Além da Morte

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CAPÍTULO 27

RETORNO AO LAR

Quando soavam as vinte horas, de coração opresso entramos no Lar, irmã Zélia e eu. Preparavas a mesa, minha filha, para o banquete com o Evangelho.

Desde as vésperas — informara-me a Orientadora — foras avisada pelos teus dedicados protetores, quando o sono te desdobrou. Já de outras vezes nos encontráramos, em agradável comunhão, sob a tutela do repouso físico. E por essa razão, guardavas a ideia de algo que não sabias explicar. Descompassada e celeremente procuravas sondar as telas da memória anterior, procurando recordar a notícia que prenunciava as satisfações dos próximos momentos. Inutilmente, porem.

Também eu, embora amparada pela Benfeitora prestimosa que se oferecera a auxiliarme, guardava ansiedade e emoção indescritíveis. Era a minha primeira excursão fora da Colônia e esta aventura se me afigurava uma concessão valiosa que não sabia aquilatar.

O reencontro, filha minha, é sempre uma emoção indefinível para aqueles que atravessam a porta do túmulo. Porquanto, sensações que pareciam amortecidas, com a recordação momentânea, através da visão, retornam, convidando o espírito a estados angustiantes e lastimáveis.


Sem poder vencer as evocações ali tão vivas, retornei aos sítios das lembranças, enquanto pequenas aflições se sucediam em minha alma. Voltaram-me ao pensamento, como por magia, velhos e insignificantes hábitos diários, satisfações e preocupações, agora em formas-pensamento, a povoarem o recinto que habitara. As vozes das crianças, buliçosas e álacres, sacudiam-me o ser, e um intenso desejo de falar-lhes, abraçá-las, comunicar a minha presença, no momento, aspirar o ar que outrora me enchia os pulmões, descontrolou-me momentaneamente o equilíbrio ainda vacilante. A irmã Zélia que me acompanhava o drama do momento, em que o tempo era vencido, desaparecendo o passado para somente existir o presente, acudiu-me, zelosa:

— Otília, não permitas que a ansiedade destrua a presente concessão do Céu. Pensar fortemente é construir, e recordar com demasiada intensidade é reviver. O momento não comporta lamentação mental nem desejo pessoal inoperante. Valoriza a joia dos minutos e procura serenar a alma para o êxito do nosso empreendimento.

Assim admoestada, procurei refazer-me sob a inspiração da paciência, enquanto me entregava à mãos do Senhor, agradecendo-lhe a felicidade daquela hora.

A noite contribuía para a justa felicidade do nosso entrelaçamento afetivo. Uma grande serenidade passeava no ar leve, transparente, coroado de estrelas no Infinito.


O velho companheiro, que me fora um anjo benfeitor na romagem da carne, para a justa felicidade do nosso coração, estava à mesa, e as crianças o cercavam. Colocaste o vasilhame da água para a magnetização e, iniciado o Culto Evangélico, o texto lido falava sobre "Parentela corporal e parentela espiritual. "

(*) Após a leitura, ante uma assistência atenta de companheiros desencarnados, instada pela devotada Amiga, aproximei os meus lábios dos teus ouvi-dos e, pousando a mão espalmada sobre a tua cabeça, pus-me a falar-te sobre o trecho lido. A tua mente foi-se banhando de filetes azulados de luz, à semelhança do gás néon, e, em breve, do centro da tua cabeça, uma grande flor, com pétalas brilhantes e múltiplas, parecia surgir, tomando forma, e crescendo e derramando tonalidades violeta-azuláceas que corriam pelo sangue, colorindo lentamente a cabeça, tórax e todo o corpo.


De mão apoiada à testa, na região do olho de Silva, ligando as pontas dos dedos à minúscula glândula interna da cabeça, pequeninos fios coloridos tornavam-se brilhantes, fechando um circuito elétrico que a ambas nos envolvia. Procurei falar-te, então, através de apelos reiterados:

— Fala, filha!... Fala!... Repete!...

(*) Capítulo XIV— item 8, de O Evangelho Segundo o Espiritismo. (Nota da Autora espiritual).

