Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868
Versão para cópiaCapítulo XXXI
Junho - A morte do Sr. Bizet, cura de Sétif
Junho
A fome entre os Espíritos
Um dos nossos correspondentes da Argélia nos informa, nos termos seguintes, sobre a morte do Sr. Bizet, cura de Sétif:
“O Sr. Bizet, cura de Sétif, faleceu a 15 de abril, com a idade de quarenta e três anos, sem dúvida vitimado por seu zelo durante a cólera e pelas fadigas suportadas durante a fome, quando desenvolveu uma atividade e uma dedicação verdadeiramente exemplares.
Nascido nas proximidades de Viviers, no departamento de Ardèche, ele era, há dezessete anos, pastor desta cidade, onde tinha sabido conciliar as simpatias de todos os habitantes, sem distinção de culto, por sua prudência, sua moderação e a sabedoria de seu caráter.
“No começo do Espiritismo nesta localidade, e principalmente quando o Echo de Sétif proclamou abertamente esta doutrina, por um instante o Sr. Bizet teve a intenção de combatê-lo; entretanto, absteve-se de entrar na luta que estavam decididos a sustentar. Depois, tinha lido as vossas obras com atenção. É possivelmente a essa leitura que se deve atribuir a sua reserva cheia de sabedoria, quando foi determinado que ele lesse do púlpito o famoso mandamento de Monsenhor Pavie, bispo de Argel, que qualificava o Espiritismo como esta nova vergonha da Argélia. O Sr. Bizet não quis ler em pessoa esse mandamento do púlpito: fe-lo ler por seu vigário, sem lhe acrescentar qualquer comentário.”
Além disto, extraímos do Journal de Sétif, de 23 de abril, a seguinte passagem do necrológio que ele publicou sobre o Sr. Bizet.
“No dia seguinte à sua morte, a 15 de abril, celebraram-se as suas exéquias. A missa de réquiem foi cantada às dez horas da manhã, pelo repouso de sua alma; um dos senhores grandes vigários, enviado há alguns dias pelo Sr. bispo, era o oficiante. Nenhum setifiano faltou; as diversas religiões estavam reunidas e misturadas para dizer um adeus ao Sr. cura Bizet. Os árabes, representados por caïds e cadhis; os israelitas pelo rabino e pelos principais notáveis dentre eles; os protestantes por seu pastor, lá estavam, rivalizando em zelo e dedicação para prestar ao Sr. cura Bizet um último testemunho de simpatia, de afeição e de pesar.
“A reunião de tantas comunhões diversas num mesmo sentimento de simpatia é um dos mais belos sucessos conquistados pela caridade cristã que, no curso de seu apostolado em Sétif, não cessou de animar o Sr. padre Bizet. Vivendo em meio a uma população que está longe de ser homogênea, e na qual se encontram dissidentes de todos os tipos, ele soube conservar intacto o legado católico que lhe tinha sido confiado, ao mesmo tempo conservando com os que não partilhavam de suas convicções religiosas, relações benevolentes e afetuosas que lhe valeram a simpatia de todos.
“Mas o que transbordava de todos os corações era a lembrança dos sentimentos de caridade cristã que animavam o Sr. padre Bizet. Sua caridade era suave, sobretudo paciente, durante o longo inverno que acabamos de atravessar, em meio a uma miséria horrível que tinha posto a seu encargo uma multidão de infelizes. Sua caridade tudo acreditava, tudo esperava, tudo suportava e jamais se desencorajava. Foi no meio desse devotamento para socorrer os infelizes esfomeados, diariamente ameaçados de morrer de frio e de fome, que ele contraiu o germe da moléstia que o levou deste mundo, se é que já não estava atingido, devido ao zelo excepcional que desenvolveu durante a cólera no verão passado.”
O Sr. Bizet era espírita? Ostensivamente, não; interiormente, ignoramo-lo. Se não o era, pelo menos tinha o bom espírito de não lançar o anátema a uma crença que conduz a Deus os incrédulos e os indiferentes. Ademais, que nos importa? Era um homem de bem, um verdadeiro cristão, um sacerdote segundo o Evangelho. Assim, se nos tivesse sido hostil, nem por isto os espíritas deixariam de tê-lo colocado na classe dos homens cuja memória a Humanidade deve honrar e que ela deve tomar como modelo.
