Além da Morte

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CAPÍTULO 16

A COLÔNIA POR DENTRO

Diariamente, às vésperas, antes das orações do anoitecer, o jovem passista me trazia, com a sua bondade assistencial, elucidações e apontamentos sobre a água fluida, os passes magnéticos, as vibrações mentais, a prece e todo um cortejo de valiosos temas que me rasgavam horizontes ao entendimento, aclarando-me a visão.

A justiça de Deus tornava-me mais amorosa e instruída, desaparecendo em meu pensamento as falsas conexões à base de tabus interpretativos, quanto às diretrizes superiores.

Depois de um mês de contribuição magnética frequente, já me era possível movimentar-me pela sala singela, interessando-me, mais de perto, pelos problemas dos demais companheiros hospitalizados, ora em alguma pequena assistência mais direta, enfim, nessas pequenas coisas tão insignificantes, e tão importantes entretanto, para quem tem ânsia de recuperação do tempo perdido e busca iluminação interior.

Verifiquei, tão logo me desembaracei do cansaço e do torpor que me prendiam ao leito, que o Santuário hospitalar, que me acolhia, longe estava de ser a decantada "Mansão do Repouso" com que tanto sonhamos na Terra.

A palavra TRABALHO não era apenas um vocábulo, mas sim uma realidade construtiva e ativa em todos os lados. Os residentes pareciam divididos em misteres especiais e não me recordo de ter visto, até hoje, um semblante sequer, onde a inércia se desenvolvesse. Certamente, enfermos de todos os matizes guardavam o leito por tempo indeterminado. Todavia, a movimentação dos próprios esforços muito contribuía para o despertar, libertando-os dos tentáculos porosos da doença demorada.

Aqui e ali identificava rostos sisudos, preocupados; expressões de saudade e dor entre transeuntes e enfermeiros; todavia, as bênçãos vigorosas do serviço a que se dedicavam pareciam anunciar-lhes melhores horas, em próximos tempos. E cientes de que o trabalho é mensagem divina, em contribuição benéfica, guardavam todos, na expressão do olhar, a presença da fada Esperança, como mensageira da felicidade plena.

Aclimatada, na Terra, aos labores humildes de limpeza e asseio, oferecime à irmã Zélia, em dia de grande movimento, para contribuir de algum modo com os deveres de manutenção da Enfermaria, onde me encontrava, experimentando, com a sua aquiescência, indizível júbilo.


À medida que era atraida para esse serviço singelo, estranho revigoramento tomava corpo dentro de mim, entusiasmando-me e fazendo-me esquecer as preocupações e angústias lancinantes que ficaram no espírito, com a distância colocada pela morte Num desses dias de trabalho habitual, enquanto reparava as peças do leito de um dos companheiros, que se demorava em terrível pesadelo, fui surpreendida pelo incondicional amigo Adrião, que me animou, bem humoradO

— O trabalho — informou gentil —, é o poderoso elixir de longa vida que fortifica todas as esperanças e esponja que apaga todas as preocUpaçõeS. A alma que labora não é colhida pelas malhas das tentações da dúvida e do medo, ficando distante do barco fraco dos receios. Enquanto revigora, o exercício do dever bem cumprido estimula energias, antes esquecidas, a dormitarem na inutilidade. Reabastece a organização psíquica e imprime ao espírito uma razão operante de lutar e vencer, proporcionando a felicidade do ideal.


E prosseguindo, com entusiasmo crescente, continuou:

— Com Jesus, aprendemos que todo trabalho é honrosa incumbênCia, constituindo-se concessão utilíssima de elevação para todos. O próprio Mestre, desde as primeiras horas na Carpintaria de José, onde se exercitava, ensinounos o melhor meio de valorizar o tempo, em aplicação das horas nos serviços humildes, como base das grandes tarefas. "Trabalhe quanto lhe permitam suas forças — estimulou-me com simplicidade —, sabendo que o trabalho é o melhor medicamento contra a perturbação. Poupe, por enquanto, as energias mais valiosas, que serão úteis mais tarde e, pela aplicação sadia dos minutos, seu pensamento adquirirá roteiro disciplinar indispensável à utilização inadiável do porvir. "E quando o cansaço tomar suas fibras — arrematou com encantadora jovialidade —, lembre-se de que o Senhor até hoje trabalha por nós, sem desfalecimento.


Estava radiante e grata. Concluída a pequena tarefa a que me dedicava, dispunha-me a buscar a pérgula à porta da Enfermaria, quando o zeloso companheiro se aproximou de mim, oferecendo-se discreto:

— Hoje é domingo e encontro-me com um saldo de horas livres. Desejo oferecê-las a você e acredito que seriam de utilidade se as pudéssemos aproveitar numa pequena caminhada até o parque de repouso, nas cercanias do Hospital, onde encontraríamos motivos de entretenimento e refazimento espiritual.

Não me fiz rogada. Ao contrário, exultei de incontida alegria. Senti mesmo uma grande emoção.

Momentos depois estávamos em plena rua. O movimento fazia lembrar o das zonas residenciais da Terra, nos dias de repouso comercial. Silêncio agradável pairava no ar, quebrado somente pelo brando cicio da brisa na ramagem do arvoredo.

