Nos Bastidores da Obsessão - Novo Projeto

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CAPÍTULO 2

Socorro espiritual

Chegando ao lar, Amália conduzia o espírito balsamizado e toda ela era alegria que se desdobrava em esperanças. A presença do antigo inimigo desencarnado que se comprazia em afligir os seus familiares, presença essa através da interferência carinhosa do Benfeitor Espiritual, prenunciava bonanças em relação ao futuro do seu lar. Era como se uma aragem houvesse de repente passado, deixando a agradavel recordação do seu ameno frescor.

Pelo caminho, fitando o firmamento, tivera a impressão de que na transparência da noite leve os astros, luzindo ao longe, acenassem promessas de paz, em salmodias imateriais que pareciam poemas de amor em tom de confiança nos divinos desígnios.

Dona Rosa, em vigília, marcada pelos atrozes sofrimentos daquelas últimas horas, recebeu a filha transmitindo a notícia do retorno de Mariana, com os olhos umedecidos.

A moça atormentada voltara a casa, através das mãos generosas de Dona Aurelina, a velha ex-servidora doméstica, que era afeiçoada da família.

Sem saber o que ocorrera no Centro Espírita, a genitora tinha a certeza, porém, de que a interferência do Alto, em forma de socorro inesperado, era a responsável pelo imprevisto acontecimento.

Não se cansava de louvar o Altíssimo, enquanto a filha aturdida, que chegara com expressão de demência a desfigurar-lhe o rosto, parecia agora repousar no leito modesto e asseado.

Enquanto Amália fazia ligeiro repasto, fez breve resumo dos sucessos da noite, e com luminoso brilho nos olhos reportou-se ao ministério do esclarecimento, transcorrido minutos atrás entre o Diretor Espiritual e ó encarniçado perseguidor.

Em seguida, e antes de se recolherem ao necessário repouso, as duas buscaram o benefício da oração, envolvendo o Sr.

Mateus que se demorava fora de casa, atado à viciação que o atormentava, roubando ao corpo combalido as horas irrecuperáveis de refazimento das fadigas do dia, em vibrações de amor e paz...

Ocorrera, porém, que, antes mesmo de iniciada a reunião socorrista, Saturnino expedira Ambrósio, eficiente cooperador dos trabalhos de desobsessão, para que este encaminhasse Mariana de volta à família. Informado, no próprio recinto doméstico, por entidades ali residentes, quanto ao paradeiro da jovem, não lhe foi difícil encontrá-la em Praça ajardinada, no centro da cidade.

Percebeu, no entanto, de imediato, que a moça se encontrava visivelmente perturbada por Entidades levianas, encarregadas de darem prosseguimento ao clima da obsessão, embora a ausência do verdugo responsável pela enfermidade em curso.

Aturdida desde o momento do incidente com o genitor, Mariana procurou as ruas da cidade, tendo em mente a ideia de encontrar em Adalberto, o rapaz com que se afinava sentimentalmente, o braço amigo de amparo, de modo a fugir do lar que a infelicitava.

Surda ira a compelia a tomar qualquer atitude, conquanto pudesse libertar-se do jugo paterno...

O namorado, que trabalhava no comércio, somente à noite, após o serviço, poderia escutá-la com a necessária calma para tomar as providências que o problema exigia. Assim, combinaram o encontro para as 20 horas, no local em que agora ela estava.

Supunha amar o jovem, embora reconhecendo nele os desvios habituais naqueles que são indiferentes ao dever e à dignidade. A mãe, ela o sabia, desaprovava aquela afeição, por constatar que ele era corrompido e leviano, a ponto de viver experiências comprometedoras... Dona Rosa sentia, quase por instinto, que aquele homem, ao invés de amar a sua filha, ainda não preparada para as investiduras de um lar, como sem o necessário equilíbrio para acautelar-se das ciladas das emoções em desgoverno, desejava arrancá-la do carinho defensivo da família para arrojá-la nos desfiladeiros da miséria moral...

Ela, porém, o amava ou pelo menos supunha amá-lo.

Aguardava-o com tormentosa expectativa.

Como primeira providência, o vigilante mensageiro procurou desviar Adalberto de buscar a sua enamorada, propiciando-lhe mal-estar súbito, através da aplicação de fluídos no centro cardíaco, acentuando repentina indigestão.

