Nos Bastidores da Obsessão - Novo Projeto

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CAPÍTULO 3

Técnica de obsessão

Saturnino solicitou a Ambrósio que aplicasse recursos magnéticos nos centros coronário e cerebral de Mariana, de modo a despertar-lhe o passado adormecido nas telas da memória.


Ativados os chakras

*, através dos passes hàbilmente aplicados, a paciente desdobrada parcialmente pelo sono físico pareceu sofrer um delíquio para logo modificar a expressão semelhante a alguém que acorda após demorado sono, no qual pesadelos cruéis houvessem tomado corpo destruidor... Do mal-estar momentâneo passou a um aspecto de desvario, através do qual as palavras fluíam ora no idioma de Mariana ora na língua de Aldegundes para firmar-se nos vocábulos em que se exprimia esta última. Parecendo reconhecer Guilherme, o vigoroso perseguidor, estremeceu, olhando-o, esgazeada, como se desejasse fugir.


Lentamente se lhe transfigurou o semblante que adquiria as características fisionômicas de harleniense do passado. Eram visíveis os sinais da loucura que dela se apossara nos últimos dias da existência física. Do descontrole inicial passou à mortificação,

* Chakra é uma palavra sânscrita que significa roda...

— Nota do Autor espiritual.

libertando-se dos braços acolhedores de dona Rosa e arrojando-se aos pés do antigo esposo, a rogar-lhe perdão, em lancinantes, agoniados apelos.

Ouvindo-a, lúcida, na forma antiga, Guilherme adquiriu expressão patibular e rechaçou-a, com mordacidade.

— Eu estava desesperada — justificou-se em pranto — quando fugi do nosso lar. Perdoa-me! Ignoras o que padeci e ainda padeço na masmorra em que agora me movimento (referindo-se ao corpo de Mariana)... Há uma dor inidentificável em minhalma e uma noite sombria de horror me segue, sem trégua.

Não consigo chorar, por ignorar a razão dos sofrimentos quando os punhais invisíveis da justiça me alcançam. Só uma revolta pesada me agrilhoa a um desejo incoercível de morrer, de sumir, de perder a consciência para sempre...

— Isto — retrucou o antigo companheiro — é apenas o início das penas que te aguardam.

Agora, sim, verterás o pranto da reparação que quando, saciado, eu me possa considerar capaz de absolver-te a indignidade Sem limite.

Saturnino, Ambrósio e os demais Assessores Espirituais, embora em atitude de alerta, mergulhados em pensamentos salutares, deixavam que as duas Entidades por momentos se reencontrassem mediante o diálogo doloroso e azedo, que, no entanto, abriria as portas a melhor atendimento...

— Fugi do lar e reconheço o meu crime. Mas ignoras o castigo que experimentei, logo depois. Nunca fui amada: nem por ti, nem por ele.

Em tuas mãos, não passei de animal de carga e objeto de vãs emoções... Nas mãos dele não fui além de um vaso de desejos violentos. É claro que a nuvem da ilusão só mais tarde me deixou ver o abismo... E era tarde demais. Voltei, então...

— Tiveste a desgraça de voltar ao Haarlen? — vociferou o esposo desdenhado.

— Achaste, por acaso, insuficiente a punição indébita que me impuseste, a ponto de retornar aos sítios em que éramos conhecidos? Que pretendias desvairada?

— Rogar-te perdão, eu que ainda supunha que me amavas.

— Amar-te, quando arruinaste minha vida? Supunhas que a desonra pudesse ser lavada com lágrimas?

— Nada eu supunha.

Esperava piedade e comiseração, um pedaço das nossas terras para sucumbir entre as tulipas que eu mesma plantara e em cujos campos conseguíramos os inigualáveis exemplares das Gesnerianas, Clucianas, Turcisas...

Dilacerada pela saudade e pelos remorsos, acalentava como um náufrago uma tênue possibilidade de salvação.

