivéssemos livres de outros cuidados que absorvem grande parte do nosso tempo.


VII.


ATRIBUIÇÕES DO COMITÊ.

Serão estas as atribuições principais da comissão central:

1º Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propagação; manter-lhe a unidade, pela conservação da integridade dos princípios firmados; prover ao desenvolvimento de suas consequências;

2º O estudo dos novos princípios, susceptíveis de entrar no corpo da Doutrina;

3º A concentração, em seu poder, de todos os documentos e informações que interessem ao Espiritismo;

4º A correspondência;

5º A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos diversos países;

6º A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo e à qual se poderá juntar outra publicação periódica;

7º O exame e apreciação das obras, dos artigos de jornais e de todos os escritos que interessem à Doutrina; a refutação dos ataques, se aparecerem;

8º A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais favoráveis à sua vulgarização; a elaboração e publicação das de que daremos o plano e que não teremos tempo de executar em nossa atual existência; o apoio de que precisem as publicações que sejam de proveito para a causa;

9º A fundação e conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10º A administração da caixa de socorros, do dispensário e do asilo;

11º A administração dos negócios materiais;

12º A direção das sessões da Sociedade;

13º O ensino oral;

14º As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob o seu patrocínio;

15º A convocação dos congressos e assembleias gerais.


Estas atribuições os membros da comissão as distribuirão entre si, conforme a especialidade de cada um, sendo eles, se for preciso, assistidos por certo número de auxiliares ou de simples empregados.

Em consequência, entre os membros da comissão haverá:

Um secretário-geral para a correspondência e as atas das sessões da comissão;

Um redator-chefe para Revista e as outras publicações;

Um bibliotecário-arquivista, encarregado, além disso, do exame e das apreciações criticas das obras e artigos de jornais;

Um diretor da caixa de socorros, também encarregado da direção do dispensário, das visitas aos doentes e necessitados e de tudo o que se refere à beneficência. Será secundado por uma comissão de beneficência escolhida no seio da Sociedade, e formada de pessoas caridosas de boa vontade;

Um administrador-contador, encarregado dos negócios e dos interesses materiais;

Um diretor especial para os negócios concernentes às publicações;

Oradores para o ensino oral, encarregados, ademais, de visitar as sociedades dos Departamentos e aí dar instruções. Poderão ser tomados entre os membros auxiliares e os adeptos de boa vontade que, para tanto, receberão um mandato especial.

Seja qual for a extensão ulterior dos negócios e do pessoal administrativo, a comissão será sempre limitada ao mesmo número de membros titulares.

Até agora tivemos de nos bastar mais ou menos sozinhos a este programa. Por isso mesmo, algumas de suas partes foram negligenciadas ou apenas puderam ser esboçadas, e as que são mais especialmente da nossa alçada, tiveram que sofrer inevitáveis atrasos, pela necessidade de nos ocupar de tantas coisas, quando o tempo e as forças têm limites e uma só absorveria o tempo de um homem.


VIII.


VIAS E MEIOS.

É de lastimar, sem dúvida, que tenhamos de entrar em considerações de ordem material, para alcançarmos um objetivo todo espiritual. Cumpre, porém, observemos, que a espiritualidade mesma da obra se prende à questão da Humanidade terrena e do seu bem-estar; que já não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e de durável, para a extensão e a consolidação da Doutrina, à qual é preciso fazer produzir os frutos de que é susceptível de dar. Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com um bastão de viagem, sem cogitarem de saber onde pousariam, nem do que comeriam, fora alimentar uma ilusão que bem depressa amarga decepção destruiria. Para alguém fazer qualquer coisa de sério, tem que se submeter às necessidades impostas pelos costumes da época em que vive e essas necessidades são muito diversas da dos tempos da vida patriarcal. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que se apreciem os meios de ação, para não ser forçoso parar a meio do caminho. Apreciemo-los, portanto, uma vez que estamos num século em que é preciso calcular tudo.

São em grande número, como se vê, as atribuições da comissão central, para necessitarem de uma verdadeira administração. Tendo cada um de seus membros funções ativas e assíduas, se apenas a constituíssem homens de boa vontade, os trabalhos seriam prejudicados, porquanto ninguém teria o direito de censurar os negligentes. Para regularidade dos trabalhos e normalidade do expediente, necessário se torna contar com homens de cuja assiduidade se possa estar certo e que não considerem suas funções como simples atos de comprazer. De quanto mais independência eles forem senhores, pelos seus recursos pessoais, tanto menos se deixarão prender por ocupações assíduas; se não dispuserem de tempo, não poderão consagrá-lo àquelas funções. Importa, pois, que sejam retribuídos, assim como o pessoal administrativo. Com isso a Doutrina ganhará em força, em estabilidade, em pontualidade, do mesmo passo que constituirá um meio de prestar serviços a pessoas que dela necessitem.