Logo após demandou o lar de Dona Aurelina que, pelos laços de afeição à menina e aos seus, poderia ser-lhe fácil instrumento para os fins do projeto em andamento.

Envolvendo a velha servidora em seus fluídos, procurou falar-lhe com imensa ternura e forte vibração.

A respeitável senhora não o escutou através dos ouvidos materiais. No entanto, em forma de intuição, sentiu imperiosa necessidade de demandar a rua, qual estivesse teleguiada, até à moça que, a sós, esperava o companheiro.

Vendo-a desfigurada, a bondosa senhora acercou-Se, assustada, e cingindo-a num abraço de espontânea afetividade, envolveu-a nos fluídos de Âmbrósio, inconcientemente, estabelecendo sensível permuta de energias, de modo a arrancá-la dos liames dos Espíritos ociosos que a vítimavam...


Percebendo-a quase anestesiada, de olhar vago, a senhora, humilde e nobre, inquiriu-a:

— Que faz a menina por estas bandas? Parece-me doente.

Que se passa, menina Mariana?


E como não colhesse de imediato qualquer resposta, voltou à indagação:

— Que acontece, menina? Alguém em casa está mal? Desperte, minha filha!

E sacudindo-a com carinho, encostou a cabeça da jovem no seu ombro e dispôs-se a escutá-la com tal naturalidade que a enferma, como que retornando momentaneamente à realidade e vendo-se envolta no carinho de que necessitava, relatou entre soluços os maus sucessos do dia, informando do seu desejo de nunca mais retornar ao lar...

A delicada interlocutora escutou-a com serenidade e, seguramente inspirada pelo Benfeitor, concitou-a a irem à sua própria casa, onde ela providenciaria uma refeição refazente, incumbindo-se de informar a Adalberto sobre a mudança do local de encontro.

Simultaneamente Ambrósio exprobrou com energia o comportamento dos Espíritos viciosos ali presentes, libertando a atormentada jovem das suas forças deletérias e deprimentes.

Sem quase opor resistência, Mariana aceitou o alvitre, e amparada generosamente por Dona Aurelina demandou o domicílio daquela servidora.

Feita ligeira refeição, ainda conduzida pelo assistente de Saturnino, Dona Aurelina falou a Mariana das preocupações maternas e suas aflições, do perigo que uma jovem poderia experimentar nas mãos de um moço apaixonado e sem o devido critério moral, das consequências que poderiam advir de um gesto impensado, e, como se falasse à própria filha, com lágrimas, conseguiu convencê-la a retornar a casa, enquanto meditava planos para o futuro, filtrando, assim, o pensamento da Entidade Desencarnada.

Sentindo-se, imensamente cansada e dominada pela branda energia da amiga idosa, a jovem aceitou a sugestão e, dessa forma, Dona Aurelina se transformou no anjo da alegria para a agoniada genitora que aguardava a filha de volta.

Concluída a tarefa, Anbrósio retornou ao trabalho espiritual a fim de apresentar a Saturnino os resultados da investidura.

Os trabalhos se aproximavam do encerramento.

Compreensivelmente jubiloso, o Mentor Espiritual expressou sua gratidão ao Assistente e informou que logo mais, quando todos se recolhessem ao leito, teria continuação a tarefa da desobsessão, quando ele pretendia retomar as diretrizes do trabalho, convocando diversos dos envolvidos no processo perturbador e os membros da Casa para um encontro fora do corpo, quando as bênçãos do sono conseguissem libertar parcialmente alguns dos implicados...

Ambrósio compreendeu a magnitude do serviço e postou-se aguardando instruções.


A noite ia avançada quando Saturnino trouxe ao recinto das sessões, em parcial desdobramento, os irmãos Petitinga, Dona Rosa, as filhas Amália e Mariana e nós. O venerando trabalhador da Seara Espírita, habituado às incursões no Mundo Espiritual, embora ainda vinculado à roupagem carnal, apresentava-se calmo e lúcido, perfeitamente familiarizado com experiências de tal natureza. Dona Rosa e as filhas, no entanto, pareciam atemorizadas na sua semilucidez, embora o amparo vigoroso do Instrutor que delas cuidava com carinho paternal.