E, paulatinamente, concentrando-se cada vez mais, traduziste o meu pensamento, explanando juntas, fundidas no grande ideal da Caridade, sob a égide do Cristo, o texto admirável. A palavra facilitada pela inspiração superior irrigava-me o cérebro e passava a ti numa sincronização perfeita, em torno daqueles que, embora não pertencentes ao nosso corpo nem ao nosso sangue, são irmãos nossos, filhos do Boníssimo Pai, em nosso caminho de reparações. Faziam parte da imensa caravana dos infelizes, fustigados pela fome, frio, enfermidades, ou eram seres tresmalhados, dominados pelo ódio, revolta, inquietação, atados à esteira da viciação, do crime, da miséria moral — mais infelizes do que os primeiros — ou aqueles outros que zarparam na embarcação da morte e agora, em terras bravias, se desesperavam, sedentos de posse, dominados pelo horror. Todos éramos realmente irmãos, numa família ampliada e espalhada por terras diversas, limitados por fronteiras de entendimento, mas todos amados e carentes de ajuda recíproca.

Nesse ínterim, Amigos prestimosos higienizavam nossa Casa, destruindo larvas de viciação psíquica, reinantes no ambiente, e guerreando bactérias mentais, que infestavam, invariavelmente, os lares.

Entre os maiores benefícios prestados pelo Culto Doméstico, no campo da fé religiosa, além da fraternidade e do entendimento, passe e magnetização da água, destaca-se o da harmonia e identificação do pensamento em torno da monoideia elevada, propiciando campo e material ao combate às vibrações negativas que grassam nos ambientes coletivos.

Nosso colóquio prolongou-se por vinte minutos, aproximadamente, quando conclamamos os ouvintes à Caridade, desde a compaixão emotiva ao auxílio socorrista, materializado em doações pessoais, como entendimento, distribuição de pão, remédio e agasalho.

Compreendemos que o homem, aparentemente mau, é apenas um enfermo, portador de muitos males, e que o coração que se banha nas águas turvas do ódio é apenas um espírito desequilibrado, sem roteiro nem discernimento para utilizar com sabedoria as oportunidades do caminho. E, em face disso, nossa função é amparar o doente, combatendo-lhe a enfermidade; ajudar o mau, guerreando o mal que lhe perturba a organização espiritual, consoante os ensinamentos de Jesus.

Apagadas as luzes para as vibrações e preces intercessórias, utilizei-me do momento para cooperar na transmissão de energias, imitando os nossos Amigos mais lúcidos, oferecendo-te, e aos nossos, a doação materna, em carinho e coragem, confiança no futuro e entendimento na dor, essa grande libertadora, alargando, com o auxílio divino, os nossos celeiros e guardando neles os valiosos recursos do momento, para os dias do futuro.

Encerrada a reunião, acompanhei a alegria geral, participando das conversações posteriores, ligada pelos fios do pensamento e assegurando-te a confiança vacilante, quanto à minha estada, no Lar, naquele momento.

Uma grande ventura invadia-me toda. Mais uma vez observava a excelência da fé e o valor do lar cristão nos grandes cometimentos da vida. Voltou-me à mente o ensinamento do Divino Mestre: "Aquele que crê em Mim já passou da morte para a vida", e senti na vida vitoriosa, além da morte, a Mensagem cristã como um farol abençoado.

Graças ao Espiritismo, que nos legou os meios que favorecem a comunicação entre os dois mundos, podem as almas trazer a notícia aos caminhantes da experiência física, revigorando-se pela permuta de amor, já que não cessam as emoções no intercâmbio da vida.

Graças a Allan Kardec, que "matou a morte", podemos hoje repetir que realmente "ninguém morre". A vida é inextinguível. Com a destruição do corpo, o espírito libra-se acima das vicissitudes e continua. E ante a minha felicidade, não pude deixar de render o meu culto de gratidão ao Professor lionês que tanto sofreu, desde a chocarrice e o escárnio dos contemporâneos até o opróbrio e a maldição, para positivar a continuação da vida, depois da destruição dos despojos materiais.

Somente quanto a noite seguia avançada e te recomeste ao leito, pude receber-te nos braços, nas asas do sono, demandando, ao lado da abnegada Benfeitora, o pouso onde nos demoraríamos, durante a excursão de aprendizado na Crosta.

No alto, as estrelas prateavam de faiscantes e luminosos fios o veludo espesso com que se cobria a noite formosa. O ar misturado de ozone e iodo, vindos da viração marinha, brincava no silêncio noturno. Jesus parecia mais próximo de nós, certamente porque, através do amor, estávamos mais próximos dEle.




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