Além da Morte

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CAPÍTULO 13

O DOUTOR CLÉOFAS

Na manhã seguinte, após a frugal refeição, a bondosa Zélia apareceu acompanhada, irradiando a jovialidade que lhe era habitual.


— Este é o noss o doutor Cléofas

— falou, apresentando o simpático visitante —, que cuidará de suavizar as impressões físicas que guardas no perispírito, desde o momento da desencarnação.

Realmente, ainda não haviam cessado as sensações dolorosas que me seguiam continuamente. Embora os cuidados e a assistência moral de que me via objeto, sentia as contrações dolorosas que me visitavam com frequência, o cansaço e a dificuldade respiratória. Sustentavam-me a fé e a esperança que desbordavam em meu espírito, mediante o consolo haurido na oração, mas as dores permaneciam.

O médico, trazendo aos lábios sorriso afável, fitou-me, compreensivo, sentando-se ao meu lado, junto ao alvo leito.

O doutor Cléofas, soube-o mais tarde, fora dedicado cardiologista, desencarnado havia uma vintena de anos, na Capital de São Paulo. Chegara à Colônia, como portador de vários títulos de auxílio e humildade. Católico praticante, a princípio, encontrara nos enfermos o abençoado campo de serviço e aprendizagem. Coração sensível, alma evoluída, não se limitava ao estreito círculo das formas. Cultor de privilegiada inteligência, defrontou-se com problemas fisiológicos inexplicáveis pelos métodos da experimentação científica, então vigentes, resolvendo-se à base do amor, em intermináveis testemunhos de abnegação. Pesquisador honesto e sedento de conhecimentos novos, ouviu notícias do Espiritismo, através de jovem médium, de apreciável faculdade, buscando conhecê-lo, ávido como sempre esteve, de respostas às inquirições que o atormentavam.

Com vasta clientela, reuniu, com a sucessão do tempo, apontamentos valiosos de observação e, fascinado pelos esclarecimentos fornecidos pelos Espíritos, embrenhou-se pelas investigações Metapsiquicas, vindo a conhecer a Doutrina de Allan Kardec, manuseando O Livro dos Espíritos. Tão fascinado ficou com a leitura desse magnífico compêndio de Filosofia transcendental que, em breve, consorciou-se com o pensamento Kardequiano.

Estudando as faculdades positivas do sensitivo, penetrou no umbral do Além-Túmulo, em memoráveis sessões de estudo e pesquisa. Voz direta, transporte, levitação, impressões em chapas fotográficas, desdobramento, psicofonia, psicografia, xenoglos sia e tantos outros fenômenos contribuíram para levá-lo às questões fundamentais da vida imperecível.

Naquela época, reuniam-se homens de nomeada, conhecidos pelos valores morais e intelectuais, selecionados, exercendo rigoroso controle nas operações medianímicas, terminando por atestar a veracidade dos fenômenos experimentais sob a interferência de forças extrafísicas, publicando-se relatos dos trabalhos em opúsculos que marcaram tempo. Todavia, passada a movimentação ruidosa das primeiras emoções, poucos se dedicaram à continuação dos experimentos mediúnicos. Todavia, o raio de luz que rasgou a cortina das formalidades, abrindo o campo da vida nova ao dr. Cléofas, fecundou a semente do Evangelho que dormitava no ádito do seu coração. Mergulhando as antenas psíquicas na fonte do conhecimento bibliográfico, fez das diretrizes da Boa Nova seguro roteiro para si mesmo, alargando as possibilidades de serviço. Desencarnou, com a idade de 58 anos, aproximadamente, carregando consigo valiosos recursos espirituais.

De olhar bondoso, o esculápio amigo, com expressão paternal, convidoume a cuidadoso exame. Utilizando-se do estetoscópio, à semelhança dos médicos terrenos, começou a perscrutar, atento, deixando transparecer na face os sinais de preocupação e zelo.


Após alguns minutos, diagnosticava, com um leve sorriso:

— A irmã Otília chegou à vida espiritual sob a agonia da Angor Pectoris. São ainda evidentes os sinais da dor constritiva nas artérias coronárias dilaceradas pelas contrações anginóides.

Devo confessar que até o momento de ouvir o médico referir-se à minha causa mortis, eu a desconhecia totalmente. Suspeitava ter desencarnado de moléstia do coração, sem que, contudo, pudesse saber qual a enfermidade.