* Oassistente Ambrósio e os demais cooperadores desencarnados se encarregavam de localizar os recém-chegados na sala de trabalhos, enquanto o Benfeitor Saturnino cuidava das providências finais.

Concluídas as tarefas preliminares, deu entrada no recinto, em sono hipnótico, carinhosamente trazida por dois enfermeiros espirituais, a Entidade que se comunicara horas antes.

Embora o ressonar agitado, o visitante refletia a angústia em que se debatia, deixando ver as marcas profundas em ulcerações na região da glote, que se apresentava purulenta, assinalando os danos cruéis do autocídio injustificável.

Localizado em leito próximo, continuou assistido pelos que o trouxeram.


Logo, porém, que Mariana o viu, conquanto não o pudesse identificar de pronto, começou a experimentar significativa inquietude que se foi transformando em desespero

* "401. Duranteosono, aalmarepousacomoocorpo? "Não, o Espírito jamais está inativo.

Durante o sono, afrouxam-se os laços que o prendem ao corpo e, não precisando este então da sua presença, ele se lança pelo espaço e entra em relação mais direta com os outros Espíritos. " "402.

Como podemos Julgar da liberdade do Espírito durante o sono? "Pelos sonhos. Quando o corpo repousa, acredita-o, tem o Espírito mais faculdades do que no estado de vigília. Lembra-se do passado e algumas vezes prevê o futuro. Adquire maior potencialidade e pode pôr-se em comunicação com os demais Espírintos, quer deste mundo, quer do outro. Dizes frequentemente: Tive um sonho extravagante, um sonho horrível, mas absolutamente inverossimil.

Enganas-te. É amiude uma recordação dos lugares e das coisas que viste ou que verás em outra existência ou em outra ocasião. Estando entorpecido o corpo, o Espírito trata de quebrar seus grilhões e de investigar no passado ou no futuro. "

("O Livro dos Espíritos", de Allan Kardec. 29a Edição da FEB. Parte 2a — Capítulo 8.

Recomendamos ao leitor o exame de todo o capítulo referido para melhor compreensão da série de estudos aqui apresentados. — Nota do Autor espiritual.

e pavor.

O Instrutor, no entanto, solícito, acercou-se dela e aplicou-lhe energias anestesiantes, de modo a deixá-la em tranquilidade suficiente para os bons resultados da operação em pauta.

Nesse momento, a Irmã Angélica, mentora do médium Morais, trouxe-o ao cenário abençoado, que lhe parecia familiar aos olhos espirituais.

Tudo nele traduzia a segurança e o equilíbrio de uma existência voltada para o bem e para o dever.

Percebi, então, a excelência do ministério mediúnico sob a carinhosa proteção de Jesus, objetivando atender aos sofredores de ambos os planos da vida e reconheci, mais uma vez, que somente uma existência realmente desatrelada das paixões se constitui seguro roteiro para uma libertação felicitadora. O espírito é o que pensa e faz; a veste carnal que o envolve tanto se pode converter em asas de angelitude como em azorrague com grilhões que o martirizam.

E a mediunidade, indubitàvelmente, faz-se a senda luminosa por onde transitam aqueles que a respeitam e enobrecem.

Não havia, porém, tempo para meditações mais amplas.

O Benfeitor Saturnino, em breve alocução, explicou a finalidade da reunião, elucidando que se pretendia trazer à lucidez o perseguidor de Mariana para um reencontro na esfera do espírito, de modo a tentar-se uma conciliação, esperandose que a Misericórdia Divina amparasse os propósitos do grupo ora reunido.

Os circunstantes se recolheram a profunda meditação, conduzidos pela voz pausada e grave do Mentor que se encarregou de orar ao Mestre, rogando-Lhe socorro para o labor em vias de desenvolvimento.

Em seguida, aproximou-se do servo vingador e, aplicando-lhe passes de dispersão fluídica, despertou-o, presto.

A Entidade, vendo-se em uso da razão, circunvagou o olhar algo esgazeado e, reconhecendo Mariana ali presente, como se fora tomado de estranho horror, intentou precipitar-se sobre ela, brandindo os punhos cerrados, com os lábios em rito macabro, dos quais escorria pegajosa substância escura, nauseante.

