Nos Bastidores da Obsessão - Novo Projeto

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CAPÍTULO 1

A família Soares

Terminados a leitura evangélica e o competente comentário tecido em breves considerações, o dirigente da reunião proferiu expressiva oração, através da qual, sensivelmente emocionado, rogou o auxílio das Esferas Superiores para a tarefa da desobsessão.

Aqueles trabalhos faziam parte do programa de socorro a que se afervorava, havia duas décadas, o irmão José Petitinga.

No santuário em que se desenvolviam os labores fraternais, o odor da caridade sempre impregnava os sofredores de ambos os lados da vida, que ali aportavam angustiados e afligidos.

Incorporando, o Benfeitor Saturnino ofereceu as palavras de consoladora confiança com que habitualmente traçava as ligeiras diretrizes no ato da abertura da sessão, atestando o concurso eficiente dos Obreiros da Espiritualidade, e, dirigindose à irmã Amália, arrancou-a das cogitações dolorosas que a constringiam.

Experimentando singular amargura, a jovem tinha o semblante sulcado de dor e o espírito singularmente trucidado...

Através de expressões carinhosas e alentadoras, o Instrutor Espiritual esclareceu que fora programada para aquela noite a visita de indigitado perseguidor, vinculado pelo pretérito delituoso à família Soares, ali representada, naquele momento, pela moçoila comovida.

— Desde às vésperas — explicou, solícito —, fora providenciado o socorro a Mariana, mais intimamente afinada com o visitante, que logo se utilizaria da mediunidade psicofônica, em incorporação atormentada, tendo em vista as circunstâncias do drama em andamento, que poderia colimar numa tragédia irremissível.

Para consubstanciar o labor da noite — prosseguiu, gentil —, levaram-se em conta os títulos de amor granjeados por Amália e sua genitora entre os Dirigentes Espirituais da Casa.

Em verdade, Dona Rosa desde há muito experimentava pesado fardo de aflições sem nome, que a esmagava lentamente.

Muito jovem consorciara-se com atormentado moço que, invigilante e descuidado dos nobres deveres da família, permanecia ligado psiquicamente a vigorosos sicários desencarnados que o perseguiam sem trégua...

Cobradores impiedosos seduziram-no desde cedo, levando-o a desenfreada jogatina, premeditando, soezes, um dia assassiná-lo, através de uma sortida policial no antro em que se refugiava para o cultivo da viciação danosa com outros não menos atormentados comparsas, programa esse em andamento...

Embora as dificuldades financeiras a que se via atado, na condição de genitor de seis filhos necessitados de assistência e melhor orientação, deixava-se ficar, descuidado, noites a fio entre a expectativa de um lucro imaginoso e ilícito e a perspectiva de uma fortuna impossível e desonesta.

Enquanto minguavam os recursos provenientes de modesta aposentadoria, não se esforçava ele por completar as poucas moedas com expedientes extras ou exercitando outra profissão.

Tal desequilíbrio do Sr. Mateus se manifestara desde muito cedo, em plena juventude. Todavia, com o renascimento de Mariana, na condição de sua filha, estranha recordação como que desatrelara reminiscências semi-apagadas que o venciam implacavelmente, fazendo irrespirável a atmosfera do lar, nos breves períodos de tempo que ali passava, agravando-se, à medida que a menina crescia, e que ora culminava em ódio surdo e recíproco, a explodir com frequência crescente, em ameaças infelizes que chegavam a graves cometimentos de parte a parte.

A mãe aflita desde algum tempo se iniciara nas lições consoladoras do Espiritismo, conduzindo Amélia, a mais dócil dos filhos, às fontes generosas e cristalinas do Evangelho Restaurado.

Nos ensinamentos confortadores em torno das leis de causa e efeito, as duas encontravam respostas lenificadoras para as ulcerações morais que dilaceravam o lar amargurado, sustentando-as nas lutas de todos os dias.

