Além da Morte

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CAPÍTULO 23

OBSESSÃO E SUICÍDIO

Eu permanecia perplexa, ouvindo a narrativa lúcida e calma da sábia Instrutora.

Verificava, a cada instante, que, em realidade, o fenômeno era exatamente esse, a suceder, todos os dias, entre os homens conturbados, em face dos deveres santificantes que o Evangelho desvelado pelo Espiritismo aponta.


Estávamos a uma dezena de metros e ouvíamos os torturados suspiros da sofredora. Desejando novos esclarecimentos, indaguei, preocupada:

— Como teria despertado, além da cortina física? Em que condições atravessara a grande aduana?


A interlocutora, disposta a elucidar-me, ensaiando-me na sabedoria da Lei, respondeu, bondosa:

— Matilde foi, durante mais de quinze anos, devorada pelas dores do suicídio...

— Suicídio? — interrompi, alarmada.

—Como não? - redarguiu.

— Mas não se encontrava louca? — aventei, aturdida — perseguida pelos gênios titânicos que a arrastaram à desencarnação?

— Sim — concordou. — Muito embora a sua situação mental constitua-se um significativo atenuante, é necessário não esquecermos de que a mente do médium jamais esteve sem o amparo divino. Se houve influenciação maléfica, a intermediária é a única responsável pelo descaso à Lei e ao Dever. Todos os fatos posteriores a um desequilíbrio são decorrentes do desequilíbrio. No caso, a loucura foi uma consequência natural da fuga ao dever nobilitante. Quando nos atiramos a um abismo, não sofremos apenas a deslocação do corpo com o movimento, mas, também, a queda e as dores advindas desta. Compreendeu?

— Certamente —, concordei.

— A Justiça Divina — prosseguiu, esclarecendo — éperfeita e a Lei é imutável. Durante os anos de lutas acerbas, quando sua mente, no Despenhadeiro de Horror, conseguia pausas para a coordenação das ideias, era assaltada pelos gênios infernais, a que se ligara. Recordava aqueles amigos que ainda se demoravam na carne e que, de certo modo, foram os causadores da sua infelicidade, propiciando-lhe a fuga aos compromissos elevados, junto ao altar do dever. "O pensamento desequilibrado era toldado, então, pelo ódio e, rompendo espaços, ia ao encontro dos encarnados que, irresponsáveis, continuavam nos jogos da carne, entre as futilidades do caminho. Tão frequentes se tornaram as recordações que a enferma passou a transmitir, inconscientemente, as vibrações de que era portadora e que funcionavam nos antigos consulentes como pensamentos angustiados, pesadelos e inquietações em perfeitas afinidades. "

— Oh, Céus! — exclamei.


— Não há porque estranhar — retrucou-me a esclarecida orientadora. E, prosseguindo, elucidou:

— As ações são agentes poderosos no intercâmbio psíquico. Os erros e crimes de toda ordem ligam os seus servidores em elos vigorosos, feitos dos elementos mentais alimentados pelas vibrações constantes que os imantam. Caídos e derrubadores permanecem ligados pela responsabilidade: vítima-algoz. "E não poderia ser diferente. Quantos contribuíram inicialmente para a ruína moral da médium, são coautores da tragédia que arrastou a invigilante. "Todos guardamos a ideia do Bem e da Dignidade. Usar deliberadamente essa mensagem da Vida, acarreta-nos, como se pode facilmente depreender, os sucessos ou insucessos desse uso bom ou mau...

Estava profundamente preocupada. O esclarecimento é luz de responsabilidade. Saber significa também sofrer o que já se fez. Meditando, entendia melhor o enunciado do Senhor: "a cada um será dado segundo as suas obras. "

— Essas são as malhas do crime — referiu-se a irmã Zélia. — Depois de atadas envolvem os criminosos e punem-nos até o momento em que a renovação se delineia alvissareira.

— E, agora — indaguei, penalizada —, que acontecerá à pobre asilada? — Não lhe faltarão o auxílio e o amor — respondeu, calma — em nome do Grande Amor de todos os amores. Todavia, só o tempo, infatigável burilador, poderá responder. Aguardemos e aprendamos. Restituiremos tudo quanto dilapidarmos na inconsciência e na ilusão.