Detido no impulso incoercível pelos auxiliares e vigilantes, recorreu aos impropérios violentos, como se desejasse, através das palavras candentes do ódio, conseguir o desforço acalentado por muitos anos a fio.

—Tenho-te procurado — gritou, colérico —, como justiceiro cuja sede de punição se converte em tormento sem nome. Azucrinado, somente há poucos anos consegui localizar-te, no mesmo antro em que o infame destruidor da nossa paz reside.

Agora que os tenho a ambos nas mãos, não os deixarei fugir. O meu desforço se fará com terríveis consequências. Eu os farei sofrer comigo as mesmas dores que esta eternidade me tem infligido sem repouso...

Mariana, escutando aquela voz, desejou fugir, desorientada, no que foi obstada por Saturnino, diligente.


— Aldegundes — vociferou o indigitado sofredor porque me desgraçaste? Que te fiz eu para sofrer o abandono ignominioso e a humilhação que me impuseste diante de todos os nossos amigos? Aldegundes, Aldegundes, não te dei o amor honrado e puro de um homem trabalhador? Porque me infelicitaste, destruindo minha vida?... Acompanhando as palavras doridas, lágrimas grossas escorriam-lhe abundantes dos olhos. Em choro convulsivo prosseguiu:

— Construíamos a nossa felicidade entre tantos sacrifícios e tu, apesar disso, não te apiedaste de mim, arruinando-me sem compaixão! Porquê? Oh! desgraça, não me conformo! Mesmo que escoem todas as eternidades, o teu crime me corroerá dolorosamente. Minha alma dilacerada a cada instante e o meu coração transformado em massa de chumbo em brasa perderam a razão de ser, quando meu cérebro vencido por todas as desesperações não consegue senão pensar em vingança...

Eu que tanto te amava!... Porque fugiste, louca? Não sabias que a um homem não se engana? Ignoravas que ninguém foge da consciência? Olha-me bem! Vê ao que me reduziste? Olha, olha, infeliz!...


Nominalmente convocada, Mariana desferiu terrível grito e caiu dominada por estranhas convulsões. Assistida de perto pelos assessores de Saturnino, que a esse tempo amparavam o interlocutor desvairado, tomou o aspecto de louca e com facies de singular horror, parecendo divagar, contestou:

— Sim, recordo-me de ti e te odeio, também...

Sempre infeliz, que tenho sido e que sou?! Onde estou, agora que desvairo? Porque esses fantasmas que me torturam e não me deixam? Porque a morte não me consome? Oh!...


Gargalhada repulsiva estourou nos lábios da doente, como se a razão de todo lhe fosse retirada, enquanto prosseguia:

—Abandonei-te, sim. Fui amaldiçoada por mim mesma, mil vezes, e te amaldiçoei, também. Todos me amaldiçoaram. De todos nós não sei qual o mais desventurado. Entretanto, odeio mais aquele que me fez consumir as esperanças de mulher e os sonhos de louca, no triste hospício de Haarlen...

Não sabes que voltei a buscar-te? Agora é tarde demais... Não me recordo mais... Não sei... somente sei que agora estou perto dele e hei de fazê-lo pagar. Oh! alucinação, que digo? Onde estou ?...


Nesse momento, Saturnino acercou-se da jovem e lhe falou, bondoso:

— Estás diante da própria consciência, sem os crepes do olvido.

Não és a Mariana de hoje, frustrada e inquieta, mas a Aldegundes de ontem, desvairada, sofredora. Aqui estamos todos para responder aos ditames da consciência necessitada de reparação...

— E quem pretende julgar-me? — interrompeu, irada.

— Ninguém, minha filha — elucidou, confiante pretende julgar-te ou examinar sequer os erros alheios, erros que todos temos.

Reunimo-nos, no entanto, com o fim de corrigir impressões e estabelecer nova linha de conduta, antes que postergarmos as responsabilidades para os dias sombrios que nos aguardam.

— Mas sou infeliz — apostrofou —, ninguém o vê? Sou acusada e ninguém me escuta...

— Não nos encontramos num tribunal — acudiu, solícito, o Instrutor —, mas num santuário de orações, templo e hospital, sob a orientação de Jesus Cristo, o Amigo Incondicional de todos nós...


