Nos Bastidores da Obsessão - Novo Projeto

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CAPÍTULO 8

Processos obsessivos

À medida que os serviços de socorro a Mariana prosseguiam, fazia-se indispensável remover as raízes pro fundas da obsessão que, através das vinculações de Gui lherme a Teofrastus, se tornaram mais complexas.

Estando o lar do Sr.

Mateus sob o assédio de entidades viciosas outras, pertencentes ao clã Teofrastus, que mantinham estreito comércio com Marta, a filha mais velha, o movimento de desencarnados era muito expressivo, em atividade contínua e de resultados nefastos.

Portadora de mediunidade com amplas possibilidades, Marta reencarnara ligada a comensais do erro em que derrapara espontaneamente em existência pregressa. Aquinhoada com os recursos psíquicos do intercâmbio espiritual, deveria aplicar as forças de ordem paranormal ao serviço do bem e da caridade, de modo a autoiluminar-se, iluminando por sua vez os que se lhe vinculavam pelos fortes liames das dívidas. Conquanto houvesse conhecido o serviço da mediunidade sublimada sob as bênçãos de Jesus, na União Espírita Baiana, preferira o círculo das baixas vibrações em que se demorava, atendendo a vigorosa hipnose de entidades infelizes e impiedosas que lhe dominavam o campo mental, amplamente afetado. Dizendo-se ligada aos graves conúbios com antigos escravos do Brasil, ainda dirigidos por ódios demorados, fascinava-a as incursões no terreno do «candomblé», inexperiente e insensata, em cujos segredos procurava aprofundarse, penetrando lamentavelmente em grosseiras burlas, que a conduziam a dolorosos processos de possessão paulatina e segura.

Dirigida por mentes tenazes, irreversivelmente portadoras de alta dose de rancor, fazia-se dócil instrumento para as consultas da irresponsabilidade, aliciando outros cômpares para o vampirismo que grassa em larga escala nos diversos departamentos da crosta terrestre, entre os seres invigilantes e pretensiosos.

Não poucas vezes, dirigida pelos famanazes espirituais da rebeldia, adentravase, noite alta, pelas necrópoles da cidade em busca de despojos humanos para os infelizes serviços a que se entregava, conduzindo de volta ao lar verdadeiras legiões de sofredores revoltados que se lhe vinculavam em longo processo perturbador de que no momento não se apercebia, fascinada como se encontrava pela própria sandice.

As orações de Dona Rosa e Amália eram o único lume aceso no labirinto em que se debatiam as forças desencontradas ali operando em guerra de longo curso. O poder da oração e a vida de elevação santificante, no entanto, são capazes, embora a aparente fraqueza de que se revestem, de anular toda a treva, blindando de segurança qualquer circunstância. Embora ignorando que fosse o seu ninho de sonhos doridos um reduto de espíritos desditosos, Dona Rosa sentia a exsudação psíquica que empestava o ambiente, reservando-se maior dose de confiança no Pai, que a amparava benigno, defendendo-a e aos outros membros da família dos miasmas dominantes na atmosfera do lar.

Entidades afeiçoadas igualmente, serventuárias do amor, visitavam com frequência a família Soares, dispensando a todos socorro e assistência contínua, de modo a impedir que os sequazes da criminalidade ali dominassem em toda a extensão.

Não eram apenas os Espíritos perturbados da esfera dos desencarnados. Muitos perdulários buscavam os serviços de Marta tentando, através de conciliábulos com as mentes nefandas, resultados para mil aventuras a que se afeiçoavam no jogo ilusório das paixões terrenas. Eram pessoas que perderam objetos de estimação e esperavam encontrar, nos Espíritos, interessados caçadores de precisão; mulheres amadurecidas que não lobrigaram consorciar-se e que desejavam transformar os Espíritos em instrumentos dos seus desejos; esposas infelizes que sofriam a falência do matrimônio, recorrendo ao concurso de entidades mentirosas que lhes modificassem a paisagem doméstica; criaturas desempregadas que contavam com solução para a aquisição de trabalho de remuneração expressiva; escravos do ódio que se acreditavam vitimados por este ou aquele adversário, solicitando revide e desforço imediato; mentes desvairadas, ancilosadas pelo vício, rogando solução para problemas complexos... Atendidos no «consultório» reservado de Marta, que mantinha pequeno casebre para o seu infeliz comércio, muitas vezes, conquanto a severidade de Dona Rosa, eram recebidos clientes no próprio lar, em cuja oportunidade apresentava receitas e exigia materiais para os trabalhos por meio dos quais informava resolver qualquer situação penosa, liberando de problemas os seus consulentes.