A Sociedade de Paris quis dar-lhe um testemunho de sua respeitosa simpatia, chamando-o ao seu seio, onde ele deu a seguinte comunicação:
Sociedade de Paris, 14 de maio de 1868 “Estou contente, senhor, pelo benevolente apelo que tiveste a bondade de me dirigir, e ao qual considero uma honra e um prazer responder. Se não vim imediatamente ao vosso meio, é que a perturbação da separação e o espetáculo novo que me chocou não mo permitiram. E depois, eu não sabia a quem escutar; encontrei muitos amigos cujo acolhimento simpático me ajudou poderosamente a me reconhecer; mas também tive sob os olhos o atroz espetáculo da fome entre os Espíritos. Encontrei lá em cima muitos desses infelizes que morreram nas torturas da fome, ainda procurando em vão satisfazer uma necessidade imaginária, lutando uns contra os outros para arrancar um pouco de comida que se esconde nas suas mãos, dilacerando-se uns aos outros e, se assim posso dizer, se entredevorando; uma cena horrível, pavorosa, ultrapassando tudo quanto a imaginação humana pode conceber de mais desolador!... Inúmeros desses infelizes me reconheceram, e seu primeiro grito foi: Pão! Era em vão que eu tentava lhes fazer compreender sua situação; eles estavam surdos às minhas consolações. ─ Que coisa terrível é a morte em semelhantes condições, e como aquele espetáculo é mesmo de natureza a fazer refletir sobre o nada de certos pensamentos humanos!... Assim, enquanto na Terra pensamos que os que partiram ao menos estão livres da tortura cruel que sofriam, percebemos no outro lado que não é nada disto, e que o quadro não é menos sombrio, embora os atores tenham mudado de aparência.
“Vós me perguntais se eu era espírita. Se entendeis por esta palavra aceitar todas as crenças que vossa doutrina preconiza, não, eu não chegava até lá. Eu admirava os vossos princípios; julgava-os capazes de fazer a salvação dos que sinceramente os põem em prática, mas fazia minhas reservas sobre um grande número de pontos. Eu não segui, em relação a vós, o exemplo de meus confrades e de alguns de meus superiores, que eu interiormente censurava, porque sempre pensei que a intolerância era a mãe da incredulidade e que era preferível ter uma crença que levava à caridade e á prática do bem, do que não ter crença nenhuma. Era eu espírita de fato? Não me cabe pronunciar-me a respeito.
“Quanto ao pouco bem que pude fazer, estou realmente confuso com os exagerados elogios de que me tornaram objeto. Quem não teria agido como eu?... Não são ainda mais merecedores do que eu, se nisto há algum mérito, os que se devotaram em socorrer os infelizes árabes, e que a isto não foram levados senão pelo amor ao bem?... Para mim, a caridade era um dever, por força do caráter de que eu estava revestido. Faltando a ela eu era culpado, eu teria mentido a Deus e aos homens aos quais eu havia consagrado a minha existência. Ademais, quem poderia ter ficado insensível ante tantas misérias?...
“Vós o vedes, fizeram como sempre: ampliaram enormemente os fatos; cercaram-me de uma espécie de renome que me deixa confuso e magoado e pelo que sofro em meu amor próprio, porque, enfim, bem sei que não mereço tudo isto, e estou bem certo, senhor, que me conhecendo melhor, reduzireis ao seu justo valor o alarido que fazem em torno de mim. Se tenho algum mérito, que mo concedam, concordo, mas que não me ergam um pedestal com uma reputação usurpada, pois eu não poderia concordar com isto.
“Como vedes, senhor, ainda estou muito novo neste mundo novo para mim, sobretudo muito ignorante e mais desejoso de instruir-me do que capaz de instruir os outros. Hoje vossos princípios me parecem tanto mais justos quanto, depois de haver lido a sua teoria, vejo a sua mais larga aplicação prática. Assim, ficaria feliz assimilando-os completamente e vos ficaria reconhecido se tivésseis a bondade de me aceitar algumas vezes como um dos vossos ouvintes.
“Cura BIZET.”
