Além da Morte

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CAPÍTULO 33

ESPIRITISMO E CRISTIANISMO

Um ano depois da chegada de Gonçalves, eu já tomava parte ativa nas frequentes excursões ao Orbe, em aprendizado e tarefas de auxílio, quando o dr. Cléofas informou que poderíamos acompanhá-lo à reunião da tarde seguinte, a fim de ouvirmos a palavra sábia e consoladora de dedicado pregador espírita desencarnado havia alguns anos.

Chegando ao recinto, deslumbrei-me com a multidão expectante, em cujo semblante o júbilo vibrava, presente nas emoções gerais.

Depois de alguns minutos, acompanhada do Diretor da Colônia, apareceu na plataforma, tomando assento à mesa, a figura veneranda de José Petitinga, o esclarecido trabalhador espiritista da Bahia.


O respeitável cristão, delicadamente apresentado, dirigiu-se à singela tribuna e, depois de breve reconhecimento, aureolado de claridade diamantina, saudou-nos com a alocução que o Mestre nos legou:

— Amados irmãos, paz seja convosco! "Uma grande noite abatera-se sobre a Terra, demorando-se, impiedosa.

A dor, zombeteira, escarnecia da Fé, derramando a sua taça de amargura e desespero.

Respeitáveis patrimônios de crença desmoronavam-se fragorosamente. Campeavam o crime e o medo.

A imoralidade vencia as resistências e enxovalhava os lares.

Fermentavam ódios e vinditas enlutavam corações, destruindo famílias inteiras.

Santuários austeros eram violados pelo desrespeito dos próprios zeladores.

A fauce hiante do horror apresentava-se e, gritando, feroz, a todos conclamava ao prazer animalizante, à posse indébita, ao saque violento, à destruiç ão.

Quantos obstinados que desejavam erguer barricadas em torno dos tesouros da honra, da família, do Bem, eram massacrados e vencidos, O ridículo sorria em todas as bocas, e crer, vivendo a fé, representava quase uma enfermidade que inspirava asco aos cínicos.

Estabelecera-se o Reino da Loucura.

Depois de séculos de obscurantismo e dominações guerreiras, a Razão e a Justiça ergueram-se para destruir as algemas escravizantes, inaugurando uma era de novas misérias.

Em nome da razão empírica, surgiram ideias absurdas destruindo venerandos princípios. Deus foi exilado de França como um réprobo e o materialismo, decorrente dos conceitos ousados de pensadores precipitados, dilatou seus domínios.

Quando a razão, apoiada no cientificismo moderno, avançou, investigando, o desequilíbrio arrancou expressões que traduziam a loucura da época. — Ciência e Razão, eis os meus deuses — gritaram os investigadores do fenômeno da vida, transtornados.

Concomitantemente a Justiça, que nascia como um Ideal e que ousava partir os grilhões do absolutismo do poder para proclamar os Direitos do Homem, em hora de desespero, também gerou hecatombes que dizimaram populações no último quartel do século XVIII. E o futuro que se delineava cheio de esperanças crispou as águas, ameaçando o barco da Humanidade, açoitado nas cristas gigantescas das ondas desvairadas, em tormentas incessantes.

A Ciência examina e procura, libertando-se de todos os preconceitos, renovando concepções e amadurecendo descobrimentos.

A filosofia indaga e cresce, elegendo ídolos e derrubando-os logo depois na ânsia de encontrar respostas às indagações filosóficas.

A alma do povo sofre o efeito do desequilíbrio dos dirigentes do pensamento universal.

Todas as atenções se voltam para o Céu, que parece distante dos terríveis problemas da hora.

Mas, nesse momento de angústia, o Espírito luminoso de Allan Kardec, tantas vezes experimentado nos grandes testemunhos ao Bem, é chamado ao torvelinho da carne.

A França manda seus filhos estudar em outros países, depois da queda dos princípios filosóficos que derrubaram a Bastilha e geraram tanto horror. E o jovem Denizard Rivail é enviado a Yverdon, na Suíça, para, junto a Pestalozzi, o Professor ideal, burilar o pensamento, retemperando a moral diamantina para as grandes lutas em que se empenharia mais tarde.

Chamado à liça, no momento das mesas girantes e falantes, recebe, frio a princípio, depois meticuloso e por fim entusiasta, a mensagem revolucionária do Além Túmulo, obedecendo ao convite para ajustar-se à Missão de propagar, viver e sofrer pelas ideias novas.

As vozes voltam a falar.