— Ignoravas, certamente, que envergonhado e ferido fugi...

não conseguindo morrer. Aumentando a minha desgraça, não poucas vezes forças demoníacas me punham ao teu e ao lado do desalmado ladrão, para me supliciarem com a visão alucinante sem limite. Como os odeio! Como os detesto!... É impossível, infame, qualquer tentativa de...

— Negas-me, então, ainda hoje, a gota de misericórdia? E quem és tu, senão o responsável maior pela minha infelicidade? Como te atreves a ferir-me com o teu escárnio, o teu ódio? Sim, também te odeio, deixa-me dizê-lo, como te odiava antes e não o sabia.

Nunca me deste oportunidade de amar. Negociaste minha vida com os meus pais, considerando a minha juventude e minha saúde, e ninguém, nem tu nem eles, jamais procurou saber se eu possuía um coração ou acalentava um sonho de menina...


E soluçando, comovedoramente, prosseguiu:

— Amante do dinheiro, a nada mais querias, senão qualquer coisa que se constituísse meio de possuir mais. Fizeste de mim uma igual aos teus empregados, nas leiras sem-fim dos bulbos, entre os canteiros de tulipas. Nelas, porém, encontrei ligeira felicidade; nas suas pétalas descobria o milagre da vida, a beleza e a cor que me roubavas... E depois? Mais velho do que eu quase 30 anos, eras verdugo cruel.

— Não te justifiques, infeliz — bradou, apoplético.

— Trar-te-ei a verdade, agora, dizendo-te o que nunca me atrevera mostrar-te antes. Sim, dir-te-ei. Eras e continuas ambicioso e frio. Quando demandaste Leider e depois Amsterdão para negociar com o governo terras e terras que viriam da dessecagem do lago, deixando-me só, entre teus empregados e teus amigos, não zelavas por mim. Tornavas-me o fiscal dos teus bens, a serva que inspecionava os servos. Contrataste Jacob, que chegara fazia pouco dos primeiros Geest do golfo, acostumado aos labores no Waal (1), e que, jovem como eu, me sensibilizara o coração em constante soledade.

Relutei muito, entre a fidelidade ao teu abandono e a solidão da felicidade.

A Entidade sofrida não pôde continuar.

As tormentosas evocações alanceavamna.

Depois de uma pausa, prosseguiu, ante a expectação de Guilherme, que parecia atoleimado com as informações que lhe chegavam então.

— Fugimos para Amsterdão; nunca, porém, fugi de mim mesma.


Nos primeiros tempos, ainda dominada pela paixão que me enceguecera, consegui sobrepujar o

(1) O golfo referido é o de Zuiderzê, que neste século foi em grande parte escoado e dessecado, transformando-se em terras cultiváveis (Geest).

sendo quase substituido nos últimos quarenta anos em quatro pôldres. O Waal é um dos cursos d"água do Reno, onde há uma aldeia do mesmo nome. — Nota do Autor espiritual.

remorso. Depois... Despertei abandonada seis meses após na Cidade, em miserável condição de desprezo entre mulheres infelizes do porto. Deixara-me Jacob, que jamais me tivera qualquer afeição, fugindo para a Bélgica, após ter-me iludido, sem retornar jamais. Compreendes o que me aconteceu? E isto não é tudo! Depois de deambular na mais estúpida miséria, não suportando as humilhações que eram superiores às minhas forças, lembrei-me dos campos floridos e da terra generosa... Voltei e busquei-te. Só então eu soube... Haviam-se passado apenas 5 anos! Eu nem sequer fora reconhecida pelos antigos vizinhos, tal o meu estado. Informada da tragédia que eu causara, enlouqueci, e desvairada pelas ruas do Haarlen fui lançada ao hospício, como um animal numa jaula, onde sorvi por longos anos a própria desdita até que a morte me libertou...

para dores muito maiores. Na minha loucura eu te via agoniado, a maldizer-me, a perseguir-me. Vês, agora!? Tudo por culpa tua, do teu egoísmo.

— Sim, eu estava ligado a ti sem o saber...

E nunca mais encontraste Jacob? — indagou Guilherme.