OBSERVAÇÃO: A quem quer que não conheça a verdadeira constituição do mundo invisível, parecerá estranho que Espíritos que, segundo eles, são seres abstratos, imateriais, indefinidos, sem corpo, sejam vítimas dos horrores da fome; mas o espanto cessa quando se sabe que esses mesmos Espíritos são seres como nós, que têm um corpo fluídico, é verdade, mas que não deixa de ser matéria; que deixando o seu envoltório carnal, certos Espíritos continuam a vida terrena com as mesmas vicissitudes, durante um tempo mais ou menos longo. Isto parece singular, mas assim é, e a observação nos ensina que essa é a situação dos Espíritos que viveram mais a vida material do que a vida espiritual, situação por vezes terrível, porque a ilusão das necessidades da carne se faz sentir, e eles têm todas as angústias de uma necessidade impossível de saciar. O suplício mitológico de Tântalo, entre os Antigos, acusa um conhecimento mais exato do que se supõe, do estado do mundo de além-túmulo, sobretudo mais exato do que entre os modernos.
Muito diferente é a posição daqueles que desde esta vida se desmaterializaram pela elevação de seus pensamentos e sua identificação com a vida futura. Todas as dores da vida corporal cessam com o último suspiro, e logo o Espírito plana, radioso, no mundo etéreo, feliz como um prisioneiro livre de suas cadeias.
Quem nos disse isto? É um sistema, uma teoria? Alguém disse que deveria ser assim, e nós acreditamos sob palavra? Não; são os próprios habitantes do mundo invisível que o repetem em todos os pontos do globo, para ensinamento dos encarnados.
Sim, legiões de Espíritos continuam a vida corporal com suas torturas e suas angústias. Mas quais? Aqueles que ainda estão muito avassalados à matéria para dela se destacarem instantaneamente. É uma crueldade do Ser Supremo? Não. É uma lei da Natureza, inerente ao estado de inferioridade dos Espíritos e necessária ao seu adiantamento; é uma prolongação mista da vida terrestre durante alguns dias, alguns meses, alguns anos, conforme o estado moral dos indivíduos. Teriam competência para taxar de barbárie essa legislação, aqueles que preconizam o dogma das penas eternas irremissíveis e as chamas do inferno como um efeito da soberana justiça? Podem eles pô-la em paralelo com uma situação temporária, sempre subordinada à vontade do indivíduo de progredir; à possibilidade de avançar por novas encarnações? Ademais, não depende de cada um libertar-se dessa vida intermediária que não é verdadeiramente nem a vida material nem a espiritual? Os espíritas dela se libertam naturalmente, porque, compreendendo o estado do mundo espiritual antes de nele entrar, imediatamente se dão conta de sua situação.
As evocações nos mostram uma porção de Espírito que ainda se julgam deste mundo: suicidas, supliciados que não suspeitam que estão mortos e sofrem o seu gênero de morte; outros que assistem ao próprio enterro, como ao de um estranho; avarentos que guardam os seus tesouros, soberanos que julgam ainda mandar e ficam furiosos por não serem obedecidos; depois de grandes naufrágios, náufragos que lutam contra o furor das ondas; depois de uma batalha, soldados que continuam lutando e, ao lado disto, Espíritos radiosos, que nada mais têm de terrestre e são para os encarnados o que a borboleta é para a lagarta. Pode-se perguntar para que servem as evocações, quando nos dão a conhecer, até nos mínimos detalhes, esse mundo que nos espera a todos, ao sairmos deste? É a Humanidade encarnada que conversa com a Humanidade desencarnada; o prisioneiro que fala com o homem livre. Não, por certo elas para nada servem ao homem superficial que nisto só vê um divertimento; elas não lhe servem mais do que servem a Física e a Química recreativas para a sua instrução. Mas para o filósofo, o observador sério que pensa no amanhã da vida, é uma grande e salutar lição; é todo um mundo novo que se descobre; é a luz atirada sobre o futuro; é a destruição dos preconceitos seculares sobre a alma e a vida futura; é a sanção da solidariedade universal que liga todos os seres. Talvez digam que podemos estar enganados; sem dúvida, como nos podemos enganar sobre todas as coisas, mesmo sobre as que vemos e tocamos. Tudo depende da maneira de observar.
O quadro apresentado pelo padre Bizet nada tem, pois, de estranho; ele vem, ao contrário, confirmar, por mais um grande exemplo, o que já sabíamos, e o que afasta toda ideia de repercussão de pensamentos, é que ele o fez espontaneamente, sem que ninguém pensasse em chamar sua atenção sobre aquele ponto. Por que, então, teria vindo dizer, sem que se lhe perguntassem, se aquilo não fosse verdadeiro? Sem dúvida ele a isto foi levado para a nossa instrução. Ademais, toda a comunicação tem um cunho de seriedade, de sinceridade e de modéstia que é bem compatível com o seu caráter e que não é próprio dos Espíritos mistificadores.