Portadora de psicofonia sonambúlica atormentada, vidência e audiência dirigidas por cruéis verdugos desencarnados, a obsidiada vivia relacionada com Espíritos ociosos que lhe prestavam informes seguros sobre os seus visitadores, informações essas que surpreendiam agradàvelmente quantos a buscavam, interesseiros e levianos.

Sempre ávidos de novidades, sem o interesse de conhecer a realidade da vida espiritual após a sepultura, as pessoas ainda hoje preferem da realidade espírita conhecer somente o que consideram fantástico e sobrenatural, teimando voluntariamente em permanecer no erro.

Assim se quedavam fascinadas quando a sensitiva lhes explicava os diversos problemas, pormenorizando detalhes e apresentando soluções fáceis quanto mágicas para eles. É certo que os Espíritos, conquanto perturbados em si mesmos, podem fazer incursões no terreno material e informar-se sobre muitas coisas do plano físico em que se demoram os homens, pois que a morte não lhes arrebatou a inteligência nem lhes anulou o raciocínio. São capazes, obviamente, de acompanhar as criaturas, dar-lhes assistência e inteirar-se das ocorrências do caminho humano, apresentando circunstânciados relatórios, como se houvessem podido, por sortilégios estranhos, possuir o «dom» do conhecimento. Conseguindo êxito no primeiro tentame, o da informação, produziam os demais planos verdadeira consagração nos invigilantes que se comprazem na «lei do menor esforço» e que ainda se reservam o direito de manter o cativeiro, que, embora desaparecido da Terra, continua em outros círculos do mundo espiritual em lastimáveis processos. Ainda hoje é muito comum escutarem-se aqueles que dizem ter «um espírito às suas ordens», que os ajuda, atendendo-os com «fidelidade de cão». Invariavelmente se ligam a antigos escravos que a desencarnação não libertou e que prosseguem, na sua ignorância quanto às realidades da vida, no vicioso intercâmbio com as consciências da Terra, dominados ou dominadores — o que também ocorre, modificando-se então o tipo de escravidão que é o predomínio do desencarnado sobre o encarnado —, quase sempre em profunda perturbação. Vaidosos, os homens não atentam ao dever da solidariedade nem da caridade, considerando-se credores de socorros e ajudas que estão muito distantes de merecer. Asfixiados pelo «eu, dominador, supõem que a vida deve servi-los e que o barro orgânico é edifício para o seu supremo prazer...

Nesses homens e mulheres desprevenidos da realidade do além-túmulo, consciências livres e ironizantes estabelecem jugos de dominação que degeneram em enfermidades de etiologia difícil para a medicina humana, e que não acabam sequer com o advento da desencarnação...

Aí estão, todavia, claras e puras as lições do Cristianismo, ora revividas na Doutrina Espírita, clamando quanto às responsabilidades de cada um em relação a si mesmo e ao próximo; vibram os pensamentos de Jesus, arrancados do silêncio dos séculos, convidando ao amor, à santificação da vida; sublimes vozes da Imortalidade proclamam a Era da Luz combatente contra a treva; venerandos desencarnados retornam e revivem os conceitos imortalistas da verdade, cantando a excelência dos Mandamentos; ilações excelentes quanto às causas e aos efeitos dos sofrimentos e das ações são apresentadas por antigas cerebrações que dignificariam a existência entre os homens; mortos queridos ressuscitam do sepulcro vazio para consolarem e animarem, levantando o moral e estimulando ao dever; guias e condutores da Humanidade reassumem a direção do pensamento da Terra, pregando esperanças, dirimindo dúvidas, plasmando diretrizes de paz; obreiros da compaixão retornam e tomam das mãos dos homens, com mãos intangíveis, para os conduzirem a retas atitudes, e uma sinfonia de bênçãos em forma de melodia de justiça, amor e caridade, envolve a Humanidade como se os anjos da noite santa do Natal voltassem a repetir: «Glória a Deus nas alturas e paz na Terra entre os homens de boa vontade»! Os ouvidos das criaturas, porém, ante as atroadas dos desesperos, os olhos queimados pelo incêndio das paixões, os sentimentos crestados pelo vazio da volúpia e os cérebros abrasados pela sofreguidão do poder parecem não registrar tão sublime sementeira de luz, não sentir tão grandiosa epopeia de vida!...