— Nunca! Se eu o encontrasse, que não faria com esse meu outro algoz!...

— Pois eu te direi: vives novamente com ele.

sua filha!

— Filha?! Deliras...

Através de qual sortilégio o inimigo poderia tomar o corpo de meu pai? Não zombes de mim.

— Ouve, Aldegundes: morreste e voltaste a viver, esta é a verdade.

Guilherme demonstrava na voz todo o seu desprezo. Logo depois, prosseguiu: — Deus, que é justiceiro, dele fez o teu pai, unindo os dois para que eu agora me possa vingar.

Vês porque não me fugireis do guante da reparação? Mateus que é o teu pai, pai de Mariana, em cujo corpo vives prisioneira, é o teu ex-amante e o meu infelicitador, novamente reunidos. Agora poderei...

Nesse momento, Saturnino pousou a destra na fronte de Mariana, dominada pelas recordações do passado, e utilizando recursos magnéticos fê-la adormecer, pausadamente.

Guilherme, aturdido, pôs-se a deblaterar, enquanto Ambrósio o socorria, diminuindo-lhe o campo de ação.

Convidando Dona Rosa, o Instrutor devolveu-lhe a filha anestesiada e em son reparador.

Ambrósio foi chamado a reconduzir o grupo ao lar da família Soares, para onde foram levadas, pelo Assistente e um auxiliar, a matrona e as duas filhas.

O serviço espiritual, porém, continuou o seu curso normal.

Em seguida à altercação entre os dois antagonistas do pretérito, Saturnino conseguiu sensibilizar Guilherme que, então, relatou as experiências que deveriam culminar naquela noite de modo inverso ao que acontecia. Narrou, então, que há mais de quinze anos se sentia ligado ao Sr. Mateus, o antigo verdugo por quem nutria desconhecida aversão, dispondo-se a segui-lo. Transferiu-se, por fixa, para o lar da família Soares, participando do grupo de Entidades irresponsáveis que ali faziam morada. Particular e inconscientemente vinculado ao responsável pelo clã, lentamente conseguiu infiltrar nele reminiscências amargas que o faziam fugir do lar para render-se cada vez mais à jogatina, procurando fugir.

Mariana nascera havia pouco, quando o reencontrara, e, embora não soubesse ser ela Aldegundes, foi dominado por incoercível antipatia.

O seu horror pelo Sr. Mateus era, também, inconsciente, pois ignorava o processo do retorno ao corpo, em que este se ocultava. Vivendo em conúbio com outros sicários do grupo familiar, cedo fez amizade com terrível obsessor ligado a Marta, a filha mais velha da família, que se dedicava a incursões nos redutos sombrios da Magia negra, e, informando-a dos seus propósitos, foi aclarado do impositivo da Reencarnação, por cujo meio se assegurou de estar no rastro dos inimigos.

Veio-lhe, então, o desejo de os matar de imediato. Informado da Ideia, o Inspirador de Marta sugeriu-lhe travar contacto com o Dr. Teofrastus para que este examinasse o seu problema e, de acordo com os interesses que lhe despertassem, tomá-lo ou não sob a sua responsabilidade.

Segundo o informante, o Dr. Teofrastus fora insigne mago grego, quando na Terra, residente em França, queimado pela Inquisição por volta do ano de 1470, em Ruão, após perseguição impiedosa e nefanda. Profundo conhecedor, mesmo quando encarnado, de algumas das leis do Mundo Espiritual, deixou-se consumir pelo ódio aos seus algozes; logo que desencarnou, estreitou laços com terríveis vingadores do Além, a ele já vinculados pelas suas práticas necromânticas e reuniões de sabat, todas elas feitas sob inspiração de Mentes vigorosas e infelizes da Esfera Espiritual. Logo se identificou, após a morte do corpo físico na fogueira, com aqueles através dos quais mantinha o comércio psíquico, fez-se notado pela impiedade, na sede tormentosa de vingança. Paulatinamente, conseguiu imantar-se a diversos dos que a ele e a muitos outros puniram indebitamente, em inqualificável intercâmbio espiritual obsessivo, do qual passou a locupletar-se.