“O Sr. Bizet, cura de Sétif, faleceu a 15 de abril, com a idade de quarenta e três anos, sem dúvida vitimado por seu zelo durante a cólera e pelas fadigas suportadas durante a fome, quando desenvolveu uma atividade e uma dedicação verdadeiramente exemplares.
Nascido nas proximidades de Viviers, no departamento de Ardèche, ele era, há dezessete anos, pastor desta cidade, onde tinha sabido conciliar as simpatias de todos os habitantes, sem distinção de culto, por sua prudência, sua moderação e a sabedoria de seu caráter.
“No começo do Espiritismo nesta localidade, e principalmente quando o Echo de Sétif proclamou abertamente esta doutrina, por um instante o Sr. Bizet teve a intenção de combatê-lo; entretanto, absteve-se de entrar na luta que estavam decididos a sustentar. Depois, tinha lido as vossas obras com atenção. É possivelmente a essa leitura que se deve atribuir a sua reserva cheia de sabedoria, quando foi determinado que ele lesse do púlpito o famoso mandamento de Monsenhor Pavie, bispo de Argel, que qualificava o Espiritismo como esta nova vergonha da Argélia. O Sr. Bizet não quis ler em pessoa esse mandamento do púlpito: fe-lo ler por seu vigário, sem lhe acrescentar qualquer comentário.”
Além disto, extraímos do Journal de Sétif, de 23 de abril, a seguinte passagem do necrológio que ele publicou sobre o Sr. Bizet.
“No dia seguinte à sua morte, a 15 de abril, celebraram-se as suas exéquias. A missa de réquiem foi cantada às dez horas da manhã, pelo repouso de sua alma; um dos senhores grandes vigários, enviado há alguns dias pelo Sr. bispo, era o oficiante. Nenhum setifiano faltou; as diversas religiões estavam reunidas e misturadas para dizer um adeus ao Sr. cura Bizet. Os árabes, representados por caïds e cadhis; os israelitas pelo rabino e pelos principais notáveis dentre eles; os protestantes por seu pastor, lá estavam, rivalizando em zelo e dedicação para prestar ao Sr. cura Bizet um último testemunho de simpatia, de afeição e de pesar.
“A reunião de tantas comunhões diversas num mesmo sentimento de simpatia é um dos mais belos sucessos conquistados pela caridade cristã que, no curso de seu apostolado em Sétif, não cessou de animar o Sr. padre Bizet. Vivendo em meio a uma população que está longe de ser homogênea, e na qual se encontram dissidentes de todos os tipos, ele soube conservar intacto o legado católico que lhe tinha sido confiado, ao mesmo tempo conservando com os que não partilhavam de suas convicções religiosas, relações benevolentes e afetuosas que lhe valeram a simpatia de todos.
“Mas o que transbordava de todos os corações era a lembrança dos sentimentos de caridade cristã que animavam o Sr. padre Bizet. Sua caridade era suave, sobretudo paciente, durante o longo inverno que acabamos de atravessar, em meio a uma miséria horrível que tinha posto a seu encargo uma multidão de infelizes. Sua caridade tudo acreditava, tudo esperava, tudo suportava e jamais se desencorajava. Foi no meio desse devotamento para socorrer os infelizes esfomeados, diariamente ameaçados de morrer de frio e de fome, que ele contraiu o germe da moléstia que o levou deste mundo, se é que já não estava atingido, devido ao zelo excepcional que desenvolveu durante a cólera no verão passado.”
O Sr. Bizet era espírita? Ostensivamente, não; interiormente, ignoramo-lo. Se não o era, pelo menos tinha o bom espírito de não lançar o anátema a uma crença que conduz a Deus os incrédulos e os indiferentes. Ademais, que nos importa? Era um homem de bem, um verdadeiro cristão, um sacerdote segundo o Evangelho. Assim, se nos tivesse sido hostil, nem por isto os espíritas deixariam de tê-lo colocado na classe dos homens cuja memória a Humanidade deve honrar e que ela deve tomar como modelo.