Aproveitando a pausa espontânea, esclareci, surpresa:

— Benfeitor amigo, desejava informar que às vésperas da minha desencarnação consultei jovem médico, ao lado do meu companheiro que se encontrava enfermo, sendo tranquilizada pela ótima disposição física. Após acurado exame, assegurou-me o doutor que eu era "portadora de um coração de ferro". Como explicar a minha desencarnação por enfermidade do coração?


Sorriso largo espraiou-se no rosto do interlocutor, que acrescentou bemhumorado:

— Todavia, está comprovada a fragilidade do seu coração... Embora a informação do seu clínico, a bomba cardíaca não resistiu ao embate e, cansada, deixou de lutar...


Prosseguindo, considerou:

— Não discutiremos aqui a informação do colega terreno, mas é inegável que o seu processo desencarnatório vinha sendo elaborado na máquina física, apesar da violência final, há mais tempo do que você possa imaginar. O aparelho respiratório deveria estar apresentando sinais de cansaço e deficiência desde alguns meses antes; desde que o tônus vital que a animava, calculado cuidadosamente antes da reencarnação, se encontrava esgotado, por motivos de "fim de prova "Como você deve recordar-se, através das noções de Doutrina que possui, o organismo somático é mantido pela vitalidade perispiritual, que é agente, e que conduz em germe os pródromos dos acontecimentos futuros para o berço e o túmulo, essas duas entradas principais da vida. "Anemia, cansaço, uso de bebidas alcoólicas, sífilis, produzem a angina, variando a nomenclatura em relação à etiologia. No seu caso, entretanto, tudo indica terem sido a anemia e o cansaço, junto a outros fatores que não vem ao caso examinar, que causaram o enfarte do miocárdio consequente à violenta crise anginosa. "

— Mas como é fascinante, doutor! — Interrompi.

— É compreensível — replicou, sorridente. — Nos centros de estudos das reencarnações e desencarnações não se conhece a improvisação. Se a paz do mundo começa sob o teto da família, os fatos do futuro estão condicionados ao passado do espírito como decorrência dele. Assim, os acontecimentos da vida planetária estão ligados a razões adredemente previstas e sabiamente movimentadas. "Corpos belos e deformados são frutos de ensaios e comparações, escolhas e imposições, tendo-se em vista os imperativos do mérito, no ajustamento às Leis de Causa e Efeito. Enfermidades passageiras e males crônicos, doenças breves e demoradas, tuberculose, lepra, câncer, alienação mental... obedecem a programas estruturados nas bases das necessidades espirituais em cujas tarefas de renovação pela experiência provacional ou expiatória, em ajustamento ou resgate, o ser recupera o patrimônio da vida, antes mal aplicado pela orientação contraproducente do livre arbítrio. "

— Então — aduzi —, o determinismo é um fato!

— Evidentemente! — retrucou-me. — Não, porém, nas bases em que muitos o situam. Recordemos, inicialmente, que ninguém segue rumo à reencarnação para repetir experiências fracassadas. Mas, sobretudo, para aprender e evoluir, valorizando a dádiva do tempo. "O renascimento não é uma porta de cobrança por onde todos têm de passar compulsoriamente, arrastando penas e dívidas. Antes, é uma oportunidade dadivosa para reparação e conquista. Quantos desrespeitem a Lei sofrer-lhe-ão a consequência. É justíssimo.


Assim, o determinismo não é uma imposição, mas uma consequência dos atos que criam motivos de resgate. Além disso, não olvidemos o patrimônio de conquistas na esfera do serviço humanitário, onde muito se pode realizar em favor de si mesmo, anulando causas determinantes de sofrimentos futuros. Não esqueçamos, também, que o amor anula e apaga tudo, porque o amor é manifestação luminosa da Divindade ao alcance do homem. " Desejando dar maior ênfase ao assunto, prosseguiu:

— Reconheçamos, ainda, que a alma em romagem pela Terra dispõe de múltiplos recursos para proceder com equídeoss. Excetuam-se, naturalmente, aqueles que se encontram em rudes pelejas expiatórias, em as quais permanecem apagados os centros da inteligência para o necessário esquecimento libertador. O homem comum, de mediana capacidade, dispõe da razão, do livre arbítrio, do exame de consciência, tendo ao seu alcance a prece e a intuição ou percepção espiritual. Com o Evangelho de Jesus Cristo, Nosso Senhor, o roteiro humano se ilumina, salvador. No entanto, mergulhando na carne, a alma se apega por teimosia rebelde ao prazer, longe do sacrifício renovador, debatendo-se no arbítrio torturado, e escolhendo, invariavelmente, as sendas difíceis para a própria redenção. É natural que, caindo em inesperados abismos, sofra com a queda os danos pertinentes às arestas do despenhadeiro.