Afervoradas e humildes participavam dos serviços de socorro aos desencarnados na União Espírita Baiana sob a carinhosa direção do irmão Petitinga, que lhes minorava, também, as aflições, com mãos generosas e cristãs.

Naquela noite, todavia, Dona Rosa fora constrangida a ficar em casa, crucificada por superlativa agonia, aguardando o retorno de Mariana, que após lamentavel atrito com o pai obsidiado se evadira, rebelde, entre azedas ameaças e injustificadas atitudes, abandonando o calor doméstico, desfigurada pelo ódio e pela insensatez, embora os dezesseis anos de idade não completos.

Orando, e tendo entregue as dores ao Senhor, a mãe se deixara ficar no lar, enquanto Amélia acorrera, sofrida e preocupada, ao serviço da caridade, sufocando as próprias lágrimas, dominada por incoercíveis presságios.

O Templo Espírita de comunhão com o Alto era a sua esfera de luz, abençoado reduto de consolo, no qual hauria energias para prosseguir através dos pelagos das provações rudes, conquanto necessárias ao próprio burilamento.

Feito o preâmbulo elucidativo em ligeiras nótulas, o instrutor solicitou a indispensável concentração, desligando-se do médium Morais, por cuja faculdade psicofônica deveria comunicar-se o inditoso perseguidor familiar.

Morais era dedicado médium de psicofonia inconsciente, que se oferecia com expressivo carinho para o socorro aos desencarnados. Aliara à mediunidade bem disciplinada excelente disposição ao trabalho da caridade entre os atormentados da Terra. Aprendera com os Benfeitores Espirituais que o mais eficiente caminho para o aprimoramento das faculdades mediúnicas ainda é o exercício constante das qualidades morais, através da prática do bem indiscriminado e incessante. Assim, educara-se na discrição ante as dificuldades do próximo e transformara-se em cireneu de muitos seres caídos na luta.

Por essa razão, havia nele os requisitos indispensáveis ao exercício salutar da mediunidade, especialmente quando Saturnino trazia à doutrinação Entidades infelizes ou perversas.

De semblante transfigurado em máscara de esgares agônicos, o médium incorporou atro ser que, entre blasfêmias e expressões vulgares, exprobrava o cometimento de o trazerem ali contra a sua vontade...

— Farei justiça — exclamou, espumejante.

— A justiça sairá das minhas próprias mãos. Judeu Asavero, tenho jornadeado sem descanso, após traído, a sorver essa imensa e intérmina taça de fel e fezes que me envenena sem aniquilarme...

Envolvido carinhosamente pelos fluídos de Saturnino, o doutrinador, particularmente emocionado, dirigiu-se ao comunicante, falando-lhe da renúncia e do perdão como bases para a edificação da felicidade.

— O ódio — asseverou, Petitinga, bondoso — termina por vencer os que o cultivam.

Tóxico letal tem sua fonte na rebeldia que o vitaliza até que o amor, nas bases em que o vivia Jesus, lhe extinga a nascente.

— Nunca perdoarei! — explodiu em atroada constrangedora.

— O perdão é fraqueza inominavel! Para os que encontraram na vingança a única razão de existir, a simples ideia do perdão é qual raio fulminante, que carboniza... Nunca perdoarei, mesmo que destruindo seja destruído...

— Não, meu irmão — redarguiu, pausado, o inspirado doutrinador. — Nada se acaba. A vida não cessa. Encerra-se um ciclo numa faixa de evolução para reaparecer noutra e desenvolver-se mais além. Destruir é mudar a aparência de uma forma para renascer noutra. Embora ignorando as suas razões, as quais, todavia, não justificam o tornar-se infeliz, distribuindo rancor e trucidando com tenazes de vindita aqueles que se situam sob o comando da sua mente desarvorada, encorajamo-nos a lembrá-lo da compaixão. Recorde-se daqueles que serão vítimas da sua loucura, quando desejando ferir o seu desafeto irá, também, por sua vez, dilacerar os sentimentos dos que amam o seu antigo ofensor...