A Sociedade de Paris quis dar-lhe um testemunho de sua respeitosa simpatia, chamando-o ao seu seio, onde ele deu a seguinte comunicação:
Sociedade de Paris, 14 de maio de 1868 “Estou contente, senhor, pelo benevolente apelo que tiveste a bondade de me dirigir, e ao qual considero uma honra e um prazer responder. Se não vim imediatamente ao vosso meio, é que a perturbação da separação e o espetáculo novo que me chocou não mo permitiram. E depois, eu não sabia a quem escutar; encontrei muitos amigos cujo acolhimento simpático me ajudou poderosamente a me reconhecer; mas também tive sob os olhos o atroz espetáculo da fome entre os Espíritos. Encontrei lá em cima muitos desses infelizes que morreram nas torturas da fome, ainda procurando em vão satisfazer uma necessidade imaginária, lutando uns contra os outros para arrancar um pouco de comida que se esconde nas suas mãos, dilacerando-se uns aos outros e, se assim posso dizer, se entredevorando; uma cena horrível, pavorosa, ultrapassando tudo quanto a imaginação humana pode conceber de mais desolador!... Inúmeros desses infelizes me reconheceram, e seu primeiro grito foi: Pão! Era em vão que eu tentava lhes fazer compreender sua situação; eles estavam surdos às minhas consolações. ─ Que coisa terrível é a morte em semelhantes condições, e como aquele espetáculo é mesmo de natureza a fazer refletir sobre o nada de certos pensamentos humanos!... Assim, enquanto na Terra pensamos que os que partiram ao menos estão livres da tortura cruel que sofriam, percebemos no outro lado que não é nada disto, e que o quadro não é menos sombrio, embora os atores tenham mudado de aparência.
“Vós me perguntais se eu era espírita. Se entendeis por esta palavra aceitar todas as crenças que vossa doutrina preconiza, não, eu não chegava até lá. Eu admirava os vossos princípios; julgava-os capazes de fazer a salvação dos que sinceramente os põem em prática, mas fazia minhas reservas sobre um grande número de pontos. Eu não segui, em relação a vós, o exemplo de meus confrades e de alguns de meus superiores, que eu interiormente censurava, porque sempre pensei que a intolerância era a mãe da incredulidade e que era preferível ter uma crença que levava à caridade e á prática do bem, do que não ter crença nenhuma. Era eu espírita de fato? Não me cabe pronunciar-me a respeito.
“Quanto ao pouco bem que pude fazer, estou realmente confuso com os exagerados elogios de que me tornaram objeto. Quem não teria agido como eu?... Não são ainda mais merecedores do que eu, se nisto há algum mérito, os que se devotaram em socorrer os infelizes árabes, e que a isto não foram levados senão pelo amor ao bem?... Para mim, a caridade era um dever, por força do caráter de que eu estava revestido. Faltando a ela eu era culpado, eu teria mentido a Deus e aos homens aos quais eu havia consagrado a minha existência. Ademais, quem poderia ter ficado insensível ante tantas misérias?...
“Vós o vedes, fizeram como sempre: ampliaram enormemente os fatos; cercaram-me de uma espécie de renome que me deixa confuso e magoado e pelo que sofro em meu amor próprio, porque, enfim, bem sei que não mereço tudo isto, e estou bem certo, senhor, que me conhecendo melhor, reduzireis ao seu justo valor o alarido que fazem em torno de mim. Se tenho algum mérito, que mo concedam, concordo, mas que não me ergam um pedestal com uma reputação usurpada, pois eu não poderia concordar com isto.
“Como vedes, senhor, ainda estou muito novo neste mundo novo para mim, sobretudo muito ignorante e mais desejoso de instruir-me do que capaz de instruir os outros. Hoje vossos princípios me parecem tanto mais justos quanto, depois de haver lido a sua teoria, vejo a sua mais larga aplicação prática. Assim, ficaria feliz assimilando-os completamente e vos ficaria reconhecido se tivésseis a bondade de me aceitar algumas vezes como um dos vossos ouvintes.
“Cura BIZET.”
OBSERVAÇÃO: A quem quer que não conheça a verdadeira constituição do mundo invisível, parecerá estranho que Espíritos que, segundo eles, são seres abstratos, imateriais, indefinidos, sem corpo, sejam vítimas dos horrores da fome; mas o espanto cessa quando se sabe que esses mesmos Espíritos são seres como nós, que têm um corpo fluídico, é verdade, mas que não deixa de ser matéria; que deixando o seu envoltório carnal, certos Espíritos continuam a vida terrena com as mesmas vicissitudes, durante um tempo mais ou menos longo. Isto parece singular, mas assim é, e a observação nos ensina que essa é a situação dos Espíritos que viveram mais a vida material do que a vida espiritual, situação por vezes terrível, porque a ilusão das necessidades da carne se faz sentir, e eles têm todas as angústias de uma necessidade impossível de saciar. O suplício mitológico de Tântalo, entre os Antigos, acusa um conhecimento mais exato do que se supõe, do estado do mundo de além-túmulo, sobretudo mais exato do que entre os modernos.
