Além da Morte
Versão para cópiaAINDA NO CEMITÉRIO
Amparada pela alva mão de irmã Liebe, tive a impressão de que a laje de cimento que tanto desejara erguer em busca dE liberdade, do ar e da luz, apresentava possibilidade de ser transposta. Sem que o percebesse quase, atravessamos o obstáculo que tanto me afligira antes, e, em breve, aspirei a longos haustos o ar da Casa dos Mortos, misturado a complexo aroma de flores desabrochantes e em decomposição.
A noite calma e o céu coruscante ofereciam acolhedora esperança ao meu espírito aflito. As estrelas mais se pareciam a joias engastadas em veludoso manto, acenando de longe, com suas luzes, as mensagens silenciosas da paz. A luz principiava a sua travessia pelo Infinito e para isso se cobrira de tênues véus de nuvens alvacentas, qual noiva jubilosa no momento da boda. E, certamente, era ela a noiva da Alva em caminho das suas núpcias com a luz.
Meus ouvidos espirituais escutaram o bater lento das horas: meia-noite! Vento frio soprava dobrando os ciprestes escuros banhados da claridade lunar.
Os vultos solitários dos anjos de pedra, sobre os jazigos, confundiam-se com as coroas de metal que tentavam imortalizar as expressões floridas da natureza e tomavam aspectos variados no claro-escuro do ambiente.
Ainda me encontrava embevecida pela visão da noite argêntea, quando a irmã Liebe me convocou para a recordação do Evangelho, no que diz respeito ao zelo pela prece e à vigilância para evitar mergulhos na tentação(1).
Busquei a meditação, tentando reequilibrar-me interiormente e, como se a vista me alargasse a percepção, notei que multidões pervagavam entre os túmulos, formando grupos vários que se confundiam em confabulações...
Alguns, de ar escarninho, passavam gargalhando e satirizantes, proferindo expressões vulgares, zombeteiras e coléricas. Guardando carantonhas ridículas e disformes, surgiam de súbito, em esgares infelizes, perdendo-se, logo após, no escuro dos jazigos. Outros conservavam-se ajoelhados, em atitude de oração, consoante suas confissões religiosas, banhados de pranto, em imprecações desesperadas. A medida que minha visão se tornava mais profunda, conseguia registrar as cenas em derredor, multiplicando-se as ocorrências. Notei que o número
(1) Marcos
de visitantes aumentava consideravelmente.
— Observa o mausoléu ao lado — falou-me a irmã Liebe, sem afetação. Olhei na direção indicada e defrontei-me com uma anciã, de venerandos cabelos brancos, ajoelhada junto a uma cruz, retorcida pelo tempo, orando com emoção e enternecimento. Dos seus lábios, coroando o murmúrio de prece, colorações de luz, em cambiantes multicores, caíam sobre a pedra tumular. Apesar de singelamente vestida, deixava perceber, à primeira vista, a nobre hierarquia espiritual a que pertencia.
Tocada pela beleza da anciã, fui naturalmente impelida a indagar quanto à procedência de tão nobre matrona. Antes, porém, que eu enunciasse a questão, a amiga espiritual esclareceu:
— Trata-se de devotada mãe, em serviço de assistência à filha desencarnada há mais de cinco anos e que ainda se encontra presa às reminiscências físicas. Ligada fortemente aos Espíritos infelizes, aos quais negara oportunidade de reencarnação, quando no plano carnal, sofre-lhes agora as funestas consequências.