O triunfo do Consolador prometido por Jesus, ora entre nós, ainda não atingiu o climax.

Ele, porém, repetindo as «vozes dos Céus», prosseguirá no desiderato da verdade, semeando bênçãos, embora as pequenas colheitas de amor, e ficará até o «fim dos tempos».

A missão do Espiritismo é a mesma do Cristianismo das primeiras e refulgentes horas do caminho e das arenas: levantar o homem do abismo do «eu» e alçá-lo às culminâncias da fraternidade, após galgado o monte da sublimação evangélica redentora.

Transitório o período das trevas, prepara ele as consciências para o despertamento da verdade.

Saturado das vibrações ultrajantes, o espírito humano buscará, invadido por incomparável sede de renovação, as fontes inefáveis do bem, mergulhando demoradamente nas suas águas refrescantes...

Assim considerando e diante das esperanças e consolações que nos aguardam, os nefandos labores da atormentada quimbandista nos inspiravam funda compaixão, compaixão que também nos merecem aqueles que buscam os desvios da leviandade para enganarem a consciência, tentando a fuga espetacular às linhas do dever. Não poderão alegar desconhecimento da verdade, nem se justificarão como ignorantes do auxílio dos recursos divinos; lamentarão sem poderem fruir o consolo reservado aos que se esforçaram em perseverar na augusta direção do bem; chorarão sem lenitivo, por desprezo àimpostergável mensagem do «fazer ao próximo o que deseja lhe faça ele»; sofrerão demoradamente longe do recurso da prece, de que se utilizaram mecanicamente, sem qualquer respeito, fazendo-a instrumento de capricho infantil antes que veículo de comunhão com o Senhor...

São os que se encarceram nos presídios sem paredes da mente desalinhada e tormentosa, O tempo, porém, que de tudo se encarrega, cuidará dos sandeus com a mesma mestria que liberta os humildes, os pacificadores, os simples de coração... herdeiros da Terra!

Ora, com o andamento das operações de socorro ao lar da família Soares, o irmão Teofrastus fora informado por comparsas seus, ali residentes, dos rumos que tomavam os processos de dominação, que até então repousavam em suas ávidas e duras mãos.

Em face disso, o irmão Saturnino programara novo encontro espiritual, através do médium Morais, no qual se tentaria uma entrevista com o antigo mago de Ruão, que teria atividades em pauta para a madrugada do dia imediato, no Anfiteatro já nosso conhecido.

À hora aprazada, em desdobramento parcial pelo sono, encontramo-nos no recinto das tarefas mediúnicas da nossa Casa de oração, conduzidos que fôramos pelo irmão Ambrósio, lá defrontando os demais membros das tarefas em curso, com exceção do irmão Guilherme, que fora recolhido, dias antes, a local próprio de repouso e refazimento espiritual.

Após comovida oração proferida pelo irmão Saturnino, este explicou os objetivos da reunião, que deveriam colimar num encontro pessoal com o irmão Teofrastus, e cuja orientação seria ministrada pelo Benfeitor Glaucus, responsável pela empresa que se nos afigurava de grande porte, em considerando a necessidade de nos adentrarmos, novamente, no Anfiteatro para, após as exibições dolorosas, mantermos entrevista com o gênio das sombras.

A caravana estava constituída pelo irmão Glaucus, Saturnino, Ambrósio — mensageiros adestrados em tarefa de tal envergadura — e por nós outros, desdobrados parcialmente pelo sono: Petitinga, o médium Morais e nós.

Tomando o veículo que nos conduziu à região em que se encontra localizado o cenário das ocorrências infelizes, acercamo-nos de pequeno grupo agitado que discutia, em altas vozes.


Indigitado obsessor informava:

— Hoje teremos um espetáculo formidando.

Fui informado, desde as vésperas, por diligente amigo inteirado das ocorrências daqui, e eu não podia faltar. Necessito de aprender e utilizar os recursos da técnica moderna para fazer justiça...

Estrídula gargalhada ressoou, sarcástica.