Portador de mente tenaz, lobrigou através dos tempos supremacia no grupo em que vivia, passando à condição de Chefe...

Residindo, esclareceu, então, Guilherme, em estranho sítio, nas regiões inferiores do Planeta, comanda com outros sicários, há mais de três séculos, hordas de Entidades ferozes, responsáveis muitas delas por processoS obsessivos e calamitosos de longo curso, entre as criaturas humanas que se deixaram vencer pelas urdiduras das suas mentes atormentadoras.

Muitos dos que se rebelam periodicamente têm experimentado punições severas sob suas tenazes mentais, produzindo neles transformações perispirituais soezes, em apavorantes processos de zoantropia, por hipnose anestesiante nos centros profundos da alma, tais como hipontropia, licantropia, etc.

Verdadeiro demônio se acredita senhor de vasta Região Trevosa, onde impera como autocrata acerbo.

Depois de alguns dias de expectativa, nos quais aguardava a decisão da Entidade, continuava o relato do ex-neerlandês, foi conduzido à presença do Chefe.

Ouvido atenciosamente pelo antigo Mago, este se propôs examinar o problema, marcando data propícia para nova entrevista, o que ocorreu uma semana depois.

Nessa oportunidade, o insidioso e singular monarca falou-lhe da sua desencarnação como suicida, aclarando-lhe hórridas inquietações, minuciando-lhe os processos de desencarnação e reencarnação, de modo a inteirá-lo do que ocorrera com os seus verdugos do passado, então revestidos de novo corpo...

Elucidado por Guilherme de que desejava um desforço imediato, que traduzisse todo o seu amargor, explicou-lhe, então, que a melhor maneira de se vingar seria realizada através do tempo, pelo processo lento da obsessão contínua em ambos os cômpares da tragédia passada, induzindo-os ao suicídio para aumentar-lhes a aflição, no momento próprio...

Vinculando-se, desde logo e espontaneamente, aos comandados pelo Dr. Teofrastus, dele recebia orientação segura e constante, conseguindo fartar-se das emanações vampirizadas provenientes da jovem obsessa que começara a subjugar, enquanto e simultaneamente alucinava o amadurecido genitor, ora alquebrado. Compreendendo chegado o momento do golpe decisivo, o Dr. Teofrastus orientara-o para provocar cenas de atritos constantes entre pai e filha, de modo a que esta em momento de desespero se evadisse do lar, buscando no namorado leviano e irresponsável o falso amparo de que se sentiria carecente. Nessa circunstância, então, ele se reencarnaria através de Mariana, voltando ao lar dos Soares na condição de neto do Sr.

Mateus, a fim de matá-lo lentamente, em longo recurso de impiedosa vindita, conforme instruído. Isto lhe seria fácil, evidentemente, pela hipnose na moça que se encontrava capacitado de produzir, como intentara, logrando êxito, no primeiro..... .

Consecutivamente, como relembrasse todos os lances do programa infeliz que acalentava havia tantos anos, Guilherme apresentava-se transtornado pelas dores das evocações sombrias e pela imensa frustração dos planos elaborados com tanto esmero.

Embora intervindo, de quando em quando, de modo a estimulá-lo na narrativa, Saturnino animava-o com palavras generosas, a fim de que nos inteirássemos de uma dentre as inúmeras técnicas da obsessão e dos recursos utilizáveis para a vingança, pelos desencarnados, encetando, então, conversação mais amena com o perseguidor de Mariana, que parecia alquebrado, vencido, sob o influxo magnético do Instrutor e os passes aplicados com carinho por Ambrósio.

Conduzido ao sono, Guilherme foi afastado do recinto por zelosos cooperadores desencarnados e a reunião foi dada por encerrada, após comovedora oração proferida pelo Instrutor.

Petitinga, o médium Morais e nós, fomos conduzidos de volta ao lar, enquanto a Alva desenhava sobre as sombras fugidias da noite os primeiros contornos da natureza preparando-se para o festival do Dia.




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