Além da Morte

Versão para cópia
CAPÍTULO 11

RESIDENTE DA COLÔNIA REDENÇÃO

Algo repousada, entreguei-me à multidão de pensamentos que estavam represados em minha mente. Desde o momento da desencarnação, o receio e a dor me visitavam com habitual frequência. Encontrava-me quase feliz, se bem que as impressões físicas não me houvessem abandonado e eu conservasse ainda 7 as sensações que me eram comuns na roupagem material.

Verificava, admirada, que o milagre com que eu tanto sonhara era impossível quimera. A desencarnação não transformava os caracteres do ser. Não havia a mudança repentina do homem em anjo, nem a metamorfose da carne bruta em falena luminescente dos jardins do céu.

A vida, podia agora comprovar, sofrera modificações, não perceptíveis imediatamente. Sob o meu corpo, que conservava sinais arroxeados, estava o leito, em tudo semelhante aos que conhecera antes. Aos meus olhos, perscrutadores, na sala bem cuidada e em suas amplas janelas, as rosas, vestidas de um crepúsculo dourado, tornavam-se mais rubras. E em mim mesma continuava a assinalar, além das emoções e estados espirituais como a angústia e o anseio, o desfalecimento e o fervor, a impressão da fome, da sede e de outros fenômenos fisiológicos.

Mobilizando as ideias e as débeis energias, tentei organizar o meu panorama mental, de molde a fortalecer o espírito para a luta que se iniciava.

Em toda parte descobria a vida palpitante. Sem a febricidade típica das cidades modernas, o recinto guardava aspecto de atividade disciplinada.

Procurando concentrar-me, foi-me possível recordar alguns fatos esparsos, e, à lembrança dos meus últimos dias não me pude furtar, mais uma vez, à realidade do momento: aquilo era a "morte". Não a morte caricaturada no símbolo da foice, mas a realidade de mensageira incansável no trabalho de despertar.

Voltei, mentalmente, como me acontecera no túmulo, à infância. No momento, recordava o passado, por processo espontâneo, e quedei-me aparvalhada no exame de milhares de atitudes de toda uma existência. Verifiquei, surpresa, com melhor precisão agora, os chamamentos do Céu, dirigidos ao meu coração, por meio de pequeninas vozes e de acontecimentos aparentemente insignificantes.

Do berço ao túmulo caminhamos tutelados pelo Senhor, sob a assistência de abnegados amigos desencarnados que não desfalecem nos seus deveres de nos guiar no roteiro nobilitante. Aqui é a inspiração alargando os horizontes para a nossa alma, fazendo-nos mergulhar na senda de indagações fascinantes, erguendo véus, aclarando conflitos, decifrando problemas, oferecendo diretrizes. Ali é a natureza vestida de luz: córregos, rios e mares, flores e pássaros, árvores vetustas e pequenos vegetais, animais e insetos que enxameiam em todo lugar, nascentes e repúsculos, sol e chuva, minerais de diversos valores que as ambições humanas, filhas do egoísmo e do orgulho, convencionaram em preciosos e vulgares, acendendo o fogo da posse, no qual tantos se afadigam e lutam. Mais longe é a dor — mensageira da verdade, benfeitora anônima e incompreendida —, voz do sofrimento convidando à continência e ao equilíbrio, advertindo-nos quanto ao desgaste da preciosa máquina física; a dor-moral chamando à meditação e ao exame das ações; a dorespiritual, em ausências, frustrações emocionais, agonias e solidões dalma, falando intuitivamente sobre o mau uso da liberdade, aprisionando a mente em evocações dolorosas que, embora não se delineando de todo na tela da memória, marcam os sentimentos com os sinais da angústia; a dor-saudade e tantas dores... convidativas e perseverantes, gritando-nos, advertindo-nos.

Ontem era o carinho materno, falando-me das coisas simples e belas do Céu e de Deus, ensinando-me a orar, insistindo no respeito à Lei, no longo curso dos deveres. As dificuldades domésticas de vária ordem, como mensagens-chamamento que teimei em não escutar.