Ponto essencial, na economia de toda administração previdente, é que sua existência não dependa de produtos eventuais que possam fazer falta, mas de recursos certos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não seja embaraçada. Insta, pois, que as pessoas que forem chamadas a lhe prestar concurso, não se sintam inquietas quanto ao futuro que as aguarde. Ora, a experiência demonstra que se devem considerar essencialmente aleatórios os recursos que apenas tenham por base o produto de cotas ou contribuições, sempre facultativas, quaisquer que sejam os compromissos contraídos, e de cobrança sempre difícil. Assentar despesas permanentes e regulares sobre recursos eventuais, implicaria falta de previdência, que mais tarde se haveria de deplorar. Menos graves são, sem dúvida, as consequências, quando se trate de fundações temporárias, destinadas a durar quanto possam; aqui, porém, é uma questão de futuro. A sorte de uma administração como esta não pode ficar subordinada aos azares de um negócio comercial; precisa ser, desde o seu início, se não tão florescente, pelo menos tão estável quanto o será daqui a um século. Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em tal caso a mais vulgar prudência manda se capitalizem, de forma inalienável, os recursos, à proporção que vão sendo obtidos, a fim de constituir-se uma renda perpétua, a coberto de todas as eventualidades. Regulando a administração a sua despesa pela renda que aufira, não pode a sua existência, em nenhum caso, achar-se comprometida, pois que disporá sempre de meios para funcionar. Pode, no começo, organizar-se em menor escala; o número de membros da comissão poderá ser limitado provisoriamente a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, salvo para proporcionar o desenvolvimento pelo acréscimo dos recursos e das necessidades da causa, considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora membro ativo da comissão central, não pesaremos de forma alguma no seu orçamento, nem por honorários, nem por despesas de viagens, nem por outra causa qualquer. Se nunca a ninguém nada pedimos para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância. Nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parcela dos recursos de que dispuser a comissão será desviada em proveito nosso.

Dar-lhe-emos, ao contrário, a nossa contribuição:

1º Abrindo mão, em seu favor, do que produzam as nossas obras, feitas e por fazer;

2º Doando-lhe valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da Doutrina, e não para aí conquistarmos uma posição da qual não necessitamos. Foi para preparar as vias desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de haver posto a primeira pedra.

Figuremos então que, de um modo ou de outro, a comissão central, em dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe uma renda de 25 a 30.000 francos. Restringindo, em começo, as suas despesas, os recursos de toda espécie de que disponha, em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que será objeto de uma contabilidade rigorosa. Reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda irá aumentar o capital comum. Proporcionalmente, com os recursos desse capital é que a comissão proverá às diversas despesas proveitosas ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais faça dele aplicação pessoal, nem fonte de especulação para qualquer de seus membros: Ao demais, o emprego dos fundos e escrituração serão submetidos à verificação de comissários especiais, designados, para esse efeito, pelos congressos ou assembleias gerais.

A comissão terá por um de seus primeiros cuidados ocupar-se com as publicações, desde que seja possível, sem esperar que o possa fazer com o auxílio das rendas. Os fundos a isso destinados não serão, em realidade, mais que um adiantamento, pois que voltarão à caixa, em virtude da venda das obras, cujo produto reverterá ao capital comum. É um negócio de administração.

Para dar a esta instituição uma existência legal, ao abrigo de toda contestação, dar-lhe, além disso, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se for julgado necessário, por ato autêntico, sob forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos, prorrogável indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se de seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias da comissão, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas ligamos; queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

A criação de uma caixa geral de socorros é impraticável e apresenta sérios inconvenientes, como já o demonstramos em artigo especial. (Revista de julho de 1866). A comissão não deve, pois, tomar um caminho que teria de abandonar ao cabo de pouco tempo, nem empreender coisa alguma que não esteja certa de poder realizar. Ela precisa ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas. Esse o meio de caminhar longo tempo e com segurança. Para isso, cumpre-lhe ficar sempre dentro dos limites do possível.

Essa caixa de socorros não pode e não deve ser mais do que uma instituição local, de ação circunscrita e cuja prudente organização sirva de modelo às do mesmo gênero que as sociedades particulares venham a criar. Pela sua multiplicidade é que elas prestarão serviços eficazes e não pela centralização dos meios de ação.