Saída das zonas de recuperação espiritual —continuou a irmã Liebe —, ao nascer, trazia consigo o compromisso de receber nos braços, pela maternidade torturada, quatro adversários de outrora, com os quais deveria refazer os liames do amor pela sublimação nos testemunhos dolorosos. "Filha da classe média, contraíra núpcias com antigo companheiro, cujos recursos valiosos se constituíam dos tesouros morais, pois que, na esfera dos negócios era, apenas, servidor do comércio, sem muitas possibilidades. "Educada nos padrões imediatistas do planeta, apesar dos esforços e exemplos maternos, preferira, logo depois do matrimônio, o jogo enganoso das ilusões, em detrimento das responsabilidades sagradas do Lar. "Alegando dificuldades de ordem financeira, não permitiu que a família crescesse além de um rebento que lhe constituía felicidade vaidosa, fechando as portas da oportunidade aos demais necessitados. Reiteradas vezes, solicitada à aquiescência procriativa, negava-se, embora as admoestações da mãezinha, a esse tempo, ainda reencarnada. Conselhos, advertências e apelos não lhe modificavam a atitude íntima. Todavia, descuidando da vigilância, por duas vezes se sentiu visitada pela presença do feto que impiedosamente expulsou, revoltada, com o auxílio de drogas que igualmente a minaram, dia a dia, através de enfermidade desconhecida e pertinaz, com sede no útero. "A desvelada genitora, ao seu lado, desdobrou esforços e canseiras, assistindo-a com o carinho necessário e a oração silenciosa, oferecendo-lhe energias reparadoras à organização combalida. "Logo que se sentiu aparentemente recuperada, a infanticida retornou ao lugar comum, longe do equilíbrio nobilitante e salvador. "Nesse ínterim, a mãezinha debilitada pelas noites insones e longas, atravessadas nas laboriosas tarefas dos inadiáveis deveres, desencarnou entre preocupações e lágrimas. "Não passaram doze meses, depois do nefando crime do aborto — continuou a gentil mensageira, dando nova inflexão à voz, emocionada —, e a jovem sentiu-se novamente visitada pela bênção da oportunidade maternal. Todavia, assim que percebeu a presença da vida, brotando dentro do ventre, deixou-se arrastar por ódio violento, tentando, por todos os meios, libertar-se do intruso, não solicitado. "Sua mamãe, então desencarnada, portadora de bela folha de serviços, interferiu junto de Amigos Espirituais, conseguindo a dita de falar-lhe em sonho, sobre as responsabilidades sagradas da mulher, concitando-a à aceitação do dever, em cujo resgate estava empenhada a própria vida. Admoestada pela abnegação maternal, comprometeu-se a conduzir os passos noutra diretriz, sem o confirmar, entretanto. Ao despertar, embora guardando as impressões registradas no subconsciente, reconduziu a mente às ideias habituais, procurando, desvairada, o concurso de infeliz mulher, dedicada ao crime do infanticídio. "Executado o ato macabro, retornou ao lar, reintegrando-se no mundo calamitoso das aparências. "Sentindo-se falido na tentativa, pela terceira vez, o Espírito, despejado violentamente, voltou a aderir psiquicamente nas paredes uterinas, provocando hemorragias violentas que não puderam ser sustadas, nem mesmo com imediata intervenção cirúrgica. "Vinculada poderosamente aos laços carnais, demora-se, até hoje, vampirizada pelo vingador implacável, e perseguida por outros sicários dos quais procurou fugir, cerceando-lhes o acesso aos planos dos reajustes na carne.
— E quando se libertará? — perguntei, inquieta.
— Só Deus o sabe! — respondeu, penalizada.
— Precisamos recordar — acrescentou a prestimosa enfermeira — que a pobrezinha dispôs de oito anos, abençoada pelas ensanchas do matrimônio e atendida seguramente pelo acolhimento socorrista e esclarecedor da genitora. Agora é com o tempo...
Antes que a irmã-amiga encerrasse o assunto, indaguei, recordando de mim mesma:
— E a oração da mãezinha devotada oferecer-lhe-á algum efeito benéfico, uma vez que só o tempo poderá libertá-la do desespero a que se atirou?
— Evidentemente — elucidou, bondosa. — A prece, em todas as situações da existência, é um refrigério e um bálsamo. Ela não sentirá o concurso oracional livrando-a do sofrimento, o que representaria ludíbrio à Lei. No entanto, experimentará trégua íntima, recordando os deveres traidos, o Lar destroçado por sua culpa e, através de meditações e lágrimas, preparar-se-á lentamente para o futuro. Agasalhará no íntimo a esperança e lutará contra o ódio que a consome nas garras da desesperação.
Profundamente impressionada, ensaiei íntima oração intercessória, esquecendo-me de mim mesma, como me acostumara a fazer nos dias passados, no reduto das nossas comunhões mediúnicas com o Além-Túmulo. Pude verificar, em meu próprio ser, o quanto é a prece manancial de bênçãos, ao alcance das nossas mãos, o que nem sempre sabemos utilizar devidamente. Despertando-me das cogitações, a irmã Liebe convidou-me a sair do Cemitério, enlaçando-me com ternura carinhosa.
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Marcos 14:38
Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.
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