Outro infeliz perseguidor, que assinalava no facies macilento e desfigurado a condição íntima, grunhiu:

— O caso de hoje, como outros anteriores, pertence à força da justiça.

Entre nós, a lei tem função punitiva. Nada de correção, nem piedade. Quem fere será ferido, e acabou-se.


Uma senhora que se caracterizava pelo desleixo da aparência, com fundas olheiras, narinas arfantes e lábios finos, contraídos, de semblante patibular, arengou:

— Eu conheço pessoalmente o infrator que hoje começará a experimentar o rigor da justiça...

Estou ansiosa. Não percamos tempo. Entremos!

Em ruidosa zombaria, rumaram na direção da porta principal e desapareceram entre a multidão agitada.

O que merece registro é que todos se referem àJustiça. Esquecidos da própria condição, tornaram-se juízes dos outros, esfaimados como se encontram de equilíbrio. Enlouquecidos nos desvarios da vindita, estribam-se no falso conceito da (justiça com as próprias mãos», derrapando em crimes hediondos que os surpreenderão mais adiante, recebendo-os nas malhas da inexorável lei da evolução. O momento, no entanto, não comportava considerações de tal natureza. Gentilmente advertidos por Saturnino, reunimo-nos em prece e, absorvendo as energias deletérias com que modificaríamos a «psicosfera espiritual», algo arquejantes sob o império das emanações de baixo teor vibratório, respirando a custo, com a aparência algo desfigurada para não chamar a atenção, acercamo-nos em grupo, da entrada, atravessando o torniquete em que se encontrava instalado o «psicovibrômetro».

Oambiente interno, insuportável, estava carregado de fumo e vapores nauseantes, asfixiantes. Luzes pesadas caíam em tons fortes projetadas na direção do centro em que se dariam os espetáculos.

A multidão de galhofeiros era considerável. Doestos e expressões vulgares explodiam em atroada forte de todas as direções. Alguns encarnados, amedrontados uns, voluptuosos outros, participavam das galerias atulhadas.


O irmão Saturnino, sempre gentil, explicou-nos ser necessário considerar que ali se encontravam muitos espíritos encarnados, espontaneamente presentes, participantes habituais que se fizeram de espetáculos daquele vulto. Espíritos aclimatados às regiões inferiores donde procediam, antes da reencarnação, no corpo carnal encontraram elementos grosseiros para se refestelarem, mantendo a sintonia com os que ficaram na retaguarda. Outros, menos avisados, se mancomunaram com as mentes infelizes que pululam em toda parte, e nas horas de vigília se nutrem dos pensamentos deprimentes e opressivos derivados dos prazeres animalizantes em que se demoram, ali se reunindo nas breves horas de parcial desprendimento pelo sono, para darem curso aos apetites mais brutais. Sexólatras inveterados, perturbados das funções genésicas, alcoólatras, morfinômanos, cocainômanos, opiômanos e outros que possuem os centros da razão anestesiados pela monoideia do gozo, em perfeita comunhão: assimilando e eliminando as vibrações viciadas das construções mentais constantes de que se fazem objeto permanente

*• Com intervalos regulares, soaram os sinais prenunciadores do início da função execranda.

Com estrépito quase ensurdecedor, as sirenes anunciaram a aparição do Dr. T eofrastus.

Alguns clarins de sons agudos foram ouvidos e sinistro séquito, carregando o palanquim em que se encontrava o arguto obsessor, deu entrada em cena. Gritos e aplausos atordoantes encheram o amplo recinto. Impassível, como um poderoso rei da impiedade que visitasse larga colônia de súditos infelizes ou escravos repelentes, após o circuito em que a ovação parecia também apupos, a estranha mole que o acompanhava, em que apareciam alabardeiros sinistramente vestidos, parou, e o mago, tomando atitude estudada, abandonou a ridícula rede adornada e com olhar brilhante de águia relanceou a visão por todos os recantos, desafiadoramente, sentando-se em cadeira de alto espaldar, como se fora um trono, em posição central, donde poderia dirigir o cerimonial.

Silêncio tumular se abateu sobre o anfiteatro.

Ridículo mestre de cerimônias, mais parecido aos antigos bufos das cortes, de rosto duro e encovado, tomou de pequeno microfone e começou a falar.