Esbravejando, de inopino, o algoz voltou à carga:

— Acabemos com a farsa. Sou eu a vítima de todos esses cruéis verdugos da minha vida. Quem se atreve a interferir em meus problemas? Não necessito de ajudante nem de intermediário.

Tenho carpido a dor infernal a sós e não será agora que terei urgência de que alguém me ajude, no momento em que culmino o meu plano com o êxito que logo mais terei. Façam silêncio para que eu possa relembrar, a essa espoliadora da felicidade alheia, todo o mal que me fez.

Acercando-se dele, Petitinga envolveu-o em sua carinhosa vibração, enquanto o médium Morais, convidado pelo Instrutor, aplicou passes em Mariana, cuja aflição parecia desequilibrá-la.

Envolta em fluídos negros, congestionada, praguejava ensurdecedoramente.

Dona Rosa e Amália, devidamente amparadas, embora sem compreenderem toda a extensão da ocorrência, oravam em pranto silencioso.

Saturnino convidou a genitora a tomar nos braços a filha aturdida, e, enquanto o fazia, a veneranda mulher banhada de tênue luz cooperava com Morais, conseguindo acalmar a jovem, que lentamente recobrou a serenidade.

— Vamos à verdade — estrondou o acossador de Mariana —, quero a verdade dos fatos. Se aqui estou subjugado por demônios vingadores que ainda não saciaram a sede na minha infinita desdita, apelo para as forças do Dr. Teofrastus para que elas me amparem. Justiça, quero, nada mais! A minha vingança tem a força da minha justiça. Não sou um desalmado: sou um justiceiro que retorna em nome da verdade.

Reitero o apelo, portanto, ao Dr. Teofrastus, o meu benfeitor. Onde se encontra ele?

— Inutilmente — esclareceu Saturnino — você rogará auxílio a quem vive à míngua de socorro.

O irmão Teofrastus está interditado de penetrar neste recinto. Aqui somente têm acesso aqueles que vêm em nome do amor e os que são carecentes de amor, como você, meu irmão...

— Recuso seu amor e sua piedade — estrondou, rebelado.

— O que desejo...

— O que você deseja — disse, sereno, o Amigo Espiritual — é paz e amor para refazer o que destruiu; infelizmente você não sabe que também tem necessidade de perdão, devendo, antes de tudo, porém, perdoar. Aldegundes fez-se seu algoz, sem dúvida, mas sempre foi sua vítima. Você fala em deserção do lar, em honra masculina... Onde, porém, estão sua honra e sua fidelidade ao lar? Constituiu-se a mulher apenas instrumento para a paixão do homem ou somente o veículo do prazer ilusório? E os sentimentos femininos? Que fez você para estancar as lágrimas de soledade que ela experimentava ao seu lado? Quantas vezes parou a escutá-la? Que cabedal de tempo lhe ofertou? Desejava dar-lhe uma fortuna, sim, olvidando dar-lhe segurança íntima, assistência afetuosa... Não, meu amigo. Aqui não se defrontam, como você deseja fazer crer, vítima e algoz; enfrentam-se duas vítimas de si mesmas, iludidas nos seus loucos ideais terrenos. Os dias da Neerlândia passaram; no entanto, encontram-se vivas, encravadas na terra das lembranças, as raízes dos erros de todos vocês, erros que necessitam retificados.

Prepare-se para refazer o caminho, não para aplicar a justiça, justiça de que todos temos necessidade...


— Então, você conhece — bramiu, provocando compaixão, o interlocutor, em soluços — o meu drama? Porque se refere à Neerlândia? Como sabe que eu procedo do Haarlen? Saberá você, que

~ssa mulher...

— Sim, meu irmão — retrucou, o Instrutor —, eu sei... Da mesma forma, porém, que a lei de Deus está Inscrita na consciência de cada homem, os nossos atos estão gravados em nossa mente que não morre. Conhecemos, sim, a sua história e o drama de Aldegundes, que você agora deseja destruir, tarefa essa que não conseguirá, positivamente porque o Senhor da Vida já pronunciou o: basta!

— Mas ela me traiu e me abandonou — baldoou.