Era minha primeira marcha, além das dependências do pavilhão onde me encontrava em tratamento e, por isso mesmo, tudo tinha um sabor inusitado e delicioso. Parecia-me estar no próprio paraíso. Rapazes e velhos, jovens e matronas trajavam-se com discrição e decência; as mulheres, com leves túnicas, formavam pequenos grupos; todos passavam conversando na mais fascinante cordialidade, tocados por emoção muito diversa das intempestivas paixõeS do desejo.

Demorava-me extasiada na contemplação da manhã fresca, fitando OS quadros coloridos da natureza que, aos ósculos do dia em crescimento, mudava as tonalidades de luz na moldura das nuvens, em cambiantes variados e harmoniosos.

Não cessava de admirar as belezas do caminho ajaezadO de miosótiS e tufos de violetas perfumadas que serviam de tapete colorido a hortênsias rosas, azuis e brancas.

Com sorriso bondoso, AdriãO chamou-me a atenção para os transeuntes que me fitavam alegres, notando a incontida satisfação com que me movimentava, traduzindo-lhes a minha situação de recém-chegada, como acontecera a eles próprios em ocasiões passadas.

Após três quartos de hora, aproximadamente, chegamos a magnífico parque, arborizado, com jardins perfumados, onde algumas centenas de pessoas se agrupavam no mais cativante contentamento.


— Falam de saudades — disse-me o cicerone querido —, planejando reencontros na crosta, nos dias do futuro. "A Colônia Redenção, como você sabe, é um reduto de preparação, ou melhor, um hospital-escola, como informaram, onde os doentes se refazem aprendendo a terapêutica da alma, em quadros vivos, nos quais são cobaias e pacientes, laboratório de ensaio e clínica de recuperação, para depois recomeçarem a luta no abençoado campo que é a Terra, nossa Mãe imcompreendida e inesquecida. "Daqui podemos valorizar devidamente a existência planetária, na indumentária da carne. Enquanto nos demoramos na vestidura física, desrespeitamos a concessão do Senhor entre revoltas injustificáveis e paixões cansativas. Depois, quando despertamos para os valores imperecíveis, nossas atenções se voltam desesperadamente para o plano material, onde a felicidade nos acena, através das oportunidades de reparação. A Terra é a formosa escola de caráter e elevação. "Todos que aqui chegam — continuou com expressiva tonalidade na voz — carregam débitos para com o planeta que lhes serviu de berço, propiciando o começo na imortalidade. Por isso mesmo retornarão ao cadinho das transformações morais. Ninguém pleiteie racionalmente a entrada no Céu, antes do concurso santificante da experiência terrena. Ninguém aguarde felicidade pessoal e ascensão, enquanto seus pés estejam presos a compromissos no Orbe. "O nosso Céu é consequência da felicidade de muitos a quem azorragamos por tempo sem conta, nas folhas da história, em épocas passadas, não mortas, todavia. "A bondade do Excelente Amigo, por amor, concede-nos a evolução através das miríades de pousadas que o carinho de sacerdotes lídimos da Caridade construiu à semelhança desta, onde o Seu calor se encontra próximo da nossa frieza e o Seu olhar magnânimo nos segue sem cessar. "A passagem evangélica, (*) referente às muitas moradas na Casa Universal do Pai, também alude a

(*) João 14:2-3 (Nota da comunicante).

estas estâncias de socorro, onde a alma escala o seu percurso ascensional evolutivo...

Nesse momento, um casal de velhinhos, em cujos semblantes a esperança parecia residir, acercou-se, sorridente.

Tratava-Se do casal Romero, estudantes da Reforma Luterana, e que, durante O ultimo estagio na Terra, se ligaram à Igreja ProteStante. O Sr. Romero desencarnara primeiro, por volta de 1932, e demorara-se na Colônia Redenção enquanto se refazia do túmulo. Despertando para a luz meridiana do Evangelho, constatando em si mesmo a imortalidade da alma e renovando conceitos em torno da vida, procurou, em constantes tentativas mediúnicas, despertar a companheira para o movimento espírita, vigente e florescente nas terras do Brasil.

Aferrada, porém, à letra bíblica, Dona Aurora não abria uma fresta aos insistentes alvitres do companheiro desencarnado, continuando no estreito corredor literal, esquecida de que "a fé sem obras é morta" consoante a feliz observação de Tiago, o Apóstolo intransigente. Desencarnando, uma década depois, chegara àquela Casa de Benemerência, escrava da pretensão religiosa, exigindo o Céu a que pensava ter feito jus...

Longo foi o seu processo de reajustamento e despertar. Todavia, crente honesta e sincera, ao aperceber-se das diretrizes novas que o evangelho lhe apontava, candidatou-se ao encargo mediúnico, em dolorosa provação, no seio de uma família ligada a uma das Igrejas Reformadas, para onde retornaria em breve, pelo processo santificante da reencarnação.

Rapidamente, sentimo-nos os quatro fortemente afins e interessados pelas questões da Doutrina Espírita — poderoso norteador de almas —, conduzindo a Senhora Romero a conversação para a minha última experiência terrena, após o que, igualmente emocionada, me narrou os fatos citados.

Demoramo-nos reunidos até horas avançadas, quando o dia, pleno e estuante, dominava a paisagem, coroando a fraternidade naquele recanto aprazível, com a mensagem dourada de sua benéfica luz.




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João 14:2

Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito: vou preparar-vos lugar.

jo 14:2
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João 14:3

E, se eu for, e vos preparar lugar, virei outra vez e vos levarei para mim mesmo, para que onde eu estiver estejais vós também.

jo 14:3
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