Não lhe comovem as lágrimas, as vigílias intérminas nem a vida trucidada de uma mãe por expectativas dolorosas? Teria você colocado no peito uma fornalha ardente em substituição ao coração que ama?

— O amor — refutou, congestionado — é poesia para os que se comprazem nas ilusões do corpo...

— O ódio, porém — considerou o evangelizador —, é nuvem que tolda a visão da paisagem, entenebrecendo-a. Fantasma truanesco entorpece as mais altas aspirações do espírito humano, conduzindo-o aos sombrios e intérminos corredores da loucura, sem paz nem lume...

Só o amor derrama sol nas almas, penetrando de esperanças os seres. Experimente amar e, de pronto, perceberá diminuir a própria dor.

— Amar? — exclamou, alucinado — Amor? Como amar se não poderei perdoar nunca, pois que jamais conseguirei esquecer todo o mal que me fizeram os traidores desalmados, cuja memória abjuro! A dor que me crucia fez-me perder a noção do tempo e a realidade da vida. Meu viver transformou-se apenas no intérmino buscar daqueles que me fulminaram, impiedosos, sem me terem destruído, o que teria sido bênção em relação ao que padeço. Certamente que eles esqueceram, sim... Eu, porém, nunca esqueci, jamais esquecerei!... Desde que se acumpliciaram os dois para aniquilar-me — o que não conseguiram, sem dúvida —, que a minha vida foi destroçada para sempre. A morte, que eu esperava ser um lenitivo, quando fugi com o espírito pisoteado de vergonha e dor, em nefando suicídio, ao invés de fazer-me desintegrar a consciência, mais ativou-a... Tenho chorado, e o pranto se transforma em aço derretido, escaldante, rasgando-me a face. Quando gritava, minha voz era recebida com doestes e zombarias inomináveis por mil seres que me perseguiam... E a dor que me despedaçava foi adicionada à dor acerba do suplício que me impusera para fugir... Morri sem morrer... E enquanto a vermina me penetrava o recesso do espírito fustigado por mil dores, eles, os meus algozes, gozavam, fruíam a juventude... Como se eu estivesse dirigido por duendes sem entranhas, era arrastado, em alucinada desesperação, para junto deles, de modo a vê-los, acompanhá-los, ouvi-los, e se me lançava sobre ambos e lhes gritava a minha infinita desdita, os seus ouvidos não me escutavam... Oh!, nunca poderei esquecer, perdoar, amar, nunca, nunca!...

O irmão Saturnino, semi-incorporado no venerando doutrinador, ergueu-o, e, dirigindo-se ao perturbador-perturbado, em oração, começou a aplicar-lhe passes, de modo a diminuir-lhe as agudíssimas exulcerações e torturas.

Branda claridade envolveu o comunicante, enquanto as mãos de Saturnino, justapostas às de Petitinga, como depósitos de radiosa energia, que também se exteriorizava do plexo cardíaco do passista, lentamente penetrou os centros de força do desencarnado, como a anestesiar-lhe a organização perispiritual em desalinho.

Com voz compassiva, o diretor dos trabalhos começou a exortar: Durma, durma, meu irmão...

O sono far-lhe-á bem. Procure tudo esquecer para somente lembrar-se de que hoje é novo dia... Durma, durma, durma...

Banhado pela energia balsamizante e dominado pelas vibrações hipnóticas que fluíam de Saturnino através de Petitinga, o perseguidor foi vencido por estranho torpor, sendo desligado do médium por devotados assessores desencarnados, que cooperavam no serviço de iluminação.

Prosseguindo os trabalhos de orientação, tendo em vista outros sofredores desencarnados e antes do término da reunião, o Mentor voltou a incorporar-se para esclarecer que, graças às bênçãos do Senhor, a primeira etapa do programa de assistência à família Soares, naquela noite, fora coroada de êxito.

Exortava todos àoração intercessória, em benefício dos implicados naquele processo, prometendo voltar ao problema na próxima oportunidade.

Proferida a oração gratulatória, foi encerrada a reunião.




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