A voz roufenha era um arremedo de discurso laudatório à figura do Dr. T eofrastus. — Este é o nosso representante da Justiça — disse entre outras considerações — nos círculos em que nos

* Hoje, com a facilidade do uso desenfreado de estupefacientes, barbitúricos vários e outros alucinógenos, em que expressiva quantidade de mentes se perturbam, nos estados característicos do "transe", esses espíritos adensam recintos como o a que nos referimos, tornando-se escravos de outras mentes viciadas que se locupletam nas suas emanações morbíficas.

— Nota do Autor espiritual.

encontramos.

É claro que ele não detém toda a justiça. É serventuário zeloso dos bens da vida, que não podem ser dilapidados impunemente pelos defraudadores, da verdade.

Fez pequena pausa de efeito.

As palavras justiça e verdade soavam ali muito estranhamente. Pareciam proferidas com o objetivo único de criarem pânico nas mentes desavisadas, colhidas pela consciência íntima, que realmente ninguém consegue anestesiar indefinidamente.

Não somos impiedosos como afirmam muitos —prosseguiu com entonação de ira e maldade. Somos somente a consciência externa dos que escondem a consciência pessoal e fraudam, esquivando-se, depois, ao acerto de contas de que ninguém se eximirá. Não condenamos quem quer que seja. Despertamos cada devedor para a autopunição. Não violentamos a liberdade de ninguém, nem constrangemos Espírito algum a tomar parte em nossos atos. Todos os que aqui nos encontramos usamos as duas alternativas normais: sintonia por afinidade de gostos — que nos congregam numa poderosa confraria em que uns justiçam e outros são justiçados, e sintonia pelo medo — que requisita o material necessário para resgate dos crimes praticados, através dos processos compatíveis de que as Leis utilizam nossas possibilidades de punidores que nos fizemos, também espontaneamente.

«Isto posto, temos as mãos lavadas de qualquer culpa e segurança íntima de que não somos benignos com uns e severos com outros. Cada um aqui recebe conforme o seu merecimento. Dispomos de meios de tudo saber e temos uma legião de informantes que fiscalizam os que se demoram no corpo, conquanto ligados à nossa Colônia, para que, quando aqui trazidos, quer na roupagem física ou não, possam ouvir de testemunhas devidamente adestradas o relato das Suas desditas, como se a própria consciência neles resolvesse falar.

«Dr. Teofrastus é, pois, a chibata da lei. Preparai-vos!

«Consciências infelizes e corações empedernidos, esperai!

«Temos tempo. Dispomos do milagre da supervivência. A morte é isto: o que cada um fez, como viveu, conforme preferiu agir.

Suportai agora o resultado das vossas atitudes. » Silenciando a voz estranha, uma quietude cruel se abateu sobre o recinto. Mesmo alguns dentre os Espíritos obsessores mais cínicos apresentavam no semblante estarrecido o estupor e o receio.

Afinal ali estavam somente consciências ultrajadas, e as expressões vigorosas verdade e justiça, conquanto desvitalizadas da sua grandiosa significação, para eles representavam o invariável ajuste de contas de que ninguém se furtaria.


A um sinal adrede combinado, o Dr. Teofrastus ergueu pesado cetro e o bateu violentamente no palanque que o sustinha. O mestre de cerimônias bradou:

— Tragam o primeiro caso.

Rebuscando entre tiras de papel que mantinha nas mãos, destacou uma e leu: — José Marcondes Effendi, 21 anos, domiciliado na Terra.

Dois ajudantes de enfermagem apareceram trazendo uma maca na qual, em sono profundo, aparecia um espírito reencarnado, desdobrado em corpo espiritual, que foi colocado na mesa cirúrgica situada no centro do proscênio.

Todos estávamos de olhos fixos no que ocorria.


O locutor novamente chamou:

— Apresente-se a testemunha.

Do grupo que cercava o Dr. Teofrastus, destacou-se horrenda figura, de aspecto repelente, que se acercou do paciente em repouso agitado.

— Pode falar! — impôs o sinistro apresentador do espetáculo.


Tomando do microfone para se fazer ouvido e pigarreando asquerosamente, o mísero sofredor narrou:

—Estive na Terra há aproximadamente 60 anos, donde fui expulso por homicídio vergonhoso... Era radicado no Rio de Janeiro, nos últimos dias do Segundo Império, fazendo parte da média burguesia. Acreditava-me feliz na vida conjugal, quando, por insistência da esposa, buscara recreação, em férias de dezembro, em Petrópolis, fugindo à canícula do Rio, hábito, aliás, que se repetia cada ano. Não imaginava que a companheira, de quase 15 anos de vida em comum, ligara-se a aventuras extraconjugais com um dos meus empregados, que servia numa das lojas de tecidos de minha propriedade.