— Sabemos disso — redarguiu. — Mas sabemos, também, que enquanto se preparava o pôlder (1) na Amsterdão setentrional, fascinado pelas perspectivas de adquirir largas faixas de terra para pastagens de gado, não obstante as imensas plantações de tulipas que já

(1) Pôlder — região pantanosa e baixa, conquistada ao Mar do Norte e aos lagos 1nteriores, na Holanda — Nota do Autor espiritual.

possuía, deixava-a quase abandonada, por longos meses, enquanto durou a dessecagem do lago que existia entre Haarlen, Amsterdão e Leida, trabalho esse que durou de 1837 a 1840...

Sentindo-se só, inexperiente e sem forças para a luta contra as paixões da própria natureza, não resistiu às constantes investidas de Jacob, terminando por deixar-se arrastar ao rio de lama que a conduziu, mais tarde, à loucura...

— Não me traga à memória — estrilou — o nome de Jacob 5an der Coppel, o infame ladrão da minha felicidade. Encontrei-o, também. A princípio tudo me parecia estranho. Por largos anos eu sentia a presença dele e me sentia ao seu lado, embora as diferenças que apresentava. Estava metamorfoseado... Tudo me era, no começo, irreal, até que fui conduzido ao Dr. Teofrastus, que me ofereceu excelentes explicações, elucidando a volta do bandido ao esconderijo do corpo, ensinando-me, porém, como eu poderia supliciá-lo e vingar-me, o que venho fazendo com verdadeira infâmia...

— Realmente — acrescentou, Saturnino, sem se perturbar — Jacob retornou à carne, revestido pela indumentária com que agora se identifica por Mateus. O leviano de ontem é o atormentado de hoje, caminhando pela estreita rota da autopurificação... Recebeu nos braços, pelo mesmo impositivo, aquela a quem infelicitara, e a sua presença é-lhe desagradável suplício. Embora não consiga recordar, experimenta as vibrações que lhe são afins, conquanto a aversão que lhe apossa, fazendo-o desditoso.

Ninguém engana a vida. O código da Justiça acompanha o infrator, nele plasmando a necessidade de ressarcimento legal... Daí a necessidade de aquele que se crê espoliado perdoar...

— Mas eu não conseguirei perdoar — vociferou o surpreso cobrador. — Tudo aqui hoje são surpresas para mim.

Atino com dificuldade o que ocorre e tenho turbado o raciocínio. Quem são os senhores, que me molestam já por segunda vez? Será isso um pesadelo cruel, daqueles que de mim se apossavam anteriormente, quando me perdera e me desgraçava nos despenhadeiros da Alucinação...

Em se referindo à região punitiva em que se surpreendera, após o suicídio nefando, o atônito interlocutor se transfigurou repentinamente, e, parecendo sofrer indescritíveis padecimentos, se pôs a debater, chorando copiosamente.

Vendo-o alucinado, reduzido a condição de escravo de si mesmo, não havia como deixar de crer que todo perseguidor é alguém perseguido em si mesmo e que o vingador é somente um espírito macerado pelas evocações da própria delinquência...

O Assessor de Saturnino, solícito, acudiu presto o indigitado sofredor, aplicando-lhe passes reconfortantes, de modo a desembaraçar-lhe a mente dos fantasmas da evocação dolorosa.

Depois de demorada operação magnética, em que eram dispersadas as energias venenosas, elaboradas pelo baixo teor vibratório do próprio Espírito, este se refez paulatinamente, recobrando alguma serenidade.

A viciação mental, resultante do pensamento vibrando na mesma onda, gera a ideia delinquente na "psicosfera pessoal" do seu emitente, aglutinando forças da mesma qualidade, por sua vez emanadas por Inteligências desajustadas, que se transformam em energia destruidora. Tal energia é resultante do bloqueio mental pela densidade da tensão no campo magnético da aura. Ali, então, se imprimem por força da monoideia devastadora as construções psíquicas que se convertem em instrumento de flagício pessoal ou instrumento de suplício alheio, operando sempre no mesmo campo de vibrações mentais idênticas. Quando essas energias são dirigidas aos encarnados e sintonizam pela onda do pensamento, produzindo as lamentáveis obsessões que atingem igualmente os centros da forma, degeneram as células encarregadas do metabolismo psíquico ou físico, manifestando-se em enfermidades perturbadoras, de longo curso...