Posteriormente, o raciocínio a desabrochar, a cultura em crescimento, os livros, tudo, e a religião falando pela boca dos ministros diversos, nas várias escolas de fé.

Por fim, o amadurecimento conduzindo-me ao Grande Senhor, aos deveres que temos para com Ele, enquanto eu não me achava disposta a estudar e servir.

De mil maneiras, segue-nos e chama-nos o Senhor. Quando jovens, apegamo-nos às delícias do jardim dos prazeres e, buscando as flores da ilusão, gastamos impensadamente energias valiosas, no jogo das emoções.

Quando velhos, prematuramente, desperdiçamos as últimas forças na travessia tormentosa do mar da revolta, sob raios de imprecações e trovões de desesperos injustificáveis, destruindo o vaso físico, de dentro para fora.

No trabalho educativo, dá-nos o Divino Governador um celeiro para manutenção da vida e azeite para a lâmpada da fé. Imediatistas, porém, prostituímos o dever e anarquizamos o instituto do trabalho, justificando-nos com a falsa necessidade de atender às exigências da carne e, desajustados no cumprimento das obrigações, constituímo-nos em falange de ociosos e aproveitadores, para despertarmos, tardiamente, nos braços do desequilíbrio, enxugando copiosas lágrimas.

Oh! filha minha, como nos chama a voz do Amorável Rabi!

Tudo isto eu repassava na tela mental, jornadeando pelas sendas percorridas, atravessando os caminhos da memória, miraculosamente lúcida. Não podia furtar-me à emoção, filha do arrependimento, sem revolta nem reclamação, desde que eu mesma era culpada, reconhecia-o agora.

Mergulhada na recordação, meditando seriamente, talvez pela primeira vez, não me apercebera da presença da Benfeitora Zélia, que se acercara do meu leito.


Compreendendo-me o estado espiritual, chamou-me serenamente a atenção:

— É necessário não esquecer, minha irmã, que o arrependimento é um grande colaborador da nossa paz íntima, mas somente quando nos enseja o trabalho que nos opere a renovação. Abater-se ao fardo do que "está feito", é desperdiçar a oportunidade feliz de ressarcimento. Guarda as lágrimas e busca ressurgir intimamente do "túmulo das coisas mortas".


E com um olhar que demonstrava conhecimento pessoal sobre o assunto, através da experiência própria, aduziu, com segurança:
— Todos temos, no tempo, labores a reparar e estradas interrompidas na marcha evolutiva, a vencer. O tempo, esse mesmo silencioso e confiante amigo, esponja que tudo apaga, ensina-nos a não correr, pelo perigo que sofreremos de cansar e parar, e também nos elucida quanto ao estacionamento pelas probabilidades que apresenta de criarmos raizes... Viandante incansável, ele representa nossas melhores e mais caras esperanças. Para nossos espíritos endívidados, o tempo, ligado ao trabalho, é tesouro que não podemos desdenhar, e, além deles, a oração, esse tônico de reconforto e encorajamento, é um arrimo que não sabemos valorizar. "Com o tempo, temos a oportunidade. "Com o trabalho, conseguimos o aproveitamento da oportunidade. "E com a oração, santificamos a ocasião e a ação. " Com um sorriso calmo, prosseguiu ela:

— Quem se dispõe à ventura da recuperação, busca oportunidade de serviço e, enquanto procura, ora. "Portanto, não tenhas pressa. " Estava perplexa com a lógica dos seus argumentos, simples, mas profundos, onde eu encontrava campo para novas meditações.


Depois de uma pausa, que se fez natural, continuou com espontaneidade, dissertando, amável, noutro rumo da conversação:

— Nossa Colônia encontra-se próxima à Terra, sofrendo, consequentemente, as mesmas condições do planeta a que se encontra ligada. Irmanados ao destino do Brasil, nossos 1nstrutores trabalham infatigavelmente, há mais de 250 anos, cooperando com as falanges de Ismael na construção da Pátria do Cruzeiro. Fundada por abnegado Missionário da Caridade, destinavase, inicialmente, a socorrer escravos desencarnados ao peso de provações e expiações amaríssimas. Recolhendo os mais rebeldes, sedentos de vingança, auxiliava-os com esclarecimentos necessários, reconduzindo-os ao Orbe para novas e redentoras lutas.


