Psicologia da Gratidão

Versão para cópia
CAPÍTULO 2

1 A bênção da gratidão

Entre os sentimentos nobres que caracterizam o ser psicológico maduro, a gratidão destaca-se como um dos mais relevantes.

A vida, em si mesma, é um hino de louvor à Vida, portanto, de gratidão incontida.

Vida, porém, é vibração de harmonia presente em todo o Universo.

Limitada nas diversas expressões pelas quais se manifesta, é um desafio em constante desdobramento na busca de significado.

Quando o processo de crescimento emocional liberta o Espírito da sombra em que se aturde, nele se apresenta a luz da verdade, que é o discernimento em torno dos valores significativos que o integram no concerto harmônico do Cosmo.

Buscando a perfeita identidade, na fusão equilibrada do eixo ego/Self, dá-se conta que viver é experiênciar gratidão por tudo quanto lhe sucede e tem oportunidade de vivenciar.

A gratidão, dessa maneira, é a força que logra desintegrar os aranzéis da degradação do sentido existencial.

Filha da maturidade alcançada mediante a razão, sobrepõe-se ao instinto, é conquista de elevada magnitude pelo propiciar de equilíbrio que faculta àquele que a sabe ofertar.

Comumente, na imaturidade emocional, acredita-se que a gratidão é uma retribuição pelo bem ou pelos favores que se recebem, consistindo em uma forma de devolução, pelo menos em parte.

Inegavelmente, quando se devolve algo dos recursos recebidos, que têm significados saudáveis, opera-se no campo do reconhecimento.

No entanto, trata-se de uma convenção, efeito do jogo mercadológico da oferta e da procura ou vice-versa.

O instinto de preservação da existência, trabalhando em favor dos interesses imediatistas, age, não poucas vezes, utilizando-se de ações retributivas, especialmente quando estimulado ao prazer.

A gratidão é um sentimento mais profundo e significativo, porque não se limita apenas ao ato da recompensa habitual.

É mais grandioso, porque traz satisfação e tem caráter psicoterapêutico.

Todo aquele que é grato, que compreende o significado da gratidão real, goza de saúde física, emocional e psíquica, porque sente alegria de viver, compartilha de todas as coisas, é membro atuante na organização social, é criativo e jubiloso.

Predomina, porém, nas massas, que infelizmente diluem a identidade do indivíduo, confundindo os valores éticos e comportamentais, a ingratidão, filha inditosa da soberba, quando não do orgulho ou da prepotência, esses remanescentes do instinto, transformados em sombra perturbadora.

Em consequência, vivem em inquietação, perturbam-se e desequilibram os demais, cultivando as enfermidades parasitas da agressividade, da violência ou da auto compaixão, entregando-se aos conflitos e realizando mecanismos de transferência de responsabilidades.


Impossibilitados de compreender a finalidade existencial, a busca de um sentido para a autorrealização, fazem-se omissos, até mesmo no que diz respeito aos seus insucessos, entregando-

— se a condutas esdrúxulas que pensam poder escamotear os conflitos que os assinalam.

Essa estranha conduta é responsável por alguns mitos que remanescem no inconsciente, e esses arquétipos desculpistas constituemlhes recursos de auto apaziguamento, dessa forma tentando conciliar a consciência que exige lucidez com o ego que prefere a ilusão.

O Self imaturo sofre o efeito do ego dominador e atribui-se méritos que não possui, acreditando-se credor de todas as benesses que lhe são concedidas, sempre anelando por mais recursos que lamentavelmente não o plenificam.

Nesse estágio, haure bens que não sabe usar, e amontoam-se em armários ou em bancos, acumulando presunção e despotismo, sem se integrar no conjunto social em que se movimenta.

E quando o faz, destaca-se pelo orgulho e pelo falso poder externo, compensando as angústias internas com a bajulação e o aplauso dos outros, que se transformam em estímulo para exibir as qualidades que gostaria de possuir.

Aspira sempre por ter mais, sem a preocupação de ser melhor.

Busca ser respeitado, o que equivale a dizer temido, antes que ser amado, pela dificuldade que tem de amar, o que lhe propicia insegurança e mal-estar disfarçados com os vícios sociais, tais o álcool, as drogas da moda, o tabaco, o sexo apressado e destituído de sentimento emocional compensatório.