Por essa razão, felicidade ou desdita, cada um conduz consigo mesmo, graças à direção que oferece ao pensamento, no sentido da elevação ou do rebaixamento do espírito, direção essa que é força a se transformar em alavanca de impulsão ou cadeia retentiva nas regiões em que se imanta.


Refeito do distúrbio inesperado, o aflito espiritual inquiriu:

— Que se passa? Onde estou? Porque me vejo coagido a falar o que não gostaria de informar e a ouvir o que não desejo escutar? Quem são os senhores?


Dando à voz a tônica da bondade que lhe era habitual, Saturnino obtemperou:

— Todos estamos, meu irmão, queiramos ou não, na Casa do Pai Celestial. Filhos do Seu amor, deixamo-nos arrastar pelas correntes da liberdade espiritual ou naufragamos nas ondas revoltas das paixões, dentro, sempre, porém, de algum departamento do Seu domicílio, que elegemos pela própria vontade para nossa habitação.

Aqui nos encontramos em um Templo Espírita, de socorro aos que já transpuseram o limiar da imortalidade e se acrisolam voluntàriamente à retaguarda dolorosa, quando poderiam ensaiar os primeiros voos para mais amplos tentames na vida feliz...


E procurando dar ênfase ao encadeamento das ideias para melhor explicação, esclareceu:

—Cultores das lições de Jesus Cristo, buscamos palmilhar a rota por Ele percorrida, abrindo braços e corações aos que sofrem e ignoram os meios de se libertarem do jugo da desesperação, meios esses que se encontram neles mesmos, jazendo sob os escombros do próprio flagelo que a si se impõem. Trouxemos Aldegundes, cujo corpo repousa na forma orgânica de Mariana, e conduzimos, também, sua genitora, sua irmã e outros companheiros da vida física, para examinarmos à luz do amor de Nosso Pai para conosco o amargor que o torna infeliz, procurando diminuir a intensidade das causas de tal mortificação.

Fez uma pausa - breve, espontânea, para considerar o efeito produzido pelas palavras no perseguidor de Mariana.

A jovem, por sua vez, docemente envolvida pela genitora que parecia transfigurada em madona esplendente de ternura, graças às supremas dores suportadas com amor e resignação, escutava, raciocinando com dificuldade compreensível, atenta, porém, à explanação.

— Pelo que depreendo — rugiu o neerlandês —isto é um complô para fazer-me desistir da execução da justiça que tenho aguardado.

— A justiça — retrucou Saturnino — alcança o infrator sem a necessidade de novo algoz.

As divinas leis dispõem de recursos reparadores, ante as quais nada fica sem a necessária quitação. Jesus...

— Jesus, Jesus — arrebatou — deixou-se martirizar...

— Sim — acrescentou Saturnino — e perdoou aos seus algozes.

— Mas era um Deus — admitiu, irado —, conforme ensina a Religião.

— Deus? — esclareceu o Mentor — somente um há. A Religião tradicional se equivoca quando assim o diz. Jesus é o Filho de Deus, lição viva de amor que todos podemos atingir, pelas oportunidades que nos ensejou descobrir, oportunidades essas que agora lhe chegam, concitando-o a se tornar um deus, manifestação de Deus que "está em tudo e em todos, esperando o desabrochar através da nossa inclinação para a verdade.

—Mas eu vivo num inferno — reptou, amargado —, como poderia alcançar Deus se tudo em mim são desejos de vingança para aplacar o ódio que me estiola a própria razão?

—O inferno é resultante do seu estado de rebeldia.

Na sua recusa ao amor, você se condena ao desespero sem remissão, enquanto dure o combustível da revolta que você coloca na fornalha do ódio.

—E os devedores?

—A vida se encarregará deles, agora ou depois.

Pesado silêncio caiu sobre a sala de socorro.

Algo asserenado, ele parecia mergulhar lentamente em acurada meditação.

Fluídos muito diáfanos penetraram o recinto, como se dirigidos por Agentes Invisíveis, que suavizavam a tensão até há pouco reinante, a todos beneficiando qual aragem bendita e necessária.

Estranha e refazente calma a todos dominou.




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