Incipiente a princípio, foi crescendo com o concurso dos anos, aumentando suas possibilidades de socorro, em vista da cooperação de Espíritos abnegados que passaram a contribuir para o seu desenvolvimento. Atravessou ásperos períodos, consoante consta nos arquivos que guardam sua história. "Reiteradas vezes, as hostes do mal investiram furiosas e organizadas, sob o comando de cruéis magotes de chefes bárbaros, cuja memória na face da Terra se encontra, até hoje, envolta nos mais hediondos crimes. Os pioneiros da obra iniciada, entretanto, não desanimaram, uma vez sequer. "Feridos na cruzada do amor, reorganizavam-se sempre, e, à medida que a região inóspita se povoava de vibrações edificantes, reservas de forças chegavam de toda parte, em nome do Senhor Supremo, restabelecendo o ânimo e vitalizando o trabalho. " Acompanhava a descrição da Senhora Zélia com emoção e curiosidade crescentes. Aproveitando-lhe a pausa, indaguei:

— E as lutas tinham o aspecto das que se observam no planeta?


— Evidentemente — retrucou a esclarecida narradora. — E imprescindível não esquecer que nos encontramos muito próximos da Crosta terrestre, envoltos em vibrações igualmente materiais, cuja diferença estrutural é facilmente compreensível. "Essas entidades ligadas ao mal — continuou — organizam-se em bandos perigosos, sob a a direção de mentes cruéis, dificultando a obra de evangelização do mundo. As guerras, os crimes e muitos desastres que se verificam na Terra estão ligados, de certo modo, a esses agrupamentos de gênios satânicos, que se demoram comprazendo no mal e, inconscientemente, funcionam como o necessário escândalo. " E dando curso à narrativa histórica da Colônia, prosseguiu:
— O próprio Ismael visitou, por duas vezes, a Governadoria, contribuindo com valiosos esclarecimentos e oferecendo preciosos recursos de auxílio ao programa socorrista a que se liga. "Temos depois, quando no Brasil as ideias abolicionistas fermentavam em vários corações e mentes, almas aqui atendidas, durante anos, retornaram à forma física na posição de escravocratas benignos que, ao lado dos libertadores, concederam, sem mais delongas, liberdade aos opressos, antes do inolvidável dia em que a Princesa transformou em Lei memorável a abolição da escravatura nas terras de Santa Cruz. "Com isso a Colônia granjeou o devotamento de novos e abnegados trabalhadores que se ofereceram a cooperar com o seu celeiro, resultando em crescimento e amplitude de serviços. "Atualmente, operando na Crosta, com um grande número de servidores do Bem, conta com alguns milhares de pupilos reencarnados, que continuam mantendo ligações mentais conosco, situados em serviços de recuperação e assistência a sofredores no plano físico. E, graças ao Espiritismo, na sua feição cristã, o número de candidatos ao serviço fraternal de socorro aumenta de maneira consoladora, apesar das quedas lastimáveis de quantos baqueiam nas relevantes tarefas a que se propus eram. " A narradora, depois de breve silêncio, acrescentou:

— A esta hora, diariamente, ligamo-nos em oração com o Templo de comunhão.


Ante a notícia das preces em conjunto, no recinto reservado a esse mister, indaguei, ansiosa:

— Poderia participar da prece em conjunto, rumando, igualmente, ao local onde os demais se encontram?

— Não — respondeu-me. — Ligar-nos-emos daqui mesmo, porquanto o pensamento rompe todas as fronteiras. Ainda necessitas de guardar o leito por algum tempo, para adaptar-te com segurança a vida nova. "Guarda-te em meditação — tranquilizou-me com expressão de entendimento fraternal —, enquanto visito e preparo nossos demais irmãos de enfermaria. "




Acima, está sendo listado apenas o item do capítulo 11.
Para visualizar o capítulo 11 completo, clique no botão abaixo:

Ver 11 Capítulo Completo
Este texto está incorreto?