Abraçando-me cordialmente, a benfeitora concluiu:

— Usemos o tempo e agradeçamos à dor. A árvore podada reúne as energias e volta a dilatar-se em vergônteas novas, resistindo às intempéries e voltando a dar sombra, flores e frutos. Dos seus ramos cortados nascem utensílios pela mão hábil do marceneiro.


E num sorriso, levemente sombreado de melancolia, afastou-se em busca dos misteres sagrados, informando, ainda:

— Concluída a assistência mais urgente, Matilde será conduzida para as Câmaras de Retificação, onde será beneficiada, lentamente.

Fitei a albergada. Dormia inquieta, sobraçando a própria aflição.

Eis ali um exemplo dos milhares que a Terra guarda no seu dourado bojo de ilusões. Quantos outros corações, companheiros de mediunidade, não estariam construindo a dor, entre os cipós enganosos das tentações, para expungi-los mais tarde, no Grande Amanhã! — pensava, intrigada.

A noite mergulhada em silêncio deixava-se abrilhantar com os lampejos das estrelas, confabulando mensagens de paz. Soaram as vinte e duas horas. Não podia dormir. Após acontecimentos de tal natureza, ficava em vigília; não conseguia dormir. Saí ao jardim. O vento perfumado roçou-me o rosto que, sem que eu o percebesse, estava molhado de pranto.

Quão pouco meditara na Terra! Mais uma vez constatava a habilidade com que malbaratara o tempo na inutilidade. Os problemas do corpo haviam recebido melhor assistência. Agora sofria as consequências. Recordando, não saberia explicar como gastara quase cinquenta anos, na vida física, intercalando somente raros minutos de Espiritualidade, nessa metade de século.

Como me fora possível viver tanto tempo banhada pela crença e tão sem comunhão com a Fé?

No momento, o acurado exame de todos os atos, a observação e guarda de palavras sábias, ensejavam-me um mundo real, como jamais pudera imaginar. Ansiedade incontida crescia-me na alma, gritando-me a necessidade de dizer-te, minha filha, todas estas experiências e alertar os companheiros encarnados com quem privara, quanto às realidades além da morte. Lembrava-me, porém, do Mestre Jesus que há tanto esclarecera o homem e não fora devidamente compreendido; do Espiritismo, menosprezado por uns e ridicularizado por outros, balsamizante e consolador, desrespeitado até mesmo por aqueles que o dizem desposar, mas que não vivem de molde a atestar essa núpcia, nas relações humanas, e quedava-me amargurada. Lembrava-me de que a evolução alcançará todos os seres, e que, à semelhança do que a mim mesma ocorrera, todos, em ocasião justa, transporiam igualmente a grande porta, despertando, enfim.

Mas — porque não dizer? — o carinho humano e a afeição pessoal murmuravam-me: não seria lícito e justo que falasses aos teus amados, àqueles que confiam e esperam nas lides espiritistas? Talvez recebessem teus enunciados com orvalho lacrimal de emoção e como teu testamento fraterno de carinho.

Simultaneamente, recordava o lúcido esclarecimento do Instrutor Icaro: — não esqueçam de que Deus é Pai zeloso e Seu amor se distende igualmente, por todos... falando no Templo de Orações àqueles que ensejavam enviar notícias aos que ficaram no labirinto da matéria.

Evocava que, noutro ensejo, ouvira observações em torno da obsessão como causa essencial do suicídio. E ficara surpresa ante as elucidações, porquanto, em verdade, todo obsidiado que se deixou arrastar ao desequilíbrio psíquico, por invigilância, é igualmente um suicida, desde que descuida do precioso vaso da carne, diminuindo-lhe a resistência e abreviando-lhe a caminhada.

Mas os conflitos que me assaltavam eram muitos.

Quantas vezes, eu mesma, com emoção e piedade, ouvira as manifestações psicofônicas de almas torturadas e mais não fizera do que balbuciar uma rápida oração intercessória! Não se repetiria agora o mesmo fenômeno caso conseguisse o ensejo de um breve colóquio com os irmãos encarnados? A situação permanecia a mesma para eles, como fora para mim, antes da desencarnação. Mudara somente para a minha alma.

Era, pois, imprescindível esperar e sobretudo confiar.

A saúde, no entanto, dilacerava-me. A necessidade, minha filha, de falar-te, o anceio de retornar ao nosso lar, rever os amores, da retaguarda, angustiavamme. Rogaria permissão à irmã Zélia, logo se me ensejasse ocasião. Confiaria ao futuro a minha ansiedade.




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