Além da Morte

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CAPÍTULO 4

A CAMINHO DO SEPULCRO

Não tive noção do tempo em que permanecera em agitado sono, vencida por emoçoes violentas e complexas. Ao despertar, guardava a sensação do intenso frio que me envolvia, enquanto as células de todos os órgãos continuavam a negar-se a atender ao comando do cérebro paralisado. Todo o meu corpo estava aniquilado ao impacto de forças desconhecidas.

Abri os olhos e, em verdadeiro pandemônio emocional, encontrei-me no salão da nossa Casa de Orações, com o corpo deitado no ataúde, visão essa que aumentava o meu sofrimento.

A dor no peito ampliava-se, constringindo-me a garganta sedenta. Desejei desesperadamente um copo de água fresca, inutilmente. Enquanto a sede me escaldava os lábios, ardiam-me os olhos, doía-me o corpo e o cérebro era devorado por inquietações crescentes. Ante a evidência da desencarnação, procurava orar, sem o conseguir, atormentada pela inconformação. Portadora de alguns conhecimentos da Doutrina dos Espíritos — caminho de luz no mundo de trevas —, recusava-me, contudo, a aceitar a realidade inelutável.

É certo que eu sabia, através de noções doutrinárias do Espiritismo, que a morte não representa o fim, mas o princípio de uma vida imperecível, e acreditava-o de coração. No entanto, meditava, acomodando a Superior Vontade aos meus próprios caprichos: eu não podia morrer ainda. Necessitava da generosidade do tempo para desincumbir-me das tarefas a que ultimamente me entregara, no santificante serviço do amor. Recordava o passado próximo, as lutas mal sofridas, revia a taça de ilusões onde tantas vezes me embriagara, e compreendia a inadiável urgência de recuperação, no labor das horas novas, libertando-me, então, das pesadas algemas.

Em meio a esse conjunto de anseios e interpelações, entre evocações de enganos sofridos e receios dos efeitos que chegariam, vi-me, de súbito, diante do grande painel, ligado à minha mente, para o qual fui poderosamente atraida. Pude ver, como numa grande tela cinematográfica, o desenrolar dos fatos que representavam a minha existência, em miraculoso retrospecto, repetindo-se em vertiginosa celeridade, sem omissão de qualquer detalhe.

Revi-me na infância, programando os jogos do futuro no tabuleiro da inocência. Coisas e acontecimentos mortos em minhas lembranças surgiamme com seus contornos e nitidez impressionantes, gritando-me à memória em brasa os erros e gravames das atitudes nem sempre dignas de antes.

E o incrível é que, para cada compromisso com o erro daquele tempo, surgiram-me agora as soluções que antes não me ocorreram, patenteando a Sabedoria de Nosso Pai ao alcance de nossas mãos, mas nem sempre utilizada. Raciocinando, esquecida por um momento de todas as dores, reencontrava o Evangelho Redentor a apontar diretrizes para a alma juvenil e que eu ouvira nas aulas de Catecismo ou junto ao coração materno. Retornei, por esse processo, às ruas do passado, revivendo as lágrimas e os sorrisos da existência.

Conservava a impressão de que todos os meus atos foram cuidadosamente anotados por criterioso e vigilante amanuense a quem nada escapara, registrando inclusive as ideias más que, um dia ou outro, me visitaram a tela mental. A perfeição dos escritos era tal que estes tomavam forma, movimentando-se à minha vista, cobrindo-me de vergonha e horror. Quanta coisa negativa construíra nos meus dias, sem o perceber. Sabia não ser um anjo em viagem turística na Terra. Todavia, jamais supusera ter sido tão negligente no cumprimento do dever. Algo interior desejava protestar contra muitas cenas, agora em revisão. Mas a consciência, liberta das algemas da acomodação, impedia-me de mentir, ampliando ainda mais as responsabilidades do momento.

Aterrada, cheguei à conclusão de que os pensamentos e atos da criatura se fixam no Além, por processos que me escapavam ao entendimento, permanecendo vivos, mesmo quando deles nos esquecemos.

Antes que pudesse alongar-me em meditações proveitosas, na inquietação que me sacudia, retornei à sala onde outra realidade me fazia mais desencantada e aflita... Não podia agora contestar a realidade da minha "morte".

Observei que todos oravam, e, ouvindo alguém chamar-me com veemência, fui arrastada e deparei-me contigo, minha filha. Pude ver que recordavas os dias em que vivemos juntas, porquanto os teus pensamentos formavam quadros vivos onde eu me encontrava também.

Desejei abraçar-te, mas, quando me dispunha a isso, erguiam o caixão que me conduzia o corpo.

O pavor do momento foi-me superior à capacidade de calma e confiança. Procurei, no meu desespero, correr para longe daquela cena pungente que me feria e amargurava; todavia, cordões espessos e escuros ligavam-me aos despojos, arrastando-me com eles...

Reconheci as ruas por onde seguia o féretro, embora as notasse escuras e movimentadas, como se pesada sombra se abatesse sobre as casas, e multidão desvairada tivesse saído às calçadas. Escutei a voz dos transeuntes que pareciam revoltados, brandindo pedaços de madeira, como armas improvisadas. Alguns me ameaçavam e, vendo-me a expressão de horror, recuavam gargalhando, como loucos libertos de sanatório nefando.


Chegando ao Cemitério, ouvi gritos e lamentações que me despedaçavam a alma. As vozes, que mais se assemelhavam a emissões animalescas, compunham musicalidade infernal, indescritível. Massa humana, de grotesca forma, cercava-me o ataúde, comentando, zombeteira, a situação da recém-chegada:

— Será discípula do Cordeiro ou irá engrossar nossas fileiras? — disse alguém com sarcasmo.

— Examinemos-lhe as emanações — retorquiu outro.

— Cuidado com os vigilantes "miseráveis" — advertiu um terceiro.

— Deve ser alguma "pobre ovelha do Rebanho"! —exclamou mais alguém.

E com a mesma voz: — Olhem as defesas que a envolvem...

— Não nos impacientemos — gritou o primeiro. —Saibamos esperar e aguardemos os acontecimentos. Deixemos que os "comparsas de fé" lamuriem os apelos ao Chefe e seus "sequazes".

Tudo aquilo era um fenômeno novo e horripilante. Aconcheguei-me ao caixão, desejando arrebatálo e fugir dali com o fardo das minhas carnes.

Não me pude demorar na contemplação daquelas cenas terríveis. Força incoercível detinha-me atenta no esquife que era depositado no fundo da sepultura. Escutei o som da laje a cobrir-me os despojos e o dos instrumentos que eram usados para o lacramento da campa. Apavorada, encontrei-me ligada às vísceras mortas, estando viva. Gritei desesperadamente, em lamentável estado, e caí desmaiada.

Até o momento, não sei quanto tempo ali estive, em delírio. Despertei lentamente, conservando a cabeça atordoada, demorando-me a recompor os pensamentos que pareciam perdidos em brumas espessas. Doíame o corpo, sacudido de quando em quando por terríveis arrepios. A dor agudíssima do coração demorava a esmagar-me de uma vez.

Verifiquei que, embora o corpo estivesse morto e começasse a avolumarse, tomando aspecto horrendo, eu me sentia em um corpo gêmeo àquele que caminhava para a putrefação e, em tudo, idêntico a ele, inclusive no vestuário.

Mas não dispunha de serenidade para meditar.

Vagarosamente rememorei os últimos acontecimentos e, quando ao recordá-los, cheguei à certeza de que estava na sepultura, fui acometida de convulsivo pranto.




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