Não tendo filhos, por minha morte todos os meus bens recairiam nas mãos da viúva.


Embargado, senão pela emoção, porém pela ira repentina que o dominava, fez uma pausa, que foi interrompida por estímulos coléricos das galerias:

— Prossegue! Narra! Nada de medo! Desejamos saber tudo...

— Instalado na serra petropolitana entre amigos folgazões, que se beneficiavam do excelente clima, fui assassinado cruelmente, sem piedade, pela esposa e o amante, que ela emboscara na intimidade da alcova, cinco dias após ali nos termos alojado. Logo depois, oferecendo ensejo para que o criminoso se evadisse, ela encenou um roubo de joias e outros valores, do que resultara o hediondo crime... Hábil na arte da dissimulação, fez-se acreditar; e o homicídio passou impune.

Embora aberto inquérito que se arrastou tristemente entre as autoridades competentes, sem testemunhas nem novos fatos que viessem justificar suspeitas, o caso foi encerrado e a sepultura silenciou sobre a tragédia passional.


Novo choque da turba desesperada:

— Que aconteceu? — gritavam, em coro, as vozes desenfreadas.

—Ao despertar do lado de cá, experimentando as cruezas da imortalidade, dominado por incoercível ódio, ardendo de desejos de vingança, retornei ao lar — não posso atinar com o tempo que houvera transcorrido —e, então, o meu horror não teve limite.

A traidora, passado um regular período de luto, consorciara-se com o meu assassino, entrando ambos na posse dos meus bens, fruindo o resultado do crime feroz...


Transfigurado de dor e revolta, esbravejando com expressões das mais chocantes, o narrador, de olhar desvairado, prosseguiu:

— O desespero foi-me fulminante. Tive a impressão de morrer outra vez. Uma angústia bestial feriu-me, e a dor que sentia no peito varado pelo estilete com que me destruíram o corpo foi acrescentada à de um ftártico que me queimava e requeimava, até que, louco, perdi a noção de tempo, de lugar, de tudo... Refossilei em regiões indescritíveis, por quantos anos não poderia dizê-lo com segurança, sem refrigério, sem socorro... Há poucos anos senti uma força que me arrancou do inferno em que me demorava e subitamente recobrei alguma lucidez, descobrindo-me diante de um jovem de 10 anos aproximadamente, por quem de imediato nutri incomparável horror. Elos poderosos me atavam ao estranho corpo juvenil, e, vinculado ao lar em que ele vivia, comecei a compreender que aquele corpo, por sortilégio demoníaco que me escapava, ocultava a adúltera, agora revestida de forma nova, como que mascarada para continuar a fugir à sanção que merecia...

«Eu ignorava totalmente a lei de «vinda-ida-e-volta» (1) em que os criminosos são obrigados a percorrer outra vez os sítios malsinados pela sua conduta vergonhosa, mas sentia que, perseverando ali, mais cedo ou mais tarde surpreenderia a verdade. Foi o que fiz. Comecei a acompanhar aquele ser, que me inspirava a mais chocante revolta. Paulatinamente me fui afinando com ele e tão constante me fiz na eficiente fiscalização que um dia, em que o sono o dominou, percebi que ela, a horrenda assassina, abandonava o corpo dele.


Vendo-me, reconheceu-me, e voltou a refugiar-se nas carnes novas, que foram sacudidas por vigoroso choque, produzindo nele o despertar apavorado. Não mais arredei pé. » A recordação entrecortada de soluços e descontroles produziu violenta crise na entidade, que continuou estimulada pelo auditório ávido do desfecho. Recompondose, após olhar a figura impassível do Chefe, prosseguiu:

— No lar em que ele se ocultava travei conhecimento com um membro desta Colônia, que ali também residia, e vim aqui trazido para uma entrevista com o Dr. T eofrastus.


Ante a citação do nome do mago, os ouvintes em desatrelada balbúrdia aplaudiram com palmas, assobios e gritos ensurdecedores. A sirene soou impondo silêncio e a narração continuou:

— Ouvido atentamente pelo Chefe, ele recomendou-me uma vingança de longo curso.