Os túmulos quebram o silêncio e os mortos ficam de pé.

Surge o Espiritismo clareando consciências e consolando corações. Interrogações milenárias encontram respostas lúcidas à luz meridiana da razão científica, que afirma a imortalidade, através dos seus mais altos expoentes.

Teorias estúpidas, secularmente aceitas, tremem nos seus fracos pedestais e edifícios de falso saber tombam, em nuvens de pó.

Ideologias, guardadas pelo longo silêncio dos tempos, voltam à atualidade e impõem-se vitalizadas pela nova Filosofia.

Os mistérios de Elêusis e Ísis são aclarados.

A morte é vencida no reduto a que se acolhera, demorando-se esmagada sob a realidade do espírito livre.

Kardec sai a campo.

Encapeladas mareações são vencidas.

Perseguições supremas tentam cercear-lhe a marcha, sem o conseguirem, todavia.

Traz uma Mensagem para o mundo e dá-la-á com o ardor de um apóstolo e o entusiasmo de um esteta.

Sua palavra, concisa e lógica, enfrenta as superstições e as esmaga.

Sua pena luminosa polemiza e esclarece.

Sua vontade férrea fá-lo dominar a covardia de uns e o pieguismo de outros, continuando a jornada luminosa.

A Doutrina Espírita brilha fulgurante, rompendo a noite e vencendo-a. Almas aflitas buscam o Consolador.

Corações saudosos mergulham o pensamento em novas concepções e o amor se renova sob os auspícios da Eternidade. Criaturas simples e sofredoras batem às portas do Paracleto, carregadas de problemas e inquietações, e são atendidas com elucidações vitalizantes.

Quando O Evangelho Segundo o Espiritismo difunde as letras que guardam o Verbo do Mestre Inconfundível, iluminadas pelas informações dos 1mortais, a Religião Espírita planta a semente da Fé incomparável e cresce albergando multidões. É que no seio dessa Crença há lenço para todas as lágrimas, consolo para todos os sofrimentos e remédio para todas as doenças. Jesus Cristo, que parecia longe do mundo, volta mundo e fulgura nos corações.

Deus, que fora exilado na Grande Convenção de França, volta e permanece acima de todas as Igrejas como o Supremo Arquiteto, amado e respeitado.

O dogma enfermiço e obsoleto é substituído pelo livre exame.

A intolerância é trocada pela compreensão. A supremacia religiosa é vencida pelo bom senso.

O egoísmo é dominado pela caridade. Os homens voltam a ser irmãos.

Por isso afirmou o excelso Codificador: "A Caridade é a alma do Espiritismo. Ela resume todos os deveres do homem para consigo mesmo e para com seus semelhantes. E por isso que se pode dizer que não há verdadeiro espírita sem Caridade".

Retornava à Terra o Cristianismo puro, ensinado por Jesus e seus discípulos nos três primeiros séculos da nossa História.

Com o Espiritismo, o amor volta a reinar glorioso. "Não temos o direito de ser felizes, mas o dever de fazer a felicidade do próximo" — afirmam as Vozes.

Não somos credores de honra nem de alegrias, antes, devedores de graças e concessões valiosas.

Não dispomos de títulos que nos permitam angelitude nem paz. Somos condutores de fichas com anotações que nos convocam à retaguarda para recuperações.

O homem chora — nossa oportunidade de servir;

O homem odeia — nosso ensejo de amar;

O homem se desespera — nosso momento de ajudar;

O homem corre enlouquecido — nossa ocasião de amparar;

O homem anseia por liberdade — nossa hora de reencarcerar-nos na carne para ascender com ele àvida maior. Este o novo regulamento.

Jesus é a porta da felicidade.

Kardec é a via de acesso.

O Cristianismo é a resposta celeste ao angustiante apelo do mundo.

O Espiritismo é o condutor do homem aos braços do Pastor Divino. Avancemos no Bem, demoremos na bondade, exercitemos na renúncia. Não tenhamos dúvidas de que o Senhor aguarda por nós. Resta-nos apenas a resolução de avançar para o Senhor.

Paz seja convosco!" Ao terminar, coroado de luz, afastou-se, humilde, demandando o lugar à mesa que ocupara antes.

A emoção tomava-nos a todos. Júbilos e saudades, recordações e ansiedades múltiplas falavam em nossas almas.

Delicadas pétalas de rosas caíam do teto e desfaziam-se no recinto, impregnando-nos de agradável e suave aroma.

Era a resposta do Céu, naquela hora de comunhão com o Alto.



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