Recolhe onde não semeou, por acreditar-se possuidor de direitos que lhe não cabem, impedindo-se o dever de repartir solidariedade e harmonia.

Assume postura agressivo-defensiva, de modo que amealhe sem oferecer, descobrindo inimigos onde existem apenas desconhecidos que não foram conquistados e simpatizantes que não foram atraídos ao seu fechado círculo de egoísmo.

Permanece armado, em vigília contínua, em vez de amando em todas as circunstâncias, ante a irradiação de desequilíbrio que é o seu estado interno.

Introverte-se, quando deveria espraiar-se como as águas generosas do regato, diluindo as fixações que o retêm na infância da evolução antropológica...

O sentido existencial é de conquistas internas, aplicadas em favor da gratificação.

À medida que se recebe, doa-se, e, na razão direta em que se é aceito e querido, mais ama e melhor agradece.

A gratidão é uma bênção de valor desconhecido, porque sempre tem sido considerada na sua forma simplista e primária, sem o conteúdo psicoterapêutico de que se reveste.

Quando se reflexiona em torno da gratidão, quase imediatamente se pensa em devolver parte do que foi recebido, o que a torna insignificante e destituída de valor.

Permanece aí a visão material imediatista, sem os conteúdos psicológicos renovadores.

Quando observamos uma rosa exteriorizando perfume carreado pela brisa, deparamo-nos com a gratidão do vegetal que transformou húmus e água em aroma delicado.

De igual maneira, o Sol, que responde pela preservação do milagre da vida em múltiplas manifestações, oscula o charco sem assimilar-lhe os odores pútridos e acaricia as pétalas das flores sem tomar-lhes o aroma agradável.

Essa é a sua forma de agradecer a própria finalidade para a qual foi criado...

Quando o Espírito alcança o objetivo do seu significado imortal e entende-o com discernimento lúcido, abençoa tudo e todos, agradecendo-lhes a oportunidade por fazer parte do seu conglomerado.

A gratidão deve ser um estado interior que se agiganta e mimetiza com as dádivas da alegria e da paz.

Por essa razão, aquele que agradece com um sorriso ou uma palavra, com uma expressão facial em silêncio ou numa canção oracional, com o bem que esparze, é sempre feliz, vivendo pleno.

Entretanto, aquele que sempre espera receber, que faz e anela pela resposta gratulatória, que se movimenta e realiza atos nobres, mas conta com o alheio reconhecimento, imaturo, negocia, permanecendo instável, neurastênico, em inquietação.

Quando se é grato, nunca se experimenta nenhum tipo de decepção ou queixa, porque nada espera em resposta ao que realiza.

A busca, portanto, da autorrealização é alcançada a partir do momento em que a gratidão exerce o seu predomínio no Self, sem nenhuma sombra perturbadora, constituindo-se uma sublime bênção de Deus.


O SIGNIFICADO DA GRATIDÃO

O verbete gratidão vem do latim grafia que significa literalmente graça, ou gratus que se traduz como agradável.

Por extensão, significa reconhecimento agradável por tudo quanto se recebe ou lhe é concedido.

A ciência da gratidão surge como a mais elevada expressão do amadurecimento psicológico do indivíduo, que o propele à vivência do sentimento enobrecido.

Os hábitos de receber-se ajuda e proteção desde o momento da fecundação, passando pelos diversos períodos do desenvolvimento fetal até a idade adulta, sem a consciência do que lhe é oferecido, encarregamse de construir o ego interessado exclusivamente em fruir sem maiores responsabilidades.

Acumulando os favores que o promovem, somente adquire noção de valor do que lhe é oferecido quando o discernimento aflora na personalidade e o convoca, por sua vez, à contribuição pessoal.

Não acostumado, porém, a repartir, torna-se soberbo e presunçoso, atribuindo-se méritos que realmente ainda não conseguiu amealhar.

À medida que os instintos abrem espaço para as emoções, o amor ensaia os seus primeiros passos em forma de bondade e de gentileza para com os outros, caracterizando o desenvolvimento ético-moral.