Muito diferente é a posição daqueles que desde esta vida se desmaterializaram pela elevação de seus pensamentos e sua identificação com a vida futura. Todas as dores da vida corporal cessam com o último suspiro, e logo o Espírito plana, radioso, no mundo etéreo, feliz como um prisioneiro livre de suas cadeias.
Quem nos disse isto? É um sistema, uma teoria? Alguém disse que deveria ser assim, e nós acreditamos sob palavra? Não; são os próprios habitantes do mundo invisível que o repetem em todos os pontos do globo, para ensinamento dos encarnados.
Sim, legiões de Espíritos continuam a vida corporal com suas torturas e suas angústias. Mas quais? Aqueles que ainda estão muito avassalados à matéria para dela se destacarem instantaneamente. É uma crueldade do Ser Supremo? Não. É uma lei da Natureza, inerente ao estado de inferioridade dos Espíritos e necessária ao seu adiantamento; é uma prolongação mista da vida terrestre durante alguns dias, alguns meses, alguns anos, conforme o estado moral dos indivíduos. Teriam competência para taxar de barbárie essa legislação, aqueles que preconizam o dogma das penas eternas irremissíveis e as chamas do inferno como um efeito da soberana justiça? Podem eles pô-la em paralelo com uma situação temporária, sempre subordinada à vontade do indivíduo de progredir; à possibilidade de avançar por novas encarnações? Ademais, não depende de cada um libertar-se dessa vida intermediária que não é verdadeiramente nem a vida material nem a espiritual? Os espíritas dela se libertam naturalmente, porque, compreendendo o estado do mundo espiritual antes de nele entrar, imediatamente se dão conta de sua situação.
As evocações nos mostram uma porção de Espírito que ainda se julgam deste mundo: suicidas, supliciados que não suspeitam que estão mortos e sofrem o seu gênero de morte; outros que assistem ao próprio enterro, como ao de um estranho; avarentos que guardam os seus tesouros, soberanos que julgam ainda mandar e ficam furiosos por não serem obedecidos; depois de grandes naufrágios, náufragos que lutam contra o furor das ondas; depois de uma batalha, soldados que continuam lutando e, ao lado disto, Espíritos radiosos, que nada mais têm de terrestre e são para os encarnados o que a borboleta é para a lagarta. Pode-se perguntar para que servem as evocações, quando nos dão a conhecer, até nos mínimos detalhes, esse mundo que nos espera a todos, ao sairmos deste? É a Humanidade encarnada que conversa com a Humanidade desencarnada; o prisioneiro que fala com o homem livre. Não, por certo elas para nada servem ao homem superficial que nisto só vê um divertimento; elas não lhe servem mais do que servem a Física e a Química recreativas para a sua instrução. Mas para o filósofo, o observador sério que pensa no amanhã da vida, é uma grande e salutar lição; é todo um mundo novo que se descobre; é a luz atirada sobre o futuro; é a destruição dos preconceitos seculares sobre a alma e a vida futura; é a sanção da solidariedade universal que liga todos os seres. Talvez digam que podemos estar enganados; sem dúvida, como nos podemos enganar sobre todas as coisas, mesmo sobre as que vemos e tocamos. Tudo depende da maneira de observar.
O quadro apresentado pelo padre Bizet nada tem, pois, de estranho; ele vem, ao contrário, confirmar, por mais um grande exemplo, o que já sabíamos, e o que afasta toda ideia de repercussão de pensamentos, é que ele o fez espontaneamente, sem que ninguém pensasse em chamar sua atenção sobre aquele ponto. Por que, então, teria vindo dizer, sem que se lhe perguntassem, se aquilo não fosse verdadeiro? Sem dúvida ele a isto foi levado para a nossa instrução. Ademais, toda a comunicação tem um cunho de seriedade, de sinceridade e de modéstia que é bem compatível com o seu caráter e que não é próprio dos Espíritos mistificadores.
Acima, está sendo listado apenas o item do capítulo 31.
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