Foi visitar pessoalmente a minha inimiga e após demorado exame chegou à conclusão de que poderíamos produzir muito em nome

(1) A entidade se refere à lei da reencarnação.

— Nota do Autor espiritual.

da justiça a meu benefício, O corpo era moço, mas o espírito que o animava era o da assassina, que merecia severa punição. Identificando nela (em corpo de homem, embora) as tendências guardadas da vida anterior, em que as dissipações atingiram o auge — o esposo depois de expropriar-lhe os bens, evadiu-se para a África, deixando-a na mais chocante miséria, o que a levou a uma vida boêmia, aniquilando o corpo em imundos catres de perversão moral, vítimada pela tuberculose que contraíra ao peso de excessos de toda a natureza, fácil seria perturbar-lhe os centros genésicos, através da perversão da mente inquieta, em processo de hipnose profunda, praticada por técnicos do nosso lado.

Gargalhadas estentóricas estouraram de todos os lados.

— Viva a justiça! — Gritaram.

— Muito bem! Adiante!

—Em pleno amadurecimento das faculdades sexuais, sob a rigorosa assistência de um hipnotizador destacado pelo Dr. Teofrastus, foi fácil modificar-lhe o interesse e inclinar-lhe alibido em sentido oposto ao da lei natural, já que o seu corpo era masculino, produzindo irreparável distonia nos centros da emoção. Daí por diante associei-me à sua organização física e psíquica, experimentando as sensações que lhe eram agradáveis e criamos um condicionamento em que os nossos interesses agora passaram a ser comuns.

Tão fortemente me liguei à sua vida, que o ódio se converteu em estímulo de gozo, imanando-nos em processo de vampirização em que me locupleto e através do qual a destruo, atirando-a cada vez em charco mais vil, até que o suicídio seja sua única solução...

O auditório vibrava.

Os espetáculos romanos do passado não poderiam ser mais chocantes. Era difícil saber-se se aqueles eram espíritos que habitaram corpos humanos ou primitivos seres que apenas experimentaram o trânsito do instinto para os albores da inteligência, através de formas humanas...


Na pausa que se fez natural, Saturnino, visivelmente comovido, comentou:

— Justiça em nós mesmos! O erro acompanha sempre o desrespeitador da lei, enquanto ele não se modifica para a verdade e não se submete espontaneamente à reparação. Acreditam esses infelizes irmãos que o poder lhes está nas mãos, teimando por ignorar que a lei que lhes concede ensejo para tais proezas não lhes permite o uso desregrado da impiedade nem da suprema humilhação, olvidando conscientemente a aproximação do momento deles próprios, em situação possívelmente muito mais dolorosa...

Silenciou, pois que a narrativa entre ovações e achincalhes tinha curso.

— Depois de alguns anos de convivência entre ela e mim — continuou a entidade —, percebi que curiosa tristeza a malsinava. Sentia-se dominada por mim e começou a registrar-me a presença. Agora, após concluir o curso médio e iniciarse na Universidade com maior compreensão dos problemas humanos, sabendo do drama íntimo, resolveu procurar um psicanalista de renome. Submetida a diversos testes e sessões especializadas, o facultativo, que é dócil à minha sugestão — merece esclarecer que a este tempo já me enfronhara devidamente nas técnicas da sugestão, nos diversos processos hipnológicos de que me utilizo com frequência para colimar os meus desejos — e que ignora, totalmente, na sua soberbia intelectual as realidades deste lado, utilizando-se de expressões muito em moda, por mim inspiradas, sugeriu que o essencial na vida é a pessoa realizar-se como achar conveniente, e que tudo o mais são tabus que devem ser quebrados, em prol da felicidade de cada um...

Pressionando o especialista com hábil sugestão, consegui que ele a estimulasse ao prosseguimento habitual dos seus atos, o que não me foi difícil.

Novas gargalhadas espocaram, acompanhadas dos mais chocantes verbetes da infelicidade humana.


Muito estimulado pelo consenso geral, o Espírito infeliz culminou:

—Quando já me supunha dono absoluto da situação, alguém aconselhou-a a procurar sessões espíritas, pois que isto bem poderia ser uma obsessão.

Esse alguém é um certo pregador do Espiritismo, nesta cidade, que se propôs ajudá-la com passes e outros recursos que ignoro.