— É racional — assenti. — Quer dizer, então, que tudo é previsto antes do renascimento? — indaguei, curiosa.

— Não exatamente tudo — esclareceu, paciente. —Digamos, antes, que é mais ou menos previsto. Desde que toda ação gera uma reação, é admissível que a previsão esteja na razão direta das ações praticadas no passado. Entretanto, através de novas ações, o panorama geral do reencarnado pode sofrer modificações apreciáveis. Recordemos aqui o ensino do Mestre Nazareno, que é muito expressivo: — Não cai uma folha da árvore que não seja pela vontade de Deus" ou "... até os cabelos das vossas cabeças estão contados", o que pode ser traduzido por um pré-conhecimento das coisas. Entretanto, lembremos, igualmente, que o sábio Senhor também afirmou: — "Tudo quanto pedirdes ao Pai, orando, será concedido", o que indica ser a felicidade algo ao nosso alcance, dependendo somente de nos resolvermos a tal. Nas vicissitudes do caminho e dificuldades da luta, a prece da alma contrita chega aos ouvidos divinos, que retribuem a confiança com a temperança e o ânimo, a inspiração e o auxílio. "Aceitar o determinismo absoluto — prosseguiu, atencioso, — seria o mesmo que negar a bondade Divina, aceitando o fatalismo negativista. Convenhamos ainda que nenhuma alma é destinada ao mal. O mal é somente uma manifestação do bem ausente. " Estava profundamente comovida. Embora recordasse do que lera, na Terra, o assunto era sempre atraente. Invadia-me o ser preciosa sensação de conforto e segurança, favorecendo-me a mente com novos rumos ao entendimento.


Depois de ligeira meditação, como se buscasse esclarecimentos novos, o venerável médico continuou:

— A reencarnação é abençoado ensejo, concessão imerecida. E toda doação é sempre utilizada como melhor convém a quem a recebe. Muitos, inadvertidamente, atiram fora o que recebem, sem consideração ao benfeitor; outros utilizam-se da concessão, indiferentemente; raros aplicam bem os valores recebidos. Tal benefício deve ser aproveitado, não para pagamento, peregrinando pelas sendas da amargura, mas para aquisição de valores pelas vias do trabalho. Na Contabilidade do Céu, a soma de ações nobilitantes anula a coletânea equivalente de atos indignos, e todo amor ao próximo, em serviço educativo à Humanidade, é degrau de ascensão. Por essa razão, o momento que passa é de especial valor. Desde que o nosso "hoje" se encontra radicado no "ontem", usemos o hoje-amanhã na edificação da ventura por que ansiamos. "Passado, presente, futuro... Hoje é o que importa. Atendamos às tarefas que o Mestre nos confere, em oportunidades santificantes, e avancemos, sem cessar!" Calou-se o lúcido visitante. Minha mente perdia-se se num mundo de cogitaçõeS novas. Vibraram em meu cérebro espiritual as palavras: reencarnação, desencarnação, oportunidade, prova, expiação, resgate... E, sem que o percebesse deixei-me conduzir à nostalgia absorvente, ao lembrar das perdas que pesavam sobre meus débeis ombros.


Percebendo, porém, o meu pensamento, nublado pela súbita amargura, o Médico Espiritual atalhou-me a inquietação, asseverando:

— Sustente o bom ânimo! o arrependimento, quando muito frequente, é mau conselheirO. Use a meditação como medida salutar, abandonando toda e qualquer expressão de remorso deprimente. Utilize-se do momento para a planificação do porvir. Agora, exercite-se; amanhã, sirva.


E com voz grave, concluiu:

— Busque o repouso; é necessário e inadiável o pronto refazimento. Cuidarei de medicá-la devidamente, e, sempre que possível, estaremos ao seu lado, e Jesus conosco.

Despediu-se o novo amigo que, acompanhado da irmã Zélia, se dirigiu a outros necessitados, no sublime mister de curar.




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