Psicologia da Gratidão

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CAPÍTULO 4

Psicologia da Gratidão

É inevitável que sucedam fenômenos aflitivos no trânsito humano, tendo-se em vista os atavismos pessoais, a convivência familiar e social sempre desafiadora, propiciando aprimoramento dos sentimentos, particularmente a tolerância, a compaixão, o interesse afetivo, a solidariedade...

Normalmente acredita-se que a gratidão é um sentimento sublime que opera os milagres do amor diante do seu caráter retributivo.

Esse conceito, no entanto, limita-o ao espaço estreito do reconhecimento pelo bem que se recebe e pelo anseio de devolvê-lo.

Em nossa análise, apresenta-se de maneira muito sutil e mais profunda, que vai além da compensação pelo que se recebe e se vivência.

Quando alguém consegue a experiência da gratulação, mesmo de referência aos insucessos, que podem ser considerados como experiências que ensinam a agir com responsabilidade e retidão, alcança o patamar em que esta deve ser vivida.

O sentido psicológico da reencarnação é conseguir-se a transformação moral do Selfe.

a liberação de todos os seus conteúdos ocultos ou que se encontram em germe, capacitando-o para os enfrentamentos com outros arquétipos inquietadores, especialmente quando se tornam imperiosos e dominantes no comportamento.

Uma conscientização do ser que se é faculta a renovação das forças morais para diluir a sombra e desenvolver as experiências renovadoras.

A arte da gratidão, que é a ciência da afetuosa emoção pelo existir, leva a condutas de aparência paradoxal, como, por exemplo, no caso das aflições e dos desaires...

Há um século e meio quase, Santo Agostinho, Espírito, conclamava os que sofriam à coragem e à resignação ante as aflições, mesmo aquelas de aparência cruel, propondo: As provas rudes, ouvi-me bem, são quase sempre indício de um fim de sofrimento e de um aperfeiçoamento do Espírito, quando aceitas com o pensamento em Deus.

As provações constituem bênçãos que a vida proporciona ao ser calceta, que cometeu no passado e mesmo na atual existência arbitrariedades, ferindo a harmonia das leis universais, comprometendo a consciência, a fim de que disponha de meios de recuperar-se da culpa inscrita no cerne do ser, experiênciando a contribuição do sofrimento que o dignifica, desde que a relatividade orgânica está sempre sujeita a essa sinuosidade com altibaixos na saúde e no bem-estar...

O processo da evolução, de certo modo, faz lembrar uma correnteza que enfrenta obstáculos no curso por onde corre até alcançar o seu destino, um lago, um mar, um oceano...

Não cessando de prosseguir, quando defronta impedimentos, acumula as águas com tranquilidade até ultrapassá-los, pois que a sua meta encontra-se à frente, aguardando-a.


1| Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec, capítulo XIV, item

9, 121.

Ed. FEB (mensagem ditada em 1862).

De semelhante maneira, as experiências evolutivas do ser humano transcorrem dentro de uma programação assinalada por variadas e sucessivas etapas até ser alcançado o estado numinoso.

A gratidão pelos insucessos aparentes constitui o reconhecimento por entender-se que fazem parte da aprendizagem; e a sua ocorrência em forma de dissabores, de padecimentos morais consequentes à traição, à calúnia, ao abandono a que se vai relegado por antigos afetos, tem razão de ser.

Melhor, pois, sofrê-los, vivenciá-los com resignação, quando se apresentam, do que ignorá-los, envolvê-los em máscaras ou postergálos...

Numa visão superficial, poder-se-á crer tratar-se de uma patologia pelo sofrimento em lamentável transtorno masoquista.

Ao inverso, no entanto, essa conduta traduz maturidade saudável, porque não se trata de uma eleição pessoal pelo sofrimento, mas de uma aceitação consciente e natural do fenômeno-dor, que faz parte do curso evolutivo.

Gratidão, portanto, em toda e qualquer situação, boa ou má, como asseverava o apóstolo Paulo, que era sempre o mesmo na alegria, no bem-estar, no sofrimento, no testemunho, mantendo a integridade do Self, em razão da consciência do dever nobremente cumprido, considerando as dificuldades e os sofrimentos como fenômenos naturais no seu processo de integração com o Cristo.

Quando se adquire o hábito de agradecer, os morbos emocionais da ira que se converte em ódio, da mágoa que se torna desejo de vingança, da inveja que anela pela destruição do outro, e, sucessivamente, não encontram áreas na psique para tornarem-se tormentos...

A alegria de ser-se grato proporciona entender-se a pequenez do ofensor, a jactância e fatuidade do perverso, a fragilidade daquele que se faz adversário...

Uma emoção de tranquilidade preenche todos os espaços íntimos do Self, nos quais se desenvolveriam os sentimentos inferiores.

De igual maneira, mesmo quando se recebe o anúncio de uma enfermidade irreversivel, de um acontecimento grave e mutilador, a gratidão ensejará viver-se plenamente cada momento, ante a convicção racional da sobrevivência ao corpo somático, sempre credor de toda a gratidão por conduzir-se como um doce jumentinho do Self, consoante o denominou o irmão alegria de Assis, o numinoso, sempre grato a Deus por tudo, inclusive pelo momento em que se lhe acercou a irmã morte.


A SOMBRA PERTURBADORA E A GRATIDÃO

Todas as criaturas possuem o seu lado sombra, o lado obscuro da sua existência, às vezes considerado como o lado negativo do ser.

Essa sombra que, quase sempre, responde por muitas aflições que se insculpem no ego, atormentando o Self, é, conforme o Dr. Friedrich Dorsch, resultado de traços psíquicos do homem [e da mulher] em parte reprimidos, em parte não vividos, que, por razões sociais educativas ou outras, foram excluídos da convivência e, por isso, foram reprimidos.

A sombra é portadora de valores e requisitos que podem ser utilizados de maneira produtiva ou perturbadora, podendo mesmo expressar-se de três formas, como sejam: a) a de natureza pessoal, cujos significados que foram reprimidos pertencem ao próprio indivíduo; b) a de natureza coletiva, que representa os mesmos significados reprimidos em cada sociedade; c) a de natureza arquetípica, em que há um caráter ancestral de destrutividade do ser humano, que não dispõe de possibilidade de diluição...

Jung considerava que se torna necessário adquirir a consciência desses conteúdos reprimidos, porque somente assim será possível alcançar a individuação.

Após essa tentativa inicial, deve-se trabalhar pela sua integração no Self, o que equivale a dizer esforçar-se pelo amadurecimento psicológico, não mascarando a responsabilidade pessoal e aceitando-a de forma consciente, compreendendo todas as manifestações sombrias já experiênciadas.

Todo indivíduo é possuidor de aspirações que nem sempre consegue concretizar ou vivenciar, recalcando-as com mágoa e não conseguindo diluí-las conscientemente pela superação.

Somando a esse conflito não exteriorizado, conduz a herança ancestral da cultura em que se movimenta assim como a presença arquetípica de autodestruição, como fenômeno de fuga da realidade.

Tais ocorrências defluem da vivência em cada reencarnação, quando experimentou a carga dos conflitos gerados anteriormente e que ressumam - sombra pessoal e coletiva —, tomando o aspecto arquetípico bem característico dos movimentos primários antes do surgimento da consciência e da personalidade.

Com todo esse potencial negativo, a sombra responde pelos desaires que geram sofrimento e amargura, retendo o ser na sua rede invisível e constritora.

Nada obstante, ao ser-se conscientizado desses fatores de perturbação, pode-se e deve-se trabalhar interiormente para superá-los por intermédio da redução da sua carga, aplicando-se contribuições edificantes e saudáveis, como o otimismo, a confiança no êxito, a solidariedade, o esforço para manter as perspectivas de realização sem os receios injustificáveis.

A sombra pode ser vista como uma névoa ou uma ilusão que o sol da realidade dilui, proporcionando a visão clara do existir, no qual todos se encontram situados.

E porque as aspirações humanas saudáveis são crescentes, à medida que vão sendo superadas algumas dificuldades do amadurecimento psicológico, ampliam-se os horizontes do equilíbrio e do despertamento para a individuação.

Há, sem dúvida, um grande conflito entre o que se é e o que se deseja ser, no esforço contínuo por alcançar patamares em que a harmonia emocional torne-se uma realidade, proporcionando estímulos para serem conquistados.

Nada a estranhar, nessa aparente dualidade, já que existem realmente o lado bom e o lado mau de todas as coisas, o alto e o baixo, o dia e a noite, a vida e a morte, o yin e oyang, produzindo a integração, a unidade...

Em toda parte podem ser identificadas as manifestações sombrias do ser humano, mas também o lado numinoso em toda a sua grandiosidade, rutilante nos heróis do saber e do ser, do conquistar e do realizar, na ciência, na tecnologia, nas artes, na religião, no pensamento, na solidariedade, enquanto também vige o instinto de destruição pela agressividade, pelos vícios, pela ignorância, pela prepotência...

A civilização hodierna, rica de conquistas de vária ordem, ainda não logrou tornar feliz a criatura humana que, embora favorecendo alguns dos membros a viverem em grande conforto e desfrutando de comodidades, de belezas ao alcance da mão, em sua grande parte ainda permanece insatisfeita, infeliz, invariavelmente derrapando nos abismos da drogadição, do alcoolismo, da busca desenfreada pelo prazer, pela ilusão.

Naturalmente que aí encontramos a predominância da sombra coletiva e arquetípica não trabalhada pelo conhecimento do ser em si mesmo e das suas imensas possibilidades, sempre conduzido pelo comércio para o gozo e o não pensar em profundidade, vivendo na superficialidade dos fenômenos humanos.

Tem faltado a coragem social para romper com essa cortina que impossibilita a clara visão da realidade psicológica da existência, de tal forma que as suas aspirações não vão além dos limites sensoriais.

Embora o esforço da Psicologia Social e de outras escolas, de algumas valiosas doutrinas religiosas e filosóficas, o ser humano atém-se mais ao que tateia e alcança do que anela emocionalmente, agarrando as sensações materiais sem fruir as emoções libertadoras.

Infelizmente, a educação vigente trabalha mais em favor da preservação do medo ao lado sombra do indivíduo, que se propõe a ignorá-la, a fim de desfrutar os bens que se encontram ao alcance, e mesmo quando defrontado por pensamentos ou ocorrências infelizes, logo deseja esquecê-los, não os enfrentar, como se fosse possível ocultálos num depósito especial que os asfixiaria.

Realmente, quando reprimidos esses sentimentos e sucessos, na primeira oportunidade eilos que ressumam com a carga aflitiva de que se constituem e nublam os céus róseos dos iludidos.

A existência humana é um permanente desafio que o Self tem pela frente e todo o seu esforço é procurar a integração da sombra no seu eixo.

Cabe a todos os indivíduos o dever de diluir a treva que se lhe encontra ínsita, com naturalidade igual à que defronta a luz, considerar a dor e a frustração como fenômenos normais que podem corresponder ao bem-estar e à sabedoria, logo sejam convertidos pela racionalização e pelo trabalho psicológico.

Todos aqueles que são portadores da sombra — e todos o são —, em vez de a compreenderem na condição de processo de crescimento, experimentam uma certa forma de vergonha, de constrangimento, e procuram disfarçá-la.

Tal comportamento dá lugar a uma sociedade hipócrita, artificial, incapaz de procedimentos maduros e significativos que a todos beneficiem.

O ser mais hábil no disfarce é sempre o mais homenageado e querido, produzindo-lhe maior soma de sombra e de conflito, porque se vê obrigado a continuar a parecer aquilo que, realmente, não é.

Torna-se necessária a coragem para o autoenfrentamento, saindo da obscuridade na direção da claridade existencial.

A herança arquetípica já nos fala, na linguagem do Gênesis, que Deus fez primeiro a luz, deixando significar a Sua presença em plena escuridão, momentaneamente obstaculizada pela sombra.

Em cada passo, a cada conquista diluidora do lado treva, vai-se conseguindo superar o medo do enfrentamento, o que exige a consciência da sombra que deve ser aceita sem reservas nem ressentimentos, oferecendo a cada lutador o seu poder de transformação e a sua tenacidade em alcançar a felicidade, a plenitude.

Assim vista, por conseguinte, a sombra transforma-se em árvore dadivosa, porque o medo (desgosto) do que se é torna-se superado pelo amor do que se deseja ser.

A batalha travada com a sombra, portanto, é contínua e se faz presente em todos os instantes da existência.

Quando se ama, se respeita e se atende aos compromissos, a sombra perde, mas quando se reage, mantendo-se ressentimento, ódio, ciúme, sentimentos de amargura e de cólera assim como outros do mesmo gênero, a sombra triunfa...

O amor que edifica é vitória sobre a sombra, enquanto o tormento afetivo que trai é glória da sombra.

Quando se é reconhecido à vida, se agradece e se trabalha pelo progresso, a sombra é vencida, no entanto, quando se é desagradecido e soberbo, triunfa a sombra.

Desse modo, a sombra densa das paixões inferiores é o maior obstáculo psicológico à vivência da proposta da gratidão, responsável pela integração das duas partes do ser na sua realização unívoca.


O INCONSCIENTE COLETIVO E A GRATIDÃO

Diante de determinadas decisões, o ser consciente experimenta grande dificuldade em optar pela que seria a mais correta.

Isso porque o inconsciente coletivo encontra-se sobrecarregado de medos, recordações afligentes, impulsos não controlados, toda a herança do primarismo ancestral, mesclando as experiências gerais e as pessoais.

Tal ocorrência é resultado da sombra existente em a natureza de todas as criaturas.

Nas experiências da alegria como da tristeza, da harmonia como do desconserto, os grupos sociais podem compartilhá-las em razão do inconsciente coletivo, o que explica ocorrências funestas ou ditosas que sucedem simultaneamente em diferentes partes da Terra.

É graças a esse comportamento que, em qualquer período, a sombra coletiva emerge do inconsciente coletivo - transmitida individualmente de pais para filhos, concomitantemente de um para outro grupo -, transformando-se em calamidade social.

Os vícios sociais, por exemplo: fumar e beber, as extravagâncias sexuais e o uso de drogas aditivas que invadem a sociedade, os jogos de videogame que se converteram em modismos, entre outros, tomam conta das massas de forma contagiante, como resultado do inconsciente coletivo, o que proporciona à sombra uma oportunidade de participar do fenômeno.

Sem dúvida, ocorre de forma inconsciente e, por essa razão, manifesta-se automaticamente na sociedade, após irromper no indivíduo.

As sociedades são estruturadas por acontecimentos e métodos pedagógicos de conduta infantil, quando se aprende a discernir o que é bom e o que é mau, de acordo com a cultura e a ética de cada grupo.

Fosse a questão da sombra identificada desde a infância, quando se ensinaria a descobrir os impulsos que dela procedem, facultando ao educando a compreensão da própria fragilidade, dos erros, desculpando-se e corrigindo-se, esclarecendo-se que há sempre variações no comportamento, ora para o bem, ora para o mal, ficariam mais fáceis as condutas favoráveis à sociedade e a tudo quanto se lhe vincula.

A sombra ocorre no inconsciente coletivo pelo que se pode denominar como energias contrárias que caracterizam os terroristas, os criminosos em geral, como, por exemplo, Hitler, Alarico; assim também os bons cidadãos: Churchill, Santo Agostinho...

Em realidade, a aversão e animosidade que se sustentam no exterior procedem do íntimo no qual se fazem aliadas.

E como se fosse necessário que houvesse um opositor, um inimigo, para que se revele a pessoa que se é.

Nas lutas, as mais sangrentas ou mais perversas, nas perseguições sociais sutis ou públicas, é que se desvelam os heróis, os santos, os mártires, em razão do lado sombrio que existe em todos.

O inconsciente coletivo registrou todo o processo da evolução do ser, desde quando o córtex cerebral se desenvolveu dando lugar ao surgimento das funções exteriores, dos conhecimentos abstratos, dos valores transcendentes como o amor e a misericórdia, o perdão e a caridade, a alegria e a compaixão desvelando o Self.

As energias contrárias fomentaram o surgimento da sombra que, em razão do seu lado oposto, olvida a gratidão, criando embaraços para vivenciá-la, em razão da prepotência ancestral que vem do primarismo na escala evolutiva.

Numa análise mais cuidadosa, pode-se constatar que a evolução do ser humano é resultado mais da sua mente do que do seu cérebro físico, o que equivale a informar que o Self lhe é preexistente, existindo em adormecimento enquanto preparava os equipamentos para se desvelar, o que ainda ocorre no programa da conquista da individuação, em que os impulsos éticos e as conquistas iluminativas transcendem a capacidade física.

A gratidão é uma experiência moral, não cerebral, do Self, não do ego, porquanto o primeiro é de origem divina e o segundo, de natureza humana.

Herdam-se os sentimentos — egoicos, geradores da sombra — como os sublimes, fomentadores do Self.

Quando se odeia alguém, experiência-se a sombra desconfiada de que o outro é que o odeia e deseja prejudicá-lo.

Em mecanismo de defesa nasce, então, a animosidade.

Quando se expressa o amor, o córtex proporciona bemestar orgânico, ampliando as possibilidades de crescimento do Self, dando lugar à saúde.

Somente através do concurso do amor é que o sentimento da gratidão e da vida pode manifestar-se, e sendo vivenciado por alguém irá influenciar as futuras gerações por insculpir-se no inconsciente coletivo, destruindo o império dominador da sombra.

Às pessoas que ainda se encontram no comportamento sensorial, fisiológico, à medida que despertam o Self, observam o mundo à sua volta de maneira completamente oposta ao que notavam, dominadas por luminosidade grandiosa, por belezas jamais vistas, por harmonia dantes não observada, pela brisa perfumada, alterando a realidade anterior da paisagem sombria, sem vitalidade, dominada por odores pútridos e por seres humanos que mais se semelhavam a animais estranhos...

Isso somente ocorrerá se for possível superar os limites da sombra no inconsciente coletivo desconhecido, gerador de conflitos diversos, tais como culpa e vergonha, julgamento, transferência, projeção, separação, mediante os quais o Self estorcega sem possibilidades de vivenciar a plenitude.

Indispensável a coragem para os enfrentamentos e a conscientização de que todos são débeis e erram, não se apoiando nas bengalas do desculpismo e do acanhamento, porquanto o processo de evolução é feito de sucessos e de insucessos, não se permitindo os julgamentos hediondos e oriundos do complexo de inferioridade, desprendendo-se das paixões inferiores às quais se aferra.

Logo depois, conscientizando-se da necessidade de iluminação, o paciente terá que se desprender dos julgamentos de si mesmo e dos demais, passando ao trabalho de (re) construção dos equipamentos emocionais, deixando de refugiar-se na projeção da própria imagem nos outros, dando a cada qual o direito de ser feliz ou desventurado conforme sua eleição, sem inveja nem ciúme, sem mágoa nem amargura.

Nesse ínterim, novas forças morais são somadas, e o paciente entra em contato com os sentimentos superiores, não separando, antes descobrindo a própria arrogância mascarada de humildade, a defensiva persistente para estar a favor e não armado contra, bem idealizando as demais criaturas com as imagens fortes da bondade divina.

Logo se vai diluindo a sombra, e os preconceitos, os ciúmes, as inseguranças cedem lugar à ternura, à amizade, surgindo os pródromos da gratidão a tudo e a todos, até mesmo àquilo que, desagradável, é necessário no campo experimental das emoções.

O hábito da projeção leva à paranoia que se disfarça, ocultando a ansiedade asfixiante e profundamente enraizada no comportamento psicológico.

Não basta querer o bem, é imprescindível vivê-lo, aspirar pela paz, abrindo-se à paz, porque toda vez quando se combate a guerra, o mal, em realidade, é (interiormente) aquilo que se está apontando em situação oposta, projetando a sombra, o negativo oculto do comportamento.

É muito comum a projeção e a separação darem-se as mãos e agredirem os outros, quando se narram eventos constrangedores que eles praticaram, dando a impressão de estar-se aconselhando, orientando.

Inconscientemente ou não, está-se censurando, embaraçando a pessoa, desforçando-se da sua superioridade, aquela que se lhe atribui.

Nessa conduta, a inveja desempenha um papel relevante, porque, filha especial da sombra ou sua promotora também, vivência um prazer peculiar em desnudar o outro, em apontá-lo à censura dos demais.

Reconhecer, portanto, a negatividade existente em si é um dos primeiros passos para desmascarar-se a sombra, aceitando-lhe a presença, mas não conivindo com a sua existência.

Por outro lado, evitar a queixa que se propõe a ganhar compaixão e solidariedade, utilizando-se dela como autojustificativa para permanecer na conduta morbosa, discernindo em torno dos valores possuídos com critério, constitui um passo decisivo na construção básica da gratidão.

A gratidão que se deve ter à vida, na qual todos se encontram situados.

Um dos preciosos recursos para dar direito aos outros de se comportarem conforme estão é usar a compaixão, que é uma forma gratulatória de encarar a vida, porque o ato de a vivenciar em relação ao próximo é também maneira de beneficiar-se.

A consciência ou superego sempre está vigilante e é necessário ouvir-lhe a argumentação, especialmente quando alguém se envolve em auto justificação.

Ela sempre tem o valor independente de diluir as máscaras e mostrar o erro em que se permanece como também avaliar com acerto o procedimento.

É destituída de compaixão, empurrando o ser para possuí-la em relação ao outro, facultando sintonia com a misericórdia, com Deus.

Quando se exerce, portanto, a compaixão, a consciência anui e compadece-se também, autossuperando-se e vitalizando o Self.

Na (re) construção dos seus equipamentos emocionais, devem-se abrir canais para a presença da gratidão, exercitando-a sem cessar e não permitindo que o inconsciente coletivo lhe crie obstáculos, tornando-a inexequível.


O SI R MADURO PSICOLOGICAMENTE E A GRATIDÃO

À medida que os sentimentos superiores da alegria e da gratidão apossam-se do indivíduo, curam-se os males que o afligem no longo percurso da imaturidade psicológica, libertando-o dos conflitos que deterioram o comportamento, facultando-lhe aprofundamento da perspicácia, da sabedoria, da compreensão da vida e da sua finalidade.

Tudo quanto antes se lhe afigurava desafiador, ora se transformou em continente conquistado, logo se ampliando na direção do infinito por descobrir e incorporar ao patrimônio interno.

Os pruridos de melindres e as manifestações de criança maltratada encontram-se superados, e tomam-lhes os lugares a confiança em si próprio e o respeito pelos outros, a consciência dos atos.

Vencendo as anteriores síndromes de desconforto íntimo, que agora facultam a espontânea alegria de viver e de lutar.

A calma substitui a ansiedade que antes era razão de desequilíbrio emocional, a bondade expressa-se de maneira natural, à semelhança de uma luz que se irradia sem alarde, e o indivíduo torna-se centro de convergência de interesses das demais pessoas.

O ser imaturo psicologicamente não venceu a infância que foi transferida para a idade adulta com toda a carga de conflitos não resolvidos que se manifestam no relacionamento, sempre escondendo a personalidade insegura e doentia.

A ambivalência do comportamento, desejar e não fazer, pensar e desistir, é o efeito imediato dessa imaturidade, expressando o não saber agir corretamente mesmo na área da afetividade.

Deverei dizer que amo? E se for incompreendido? — constitui um dos pensamentos de conduta ambivalente no ser imaturo, sempre postergando as atitudes psicológicas saudáveis, pelo medo da opinião alheia.

Nada obstante, durante uma crise emocional, não tem pejo em declarar: Eu detesto o mundo e não quero ver ninguém na minha frente!

O processo de amadurecimento psicológico avança com a facilidade de expressar gratidão por tudo quanto sucedeu e tudo aquilo que venha a suceder em relação ao ser humano.

Ninguém é totalmente autossuficiente, exceto os narcisistas, que se consideram especiais na criação, o que significa imperiosa necessidade de parceria, de acompanhamento, de dependência, razão por que é um ser gregário desde os primórdios da evolução.

Essa parceria e dependência, porém, estarão em nível de companheirismo, de trabalho de ajuda recíproca, de cooperação e não de submissão.

Oportunamente, duas crianças, respectivamente de 7 e 8 anos, caminhavam na direção da escola fundamental sem enunciarem uma palavra, cada qual no seu próprio mundo infantil.

A mais velha estava em conflito muito grande porque não conseguia comunicação eficaz com os demais colegas, sendo discriminada pela sua origem humilde, pela cor da pele...

Pararam, antes de atravessarem a rua, porque o semáforo estava com o sinal vermelho.


Ao mudá-lo para verde, ambas avançaram, mas a sacola abarrotada de livros e de cadernos do mais velho abriu-se e alguns deles caíram, obrigando-o a abaixar-se raivoso e buscar reuni-los outra vez. Nesse momento, o menorzinho, vendo-o em apuros, aproximou-se, abaixou-se também e perguntou-lhe, enquanto agia:

— Posso ajudá-lo? Eu gosto muito de você...

Os dois sorriram e foram conversando na direção da escola.


Passado um quarto de século, quando um cidadão afrodescendente atingiu o topo administrativo de uma grande empresa, sendo elogiado, afirmou no discurso de agradecimento:

— Eu devo a minha vida a um garotinho de 7 anos, que um dia me ajudou a guardar livros e cadernos que me haviam caído da sacola ao atravessar uma rua e disse que me queria bem...

Naquele dia eu havia resolvido suicidar-me, mas o seu gesto inocente e jovial modificou totalmente a minha vida.

A ele, pois, eu sempre agradeci haver sobrevivido, e agora agradeço novamente por haver chegado ao posto em que me encontro, e, por antecipação, por tudo mais de bom que me venha ou não a acontecer...

O sentido de parceria, de acompanhamento e de dependência no grupo social, não diz respeito aos conflitos e aos medos de crescimento, mas a uma necessidade de ajuda recíproca, de participação no grupo social, de vida em ação, de união de interesses em favor de todos e, por consequência, pela sociedade, pelo ecossistema, pela inefável alegria de viver.

Quando Confúcio enunciou a frase Aja com bondade, mas não espere gratidão, procurou demonstrar que os sentimentos nobres devem estar revestidos de renúncia, sem os interesses imediatistas da compensação, do aplauso, da admiração dos outros.

A gratidão, por isso mesmo, tem um caráter de amadurecimento psicológico, porque aquele que assim age descobriu que tudo quanto lhe acontece depende de muitos que o auxiliaram a chegar ao lugar em que se encontra.

Quanto custa o ar puro da natureza, a água dos córregos e das fontes, a beleza da paisagem, o clima saudável? Quando o alimento vem à mesa, quantas pessoas participaram no anonimato de toda essa cadeia mantenedora da vida? A realização de uma viagem exitosa, quanto dependeu de pessoas e fatores que não foram observados pelo automatismo da existência? Tudo, enfim, que acontece se encontra vinculado à dependência de um a outro indivíduo ou circunstância que propiciaram esse momento.

Quantos acidentes, desencantos, enfermidades e mortes assinalaram existências que se entregaram às descobertas, à colonização dos países, às transformações que foram operadas para que se convertessem em comunidades felizes!? A todos esses anônimos, a gratidão deve ser oferecida com ternura e gentileza.

O amadurecimento psicológico elimina a negatividade teimosa do ser humano desconfiado e inseguro, que se permite sempre suspeitas de que mesmo a amizade se faz acompanhar de interesses subalternos daqueles que dão ou buscam a estima.

Assim sendo, um grande obstáculo à gratidão madura é o hábito de esperar-se resposta ao ato gentil, de aguardar-se que o outro, o beneficiário, reconheça o que recebeu e retribua.

Eis aí uma forma subreptícia de narcisismo, quando se faz algo e se exige gratidão, ficando-se decepcionado pela ausência dessa resposta, o que induz muitos ansiosos às atitudes infantis de que nunca mais farão nada mais por ninguém, pois que não o merecem.

O sentimento da gratidão sempre deve estar desacompanhado da expectativa de qualquer forma de retribuição, nem mesmo sequer de um olhar ou de um sorriso, que expressariam reciprocidade.

Havendo, é bem melhor, porque o outro igualmente se encontra em processo de amadurecimento psicológico e de contribuição valiosa à sociedade.

Mas será uma exceção e não uma lei natural e constante.

Todo ato de generosidade, pela sua maneira de ser, dispensa gratulação e manifesta-se naturalmente.

O amor aos filhos, aos cônjuges, os deveres para com eles e para com os outros são de natureza íntima de cada um, que se compraz em proceder de acordo com as regras do bem viver e não apenas do viver bem, cercado de coisas, de carinho, de compensações.

Essas atitudes são logo esquecidas, pois que, toda vez quando se espera reconhecimento, surge um encarceramento, por exemplo, no caso daquelas pessoas que asseveram que vivem para outras: filhos, parceiros, amigos, e que ficam desoladas quando estes alçam voos no rumo que lhes é o destino.

A triste síndrome do ninho vazio em que se encarceram por prazer e por imaturidade psicológica induz os pacientes à amargura e ao desencanto por não receberem a compensação retributiva em relação ao que fizeram por interesse, não pelo prazer de realizá-lo.

Esse fenômeno é muito comum também no que tange aos labores enobrecedores que aguardam aprovação, recompensa da sociedade.

Pessoas portadoras de alto nível de inteligência e de trabalho contribuem eficazmente em todos os setores do progresso social, por meio de descobrimentos, de invenções, de realizações grandiosas...

No entanto, quando não são reconhecidas ou premiadas, mergulham na revolta ou no desânimo, na queixa ou na desistência de prosseguir, amarguradas e infelizes.

Não são pessoas más, como é claro perceber-se, mas imaturas psicologicamente, vivenciando ainda o período dos elogios infantis, dos aplausos e dos comentários, dos quinze minutos de holofotes, mesmo que depois sofram o esquecimento, como é quase normal numa sociedade utilitarista como o é a hodierna.

Embora disfarçado, encontra-se nesse caso o narcisismo, resultado de uma infância que não recebeu reconhecimento nem estímulos, nem entusiasmo nem acolhimento.

O conflito de fluente nasce na imaturidade psicológica.

Aqueles que assim procedem, em contrapartida, por mais que sejam bajulados, elogiados, aplaudidos, sempre têm sede de mais reconhecimento, dando lugar a um condicionamento que se poderia denominar como vício ou dependência de gratidão.

Quando não se recebe gratidão, não significa psicologicamente que a pessoa não é aceita, que é rejeitada.

Tal ocorrência resulta igualmente de outros fatores psicológicos que dizem respeito aos demais, às circunstâncias, aos valores de cada cultura.

O ideal é viver-se em favor da gratidão mesmo sem a receber, valorizando o lado claridade da vida, as suas bênçãos e todos os contributos existenciais que nunca esperam receber aplauso.

Jesus, o Homem-luz, único ser que não tinha o lado sombra, maior exemplo de maturidade psicológica, fez da Sua uma vida dedicada à gratidão, pelo amor com que enriqueceu a Terra desde então, vivendo exclusivamente para o amor e o perdão, a misericórdia e a compaixão.

Recebeu, antes, pelo contrário, por todo o bem que fez, pelas fabulosas lições de sabedoria que legou à posteridade, a negação de um amigo, a traição de outro, que se arrependeram, certamente, a perseguição gratuita dos narcisistas e imaturos, temerosos e egotistas, a infâmia, o abandono, a exposição à ralé arbitrária, as chibatadas, a crucificação...

mas retornou em triunfo de imortalidade, exaltando a vida e Deus em estado numinoso.

Jesus, o Homem-luz, maior exemplo de maturidade psicológica, fez da Sua uma vida dedicada à gratidão, pelo amor com que enriqueceu a Terra desde então, vivendo exclusivamente para o amor e o perdão, a misericórdia e a compaixão.




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