— O quê? — bradou o auditório. — Onde já se viu? E a justiça? O Espiritismo é o maior inimigo da nossa Organização. Fora com o. Espiritismo; reajamos à intrujice...

Novamente o silvo das cigarras impôs silêncio.


O narrador prosseguiu:

— Atônita começou a frequentar algumas sessões e eu me senti repentinamente sem possibilidades de dominá-la como fazia até então. Sabendo-a sem resistência para o que já lhe constituía um hábito, comecei a sugestioná-la de longe. A infeliz, no entanto, ao invés de receber as minhas impressões, fez-se beata, começou a orar.

Recorri então ao Dr. Teofrastus que, muito sábio, lhe deu assistência especializada e conseguiu induzi-la a novos compromissos, obrigando-a a reincidir, o que me ofereceu ensejo de trazê-la aqui hoje.


Saturnino, vigilante, elucidou:

—Em qualquer problema de desobsessão, a parte mais importante e difícil pertence ao paciente, que afinal de contas é o endividado. A este compete o difícil recurso da insistência no bem, perseverando no dever e fugindo a qualquer custo aos velhos cultos do «eu» enfermo, aos hábitos infelizes, mediante os quais volta a sintonizar com os seus perseguidores que, embora momentaneamente afastados, não estão convencidos da necessidade de os libertar.

Oração, portanto, mas vigilância, também, conforme a recomendação de Jesus. A prece oferece o tônico da resistência, e a vigilância o vigor da dignidade. Armas para quaisquer situações são o escudo e a armadura do cristão...

— O meu desejo é continuar a dominá-la — continuou arengando — e, nesse sentido, nosso Chefe se propôs submetê-la a uma intervenção cirúrgica, processo eficiente contra o qual os espíritas nada poderão fazer, no sentido de libertá-la.

A um sinal do Dr. Teofrastus, o Espírito silenciou.

O antigo mago de Ruão levantou-se, acolitado por dois assessores, e examinou a entidade, cujo desequilíbrio e invigilância, quanto ao culto das responsabilidades, a levara àquela dolorosa situação.


Enquanto isso ocorria, Saturnino esclareceu:

—Não duvidemos do concurso do Alto. Jesus vela! A vítima de si mesma, que os nossos olhos contemplam, não está à mercê de tão sinistros algozes, abandonada. Entidades vigilantes socorrê-la-ão logo mais. O Espiritismo possui antídotos para todas as surtidas das mentes radicadas no mal, desde que os que buscam a linfa soberana e refrescante da fé restaurada, desejem assumir consigo mesmos os compromissos de perseverarem nos deveres superiores, a benefício pessoal.

Oremos e confiemos!

Iremos fazer uma implantação — disse em tom de inesquecível indiferença o Dr. Teofrastus — de pequena célula fotoelétrica gravada, de material especial, nos centros da memória do paciente. Operando sutilmente o perispírito, faremos que a nossa voz lhe repita insistentemente a mesma ordem: «Você vai enlouquecer! Suicide-se! Somos obrigados a utilizar os mais avançados recursos, desde que estes nos ajudem a colimar os nossos fins.

Este é um dos muitos processos de que nos podemos utilizar em nossas tarefas...

Estarrecidos, vimos o cruel verdugo movimentar-se na região cerebral do perispírito do jovem adormecido, com diversos instrumentos cirúrgicos, e, embora não pudéssemos lograr todos os detalhes, o silêncio no recinto denotava a gravidade do momento.

Transcorridos uns dez minutos, a cirurgia foi dada por concluída e o paciente foi removido.

Quantas indagações me fervilhavam na mente! A hora, porém, não comportava quaisquer esclarecimentos.

Era momento significativo na história de nossa vida espiritual e o ambiente abafado, negativo, asfixiava-nos a todos. O Dr. Teofrastus retornou ao palanque e desfilaram mais alguns casos. Logo depois, o espetáculo foi encerrado.

A grande mole de entidades começou a debandar.

Os alto-falantes declararam que a partir daquele instante o Chefe concederia entrevistas.

Era chegado o momento.

—Mantenhamos serenidade e sigamos nosso irmão Glaucus — falou, sintético, Saturnino.

— O Benfeitor desceu das galerias, acompanhado pelo grupo, e aproximou-se do palco central em que estava o Dr. Teofrastus.




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