Será alimentada: 1º pelas parcelas, que se lhe destinem, tiradas da renda da caixa geral do Espiritismo; 2º pelos donativos especiais que lhe forem feitos. Ela capitalizará as somas que receber, de maneira a constituir para si um rendimento. Com essa renda é que prestará os socorros temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações do seu mandato, estipuladas no regulamento da sua constituição.

O projeto de um asilo, na acepção completa do termo, não poderá ter execução logo de começo, pelos capitais que reclamaria semelhante fundação e, ao demais, porque é preciso dar à administração tempo de se firmar e de atuar com regularidade, antes de complicar suas atribuições com empreendimentos que possam malograr-se. Fora imprudência tentar muitas coisas, antes de estar certa de dispor dos meios de execução. É o que facilmente se compreenderá, desde que se pense em todos os pormenores inerentes a estabelecimentos desse gênero. Convém, sem dúvida, alimentar boas intenções, mas, antes de tudo, mister se faz poder realizá-las.


IX.


CONCLUSÃO.

Tais são as bases principais da organização que nos propomos dar ao Espiritismo, se as circunstâncias no-lo permitirem. Tivemos que desenvolver os motivos um tanto longamente, a fim de dar a conhecer o seu espírito. Os detalhes serão objeto de uma regulamentação minuciosa, na qual todos os casos serão previstos de maneira a levantar todas as dificuldades de execução.

Consequente com os princípios de tolerância e de respeito a todas as opiniões, que o Espiritismo professa, não pretendemos impor esta organização a ninguém, nem constranger quem quer que seja a se submeter a ela. Nosso objetivo é estabelecer um primeiro laço entre os espíritas, que o desejam desde muito tempo e se lastimam de seu isolamento. Ora, esse laço, sem o qual o Espiritismo, permanecendo no estado de opinião individual, sem coesão, só pode existir com a condição de se religar a um centro por uma comunhão de vistas e de princípios. Esse centro não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, agindo no interesse geral e na qual a autoridade pessoal se apaga.

Se ele não existisse, qual teria sido o ponto de ligação dos espíritas disseminados em diferentes países? Não podendo comunicar suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, eles também espalhados, e muitas vezes sem consistência, teriam ficado isolados e, com isto, sofrido a difusão da Doutrina. Era preciso, pois, um ponto aonde todos chegassem e de onde tudo pudesse irradiar. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar inútil esse centro, faria sentir melhor a sua necessidade, porque a necessidade de aproximação e de formação de um feixe será tanto maior quanto mais considerável for o número de adeptos.

Mas qual será a extensão do círculo de atividades desse centro? É destinado a reger o mundo e a tornar-se o árbitro universal da verdade? Se tivesse essa pretensão, seria compreender mal o espírito do Espiritismo que, por isso mesmo que proclama os princípios do livre-exame e da liberdade de consciência, repudia a ideia de se erigir em autocracia; desde o começo entraria numa senda fatal.

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da Natureza, e não sobre abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira, que os espíritas do mundo inteiro estarão sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder, que deverão esperar a luz de um ponto fixo, para o qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma única nação, governada por um só chefe, regida pelo mesmo código de leis e submetidas aos mesmos costumes. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos hábitos, aos caracteres e aos climas de cada uma.

Assim será com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo inteiro terão princípios comuns, que os ligarão à grande família pelo laço sagrado da fraternidade, mas cuja aplicação poderá variar conforme as regiões, sem que, por isto, seja rompida a unidade fundamental, sem formar seitas dissidentes que se atirem a pedra e o anátema, o que seria antiespírita em alto grau. Poderão, pois, se formar, e inevitavelmente se formarão, centros gerais em diferentes países, sem outro laço além da comunhão de crença e a solidariedade moral, sem subordinação de um ao outro, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de impor-se aos espíritas americanos e reciprocamente.

A comparação dos observatórios, que citamos acima, é perfeitamente justa. Há observatórios em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, estão baseados em princípios gerais e reconhecidos da Astronomia, o que, por isso, não os torna tributários uns dos outros; cada um regula seus trabalhos como entende; comunicam-se as suas observações, e cada um põe a serviço da Ciência as descobertas de seus confrades. Dar-se-á o mesmo com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão o que tiverem de bom e aplicável aos costumes das regiões onde estiverem estabelecidos, pois o seu objetivo é o bem da Humanidade, e não a satisfação das ambições pessoais. O Espiritismo é uma questão de fundo; prender-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os diversos centros, que estiverem no verdadeiro espírito do Espiritismo, deverão estender-se a mão fraterna e se unirem no combate aos seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.








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