O amor assinala-se, nessa fase, através do anseio de servir, de contribuir, de gratular...

Nessa fase, a da gratulação, o significado existencial torna-se relevante, proporcionando a mudança do comportamento egoísta e ensaiando as primeiras manifestações de gentileza, de altruísmo.

Quanto mais se desenvolve o sentimento afetivo, mais expressivo se faz o sentido retributivo.

No começo, trata-se de uma emoção-dever, que auxilia na libertação da ânsia de acumular e de reter.

O discernimento faculta a compreensão de que tudo é movimento no Universo, uma forma de dar e de receber, de conceder e de retribuir, e qualquer conduta estanque é propiciatória à instalação de enfermidades, desajustes e morte.

A recompensa, maneira simplista de retribuição, apresenta-se como passo inicial para a futura gratidão.

Raramente ocorre ao adulto a emoção espontânea de agradecer, isto é, de bendizer todos aqueles que contribuíram de maneira automática, é certo, mas também pela afetividade, para que ele alcançasse o patamar da existência no qual se movimenta.

Quando se conscientiza dessa evocação, um hino de alegria canta no seu mundo íntimo.

Não há lugar para exigência diante de qualquer carência ou reclamação por não haver fruído determinadas benesses que antes lhe pareciam de real importância.

Reflexiona que também age pela força dos hábitos adquiridos em favor de outras vidas, da ordem, do progresso, do bem, ou, infelizmente, pelos fenômenos perturbadores que assolam a sociedade...

Descobre-se localizado no contexto social, um tanto amor-fo, sem o sentido existencial feliz, deixando-se conduzir ou arrastar pela correnteza dos acontecimentos...

O despertamento para a gratidão inicia-se por uma forma de louvor a tudo e a todos.

O santo seráfico de Assis, ao atingir o estado numinoso, de imediato exaltou na sua volata de gratidão, ora doce, ora suave, o hino em favor de todas as criaturas: irmão Sol, irmã Lua, irmã chuva, vegetais, animais e tudo quanto vibra e glorifica a criação.

Quanto mais exaltava o que a muitos parece insignificante ou destituído de valor, a sua riqueza gratulatória conseguia dignificar, exaltando-lhes as qualidades.

Certamente, conforme acentuou um filósofo popular, a beleza da paisagem encontra-se nos olhos daquele que a contempla.

Não é exatamente assim o que ocorre, mas existe uma dose alta de razão no conceito, porque somente quem possui beleza e harmonia pode identificá-las onde quer que se encontrem.

Não havendo essa sensibilidade no ser humano, não há como distinguir-se o banal do especial, o grotesco do belo, e assim por diante.

Claro está, portanto, que a gratidão, para ser legítima, exige que haja no íntimo da criatura esse encanto pela vida, o doce enlevo que a torna preciosa em qualquer condição que se manifeste que se compreenda a magia do existir, percebendo-se as dádivas que se multiplicam em incontáveis expressões de intercâmbio.

No sentido oposto, o ingrato é aquele que se mantém no processo de primarismo, longe da percepção do objetivo essencial da existência.

Criança maltratada que se detém na injúria e nas circunstâncias iniciais do processo de desenvolvimento ético e moral.

Que se nega a crescer, acalentando ressentimentos de fatos de pequena ou grande monta, mas que encontraram aceitação emocional profunda, assinalando com revolta a experiência do desenvolvimento emocional.

Ninguém se pode fecundar emocionalmente se reage aos fatores propiciatórios do mecanismo especial de maturação.

E indispensável deixar-se triturar pelas ocorrências, e superá-las mediante a autoestima e o autorreconhecimento.

A gratidão é sempre em relação a outrem, aos fenômenos existenciais, jamais ao orgulho e à presunção.

Como se pode ser reconhecido a si mesmo, sem o tombo grosseiro no abismo do ego sem discernimento?

Como se ser grato ao ego, invariavelmente incapaz de liberar da sua conjuntura o Self, responsável pela magnitude do ser em aprimoramento? Tome-se como imagem para reflexão a concha bivalve da ostra que não permite seja recolhida a pérola nela acrisolada.

Para que tenha sentido real, rompe-se a crosta vigorosa e esplende a gema pálida e notavelmente construída.

Muitas vezes, ou quase sempre, é através da ruptura, da fissão, que se pode encontrar, além do exterior, a pérola adormecida na intimidade de tudo: o diamante mergulhado no carvão grosseiro, a estrela escondida além da nuvem e da poeira cósmica...

Agradecer, portanto, significa inebriar-se de emoção lúcida e consciente da realidade existencial, mas não somente pelo que se recebe também pelo que se gostaria de conseguir, assim como pelo que ainda não se é emocionalmente.

Despojando-se da escravidão da posse, irisa-se o ser de bênçãos que esparze em sinfonia de gratidão.

Agradecer o bem que se frui assim como o mal que não aconteceu ainda, e, particularmente, quando suceda, fazer o mesmo, tendo em vista que somente ocorre o que é necessário para o processo de crescimento espiritual, conforme programado pela Lei de Causa e Efeito.

Gratidão é como luz na sua velocidade percorrendo os espaços e clareando todo o percurso, sem se dar conta, sem o propósito de diluirse no facho incandescente que assinala a sua conquista.

Uma das razões fundamentais para que a gratidão se expresse é o estímulo propiciado pela humildade que faz se compreenda quanto se recebe, desde o ar que se respira gratuitamente aos nobres fenômenos automáticos do organismo, preservadores da existência.

Nessa percepção da humildade, ressuma o sentimento de alegria por tudo quanto é feito por outros, mesmo que sem ter ciência, em favor, em benefício dos demais.

Essa identificação proporciona o amadurecimento psicológico, facultando compreender-se que ninguém é autossuficiente a tal ponto que não dependa de nada ou de ninguém, numa soberba que lhe expressa a fragilidade emocional.

Sem esse sentimento de identificação das manifestações gloriosas do existir, a gratulação não vai além da presunção de devolver, de nada se ficar devendo a outrem, de passar incólume pelos caminhos existenciais, sem carregar débitos...

Quando se é grato, alcança-se a individuação que liberta.

Para se atingir, no entanto, esse nível, o caminho é longo, atraente, fascinante e desafiador.


A VIDA E A GRATIDÃO

Jung asseverou que a finalidade da vida não é a aquisição da felicidade, mas a busca de sentido, de significado.

Equivale a dizer que a felicidade, conforme vulgarmente se pensa, é a conquista da alegria, o júbilo por determinadas aquisições, o êxito diante de algum empreendimento, a viagem ao país dos sorrisos.

Sem dúvida, essas emoções que se derivam do prazer e do bem-estar encontram-se muito próximas da felicidade, que é portadora de mais complexidades psicológicas do que se pode imaginar.

No conceito junguiano, o sentido existencial, o seu significado transpessoal, é mais importante do que as sensações que decorrem do ter e do prazer, e transformam-se algumas vezes em emoções que duram algum tempo.

Não obstante, analisando-se o fenômeno, pode-se facilmente constatar que tudo quanto proporciona prazer tem caráter efêmero, transforma-se, cede lugar a outros nem sempre ditosos...

O júbilo de um dia converte-se, não raro, em preocupação no outro, em desgosto mais tarde.

Essa felicidade risonha e simplória de um encontro, de uma explosão de afetividade ou de interesse atendido, quase sempre se constitui véspera de amargura e de dissabor, de arrependimento e de mágoa...

O sentido, o significado existencial, entretanto, caracteriza-se pela busca interna, pela transformação moral e intelectual do indivíduo ante a vida, pelo aproveitamento do tempo na identificação do Self com o ego.

É um sentido profundo, a princípio de autorrealização, depois de auto iluminação, de auto encontro.

Necessário estar vigilante para melhor distinguir as sensações que produzem empada e as emoções que enriquecem de harmonia.

O ego prefere o mergulho nas sensações do poder, do gozar, do tocar e sentir, enquanto o Self anela pelo vivenciar e ser, ampliando os seus horizontes de gratidão.

Quando a busca é de sentido, a pessoa não se detém para avaliar o resultado das conquistas imediatas, porque não cessa o significado das experiências vivenciadas e por experiênciar.

Trabalha o ser interno, inundando-se da luz do conhecimento e da vivência, de tal modo que todo o encanto veste-o de beleza e de saúde.

Mesmo que se apresente com algum distúrbio orgânico, isso não lhe constitui impedimento ao prosseguimento da sua necessidade de sentido, por compreender que se trata de um acidente natural ínsito no processo no qual se encontra, avançando sempre em equilíbrio íntimo.

Esse significado estende-se a todas as formas de vida, às mais variadas manifestações existenciais, rumando ao Cosmo...

Narra-se que um circo muito famoso, que se apresentava em Londres faz muito tempo, mantinha um elefante gentil que era motivo de júbilo das crianças, dos adultos, dos idosos, de todos que compareciam ao espetáculo no qual ele era a atração.

Chamava-se Bozo, e era muito dócil.

Bailava com o corpanzil, movia-se com suavidade, deitava-se e erguia-se com leveza...

Oportunamente, para surpresa geral, o paquiderme tentou atacar e matar o seu tratador, o que causou imenso desgosto.

Porque agora urrasse colérico, ameaçando todos que se acercavam da sua jaula, tornou-se um perigo público, e as autoridades solicitaram ao proprietário do circo que o eliminasse.

Diante da injunção, para não perder totalmente o dinheiro que Bozo representava, o seu dono resolveu utilizá-lo para um último espetáculo, quando ele deveria morrer publicamente, e, a fim de que tal sucedesse, anunciou a futura ocorrência e vendeu ingressos para o trágico acontecimento.

No sábado assinalado, pela manhã, antecipadamente anunciado, o circo encontrava-se repleto de curiosos e de insensíveis que ali estavam para ver a morte do animal que antes os distraía, numa demonstração cruel e selvagem de indiferença.

Na jaula circular, o animal movimentava-se agressivo, emitindo sons estranhos e arrepiantes.

Do lado de fora, os homens uniformizados, que se equipavam para o final terrível.


Nesse momento, enquanto o proprietário anunciava o fatídico acontecimento que logo teria lugar, alguém dele se aproximou, tocou-lhe o ombro e disse quase com doçura:

— Não lhe seria mais útil se o senhor pudesse manter vivo o animal?


E o empresário respondeu, quase com rispidez:

— Não tenho como poupá-lo, porquanto ele enlouqueceu e pode matar alguém.

— Permita-me, então, entrar na jaula e acalmá-lo, num breve tempo em que lhe possa falar.


Estremunhado, o dono do circo olhou para aquele homem de pequena estatura e redarguiu:

— Se eu consentisse uma loucura dessas, o elefante o faria picadinho, matando-o de forma impiedosa.

— Eu correrei o risco - afirmou o estranho.

— E para poupá-lo de problemas ou contrariedades, eu assinei este documento que lhe entrego, assumindo toda a responsabilidade pelo meu ato.

O empresário olhou o papel de relance, anunciou ao público a proposta, e a massa informe, desejosa de sensações fortes, como no circo romano do passado, aplaudiu a anuência.

A porta de ferro foi aberta e o homem adentrou-se na jaula.

O animal pareceu irritar-se ainda mais, parando o movimento circular, enquanto o visitante falava-lhe baixinho, palavras que ninguém entendia, num tom melódico, fazendo lembrar uma canção mântrica.

Ouvindo-o, o animal foi-se acalmando, deixou de balançar-se, os olhos injetados recuperaram a expressão habitual, o estranho acercou-se mais, tocou-lhe na tromba e delicadamente puxou o paquiderme, fazendo um círculo em torno da jaula, com a sua maneira característica muito conhecida.

O público, tomado de surpresa, aplaudiu o ato.

O visitante da jaula saiu calmamente como entrara, tomou do chapéucoco e do paletó, vestindo-os e saiu sem dar importância à mão distendida do agora feliz proprietário de Bozo.

Voltando-se para trás, explicou: — Bozo não é mau.

Ele estava apenas com saudades do hindustani, o idioma no qual foi amestrado após nascer.

Tratando-se de um elefante hindu, ele estava com saudade da sua terra, da língua materna, e acalmou-se, tendo sua paz restituída.

E não apertou a mão do diretor do circo.

Surpreso, o ambicioso proprietário olhou com mais cuidado o documento que tinha na mão e foi tomado de mais espanto, porque estava assinado por Rudyard Kipling, o inesquecível amigo dos animais, que escrevera inúmeras histórias sobre eles e que foram traduzidas em muitos idiomas.

A gratidão de Kipling ao animal saudoso devolveu-lhe a vida, enquanto Bozo, por sua vez, ouvindo a música doce do idioma a que estava acostumado, expressou a sua gratidão, recuperando a calma.

Gratidão, eis também uma forma de sentido existencial, de significado da vida, que bem poucas pessoas sabem aplicar no seu desenvolvimento emocional.


A CONSCIÊNCIA DA GRATIDÃO

A medida que a psique desenvolve a consciência, fazendo-a superar os níveis primitivos recheados pela sombra, mais facilmente adquire a capacidade da gratidão.

A sombra, que resulta dos fenômenos egoicos, havendo acumulado interesses inferiores que procura escamotear, ocultando-os no inconsciente, é a grande adversária do sentimento de gratulação.

Na sua ânsia de aparentar aquilo que não conquistou impedida pelos hábitos enfermiços, projeta os conflitos nas demais pessoas, sem a lucidez necessária para confiar e servir.

Servindo-se dos outros, supõe que assim fazem todos os demais, competindo-lhe fruir o melhor quinhão, ante a impossibilidade de alargar a generosidade, que lhe facultaria o amadurecimento psicológico para a saudável convivência social, para o desenvolvimento interior dos valores nobres do amor e da solidariedade.

A miopia emocional, defluente do predomínio da sombra no comportamento do ser humano, impede-o que veja a harmonia existente na vida, desde os mágicos fenômenos existenciais àqueles estéticos e fundamentais para a sobrevivência harmônica e feliz.

A sombra sempre trabalha para o ego, com raras exceções, quando se vincula ao Self, evitando toda e qualquer possibilidade de comunhão fora do seu círculo estreito de caráter autopunitivo, porque se compraz em manter a sua vítima em culpa contínua, que busca ocultar, mantendo, no seu recesso, uma necessidade autodestrutiva, porque incapaz de enfrentar-se e solucionar os seus mascarados enigmas.

As imperfeições morais que não foram modificadas pelo processo da sua diluição e substituição pelas conquistas éticas, atormentam o ser, fazendo-o refratário, senão hostil a todos os movimentos libertários.

Não há no seu emocional, em consequência, nenhum espaço para o louvor, o júbilo, a gratidão.

Compraz-se em arquitetar mecanismos de evasão ou de transferência, de modo que se apazigue e aparente uma situação inexistente.

Desse modo, os conflitos que se originaram em outras existências e tornaram-se parte significativa do ego predominam no indivíduo inseguro e sofredor, que se refugia na auto compaixão ou na vingança, de forma que chame a atenção, que receba compensação narcisista, aplauso, preservando sempre suspeitas infundadas quanto à validade do que lhe é oferecido, pela consciência de saber que não é merecedor de tais tributos...

Acumuladas e preservadas as sensações que se converteram em emoções de suspeita e de ira, de descontentamento e amargura, projetam-nas nas demais pessoas, por não acreditar em lealdade, amor e abnegação.

Se alguém é dedicado ao bem na comunidade, é tido como dissimulador, porque essa seria a sua atitude (da sombra).

Se outrem reparte alegria e constrói solidariedade, a inveja que se lhe encontra arquivada no inconsciente acha meios de denominá-lo como bajulador e pusilânime, pois que, por sua vez, não conseguiria desempenhar as mesmas tarefas com naturalidade.

A ausência de maturidade afetiva isola o indivíduo na amargura e na autopunição.

Tudo quanto lhe constitui impedimento mascara e transfere para os outros, assumindo postura crítica impiedosa, puritanxismo exagerado, buscando sempre desconsiderar os comportamentos louváveis do próximo que lhe inspiram antipatia.

Assim age porque a sua é uma consciência adormecida, não habituada aos voos expressivos da fraternidade e da compreensão, que somente se harmonizando com o grupo no qual vive é que poderá apresentar-se plena.

Autoconscientizando-se da sua estrutura emocional mediante o discernimento do dever, o que significa amadurecer, conseguirá realizar o parto libertador do ego, dele retirando as suas mazelas, lapidando as crostas externas qual ocorre com o diamante bruto que oculta o brilho das estrelas que se encontram no seu interior.

Não se trata de o combater, senão de o entender e o amar, porque, no processo antropológico, em determinado período, o que hoje são sombras ajudou-o a vencer as adversas condições do meio ambiente, das expressões primárias da vida, razão essa que se transformou em bemestruturado mecanismo de defesa.

Burilá-lo, pois, através da adoção de novas condutas que o aprimorem, significa respeitá-lo, ao tempo em que se liberta das fixações perversas em relação à atualidade com a aceitação de outras condições próprias para o nível de consciência lúcida em cuja busca avança.

Conseguindo esse despertar de valores, é inevitável a saída da sua individualidade para a convivência com a coletividade, onde mais se aprimorará, aprendendo a conquistar emoções superiores que o enriquecerão de alegria e de paz, deslumbrando-se ante as bênçãos da vida que adornam tudo, assimilando-as em vez de reclamando sempre, pela impossibilidade de percebê-las.

A sombra desempenha um papel fundamental na construção do ser, que a deve direcionar no rumo do Self, portador da luz da razão e do sentimento profundo de amor, em decorrência da sua origem transpessoal de essência divina.

O ingrato, diante do seu atraso emocional, reclama de tudo, desde os fatores climatéricos aos humanos de relacionamentos, desde os orgânicos aos emocionais, sempre com a verruma da acusação ou da auto justificação, assim como do mal-estar a que se agarra em seguro mecanismo de fuga da realidade.

Nos níveis nobres da consciência de si e da cósmica, a gratidão aureola-se de júbilos, e os sentimentos não mais permanecem adstritos ao eu, ao meu, ampliando-se ao nós, a mim e você, a todos juntos.

A gratidão é a assinatura de Deus colocada na Sua obra.

Quando se enraíza no sentimento humano, logra proporcionar harmonia interna, liberação de conflitos, saúde emocional, por luzir como estrela na imensidão sideral...


Por extensão, aquele que se faz agradecido torna-se veículo do sublime autógrafo, assinalando a vida e a natureza com a presença d"Ele.

A consciência responsável age sem camuflagem, diluindo a contaminação de todos os miasmas de que se faz portador o inconsciente coletivo gerador de perturbações e instabilidade emocional, produtor de conflitos bélicos, de arrogância, de crimes seriais, de todo tipo de violência.

Quando o egoísta insensatamente aponta as tragédias do cotidiano, as aberrações que assolam a sociedade, somente observa o lado mau e negativo do mundo, está exumando os seus sentimentos inconscientes arquivados, vibrantes, sem a coragem de externá-los, de dar-lhes campo livre no consciente.

Quando alguém combate a guerra, a pedofilia, a hediondez que se alastram em toda parte, apenas utilizando palavras desacompanhadas dos valores positivos para os eliminar do mundo, conhece-os bem no íntimo e propõe a imagem do salvador, quando deveria impor à consciência o labor de diluição, despreocupando-se com o exterior, sem lhes dar vitalidade emocional.

Além das palavras são os atos que devem ser considerados como recursos de dignificação humana.

A paz de fora inicia-se no cerne de cada ser.

Também assim é a gratidão.

Ao invés do anseio de recebê-la, tornar-se-lhe o doador espontâneo e curar-se de todas as mazelas, ensejando harmonia generalizada.

A vida sem gratidão é estéril e vazia de significado existencial.

A gratidão é a assinatura de Deus colocada na Sua obra.

Quando se enraíza no sentimento humano logra proporcionar harmonia interna, liberação de conflitos, saúde emocional, por luzir como estrela na imensidão sideral...




Acima, está sendo listado apenas o item do capítulo 2.
Para visualizar o capítulo 2 completo, clique no botão abaixo:

Ver 2 Capítulo Completo
